quarta-feira, 10 de junho de 2009

A função inarredável da eqüidade para o estudo do direito.

A função inarredável da eqüidade para o estudo do direito.

Significado de eqüidade. Eqüidade vem-nos de aequus-a-um, que significa nivelado, plano, vantajoso à imparcialidade, consistente com a brandura no trato humano das coisas (isto é, da avaliação dos seres), o calmo balanceamento dos pesos (de cargas a recaírem sobre pessoas). O contrário é o in-aequus (=iniquus), ou seja, aquilo que é desvantajoso, desnivelado, prejudicial ou nocivo, fora de medida.[1] Eis aí a razão de a interpretação da lei escrita com a ajuda da eqüidade servir à correção da lei tocantemente à dureza das frases, sempre incompletas, que deram entrada na cultura. A palavra não consegue esgotar a complexidade das relações (“dos seres”) em que os homens ingressam e de que saem. Quando não está nesta função de corrigir, serve o recurso jurídico da eqüidade à integração da norma escrita. Neste segundo caso o uso de eqüidade completa o sentido e a orientação da norma literalmente entendida. Faz com que ela, a norma escrita, se acomode às realidades sobre que está a incidir. Notemos que todo fato jurídico é sempre a junção de algum fato com alguma regra (suporte fático + regra jurídica). Os fatos são partes exsurgidos da riqueza da vida. São bem mais complexos, pois, que a regra, criação do homem. Diante deles o pensador (como o profissional do direito) há de reconhecer essa superioridade da riqueza dos fatos em relação ao conhecimento das leis. [2]

A eqüidade é de interesse para a epistemologia, a política, a educação, a filosofia e para formar os conceitos de justiça, e de virtude outras virtudes, ou vícios.

A eqüidade no estudo do Direito. Escrevem doutos que

A eqüidade teve papel fundamental no desenvolvimento do Direito Romano. Para compreender essa importância é necessário diferenciar o Direito Romano Arcaico do Direito Romano Clássico.

O Direito Romano Arcaico ou Quiritário caracterizava-se pelo formalismo, oralidade e rigidez, aplicando a igualdade "aritmética" e não a eqüidade. Ele não se estendia a todos os que viviam no império, criando uma massa de excluídos que não podiam recorrer à justiça. Porém, com a invasão da Grécia pelos romanos, houve uma sincretização entre as duas culturas e, com isso, além da introdução de um direito escrito, a filosofia grega influenciou na quebra da rigidez do Direito, através do princípio da eqüidade.

A partir desse ponto o Direito Romano vislumbrou um grande desenvolvimento. As fórmulas passaram a garantir novos direitos e a estender o mesmo a mais pessoas, como os estrangeiros. A eqüidade não veio para mudar a lei criando um meio processual para preencher as lacunas. Destaca-se ainda a codificação de Justiniano, Corpus juris civilis, que deu grande importância e relevância à eqüidade.

Pode-se concluir que no desenvolvimento do Direito Romano-germânico Ocidental, os romanos nos deixaram, através de um direito formal e rígido, a certeza e a precisão, enquanto os gregos quebraram essa rigidez excessiva, contribuindo com o princípio da eqüidade. [3]

Sim, como dissemos, porque a possibilidade de a regra jurídica escrita esgotar a realidade dos fatos (relações humanas) é estreita, pequena. Os vazios e as imprecisões de uma norma posta em letra grafa são supridos pela eqüidade como técnica mais completa de interpretação da lei. Mediante o emprego daquela pode ser alcançada uma percepção mais completa do conteúdo do sistema jurídico a respeito do assunto versado na norma escrita. Os fatos sociais, além de serem semelhantes na aparência, e de serem entre si diferentes, variam em sentido de um para outro no tempo e no espaço. A letra isolada da lei não tem o alcance necessário para corresponder a essas aparências e semelhanças, de modo que a eqüidade corrige a lei escrita e fá-la alcançar-lhe o sentido e a orientação. Feita esta operação será possível chegar-se mais proximamente ao núcleo dos fatos (jurídicos e não jurídicos), relacionados com a limitação própria da norma escrita.

Eqüidade no pensamento tradicional. É ela o instrumento de que se lançava e ainda se lança mão para afastar a injustiça perpetrável pela imperfeição jurídica da norma puramente escrita. Aparecem assim expressões como “elemento extralegal”, “natureza das coisas”, “direito pretoriano”, “direito natural”, “direito justo” (richtiges Recht), “regra induzida”. [4]

Conceito científico de eqüidade. Quando falamos “científico” estamos a referir-nos à aplicação constante do método indutivo-experimental, ou seja, por indução, generalização e experimentação. A âncora de certeza humana do acerto (o máximo que se pode alcançar) é o conjunto dos fatos entrelaçados com a matéria estudada. Começa-se com eles (com o sentido da vida) 1) a extrair o conteúdo da norma (indução), 2) arrisca-se então a colheita de proposição geral (generalização) sobre o assunto aprendido e, em seguida, 3) o pensador passa a examinar a consistência dessa generalização alcançada perante os fatos, os acontecimentos, a vida (experimentação). Ora bem, estaremos procurando fazer o cerco mais rigoroso ao sentido e orientação da lei se lhe dermos significado em um plano mais niveladamente suportável das relações humanas; será isto com um achado mais vantajoso à imparcialidade das necessidades vitais contrapostas (= “valores”), retirando elementos de alguma suavidade maior na avaliação das pessoas postas em relação com a outra e, no caso da relação jurídica processual, no confronto de ambas com o Estado. Leva-se em conta, por exemplo, a fraqueza natural do idoso, a da pessoa de poucas letras, a do pobre demasiadamente timorato.

Se o caso é de uma lei cuja leitura literal não diz ser possível tentar-se a conciliação de pessoa física ausente (mas com o seu representante presente), a aceitação da tentativa pelo juiz, quando conclui que ele tem de tentar a conciliação, passa a ser o uso da eqüidade na sua função de complementar a lei escrita. Poderia até mesmo corrigi-la. Poderia fazer a correção assim, por exemplo, “basta o representante se a parte for mulher grávida com sete meses de gestação”. Não terá chegado a tanto porque a lei não se refere a qualquer tipo de pessoa física. Voltemos: ao depois, quando o magistrado examina mais fatos, encontrará ele elementos confirmativos de ser indispensável lançar mão da eqüidade. Alguns desses elementos são, aqui, a idade da autora da ação, a sua situação jurídica criada pelo Estatuto do Idoso e, mais além, as regras jurídicas de abrangência maior — o Direito das Gentes e os princípios da Constituição Federal de 1988.

Ao proceder a este calmo balanceamento dos pesos ficará confirmado que a pesquisa sobre as cargas a recaírem experimentalmente sobre pessoas exige a busca da eqüidade. Do contrário estaria o Estado-juiz a resvalar no in-aequus (=iniquus), ou seja, no desvantajoso para a harmonia entre a autora e o instrumento estatal, coisa costumeiramente (éthos) desaprovada pela maioria da população. A moral (um dos sete importantes processos sociais de adaptação) não tolera esse resultado desnivelado, nocivo. Situa-se ele fora de medida da realização equilibrada da vida.

Sentido e orientação das normas de direito. “Sentido” é conteúdo mesmo do acontecimento extramental: revela qual o conjunto de seres integrantes dele (com os valores a si inerentes, isto é, com a medição da conveniência desses seres para os homens). O “sentido” da norma constitui-se na sua importância para a vida regrada pelo direito. Mostra-se no “sentido” que questão humana está com a solução de segurança extrínseca (=direito), e como a norma pode e deve atender a isso. Assim é porque o Direito é feito e refeito para dar garantia às necessidades da vida (“anseios existenciais”, diria um filósofo).

“Orientação” é o rumo da norma, isto é, a quem ela se dirige com os seus ônus e seus benefícios. Pode ela estar indicando mais ônus para o Estado que para o particular, ou ao contrário etc.[5] Exemplo: se o juiz (ônus estatal) tem de dar-se ao trabalho de tentar uma conciliação quando a parte é um idoso ausente mas com alguém a representá-lo na audiência (é o benefício privado deste idoso).

Um estudo de caso sobre esta matéria. Vamos a um exemplo. Ocorreu no Estado de São Paulo, em 2009. Uma senhora com quase oitenta anos moveu ação contra o genro. Diz o representante dela a um jornal de São Paulo em 16.05.09 (“Painel do Leitor”):

[...] uma senhora de 78 anos que pedia a simples devolução de veículos emprestados ao genro. Optou pelo tribunal de pequenas causas por acreditar ser mais célere e pela simplicidade da ação. A primeira audiência tardou cinco meses; a segunda, outros longos nove meses. É uma senhora que foi submetida a uma operação de fêmur e que se locomove com muita dificuldade. O resultado disso? A juíza simplesmente decretou a extinção do processo, porque considerou que ela deveria "obrigatoriamente" comparecer — não poderia ser representada de nenhuma forma —, e recomendou ao final que se procurasse a Justiça comum.

O sentido da lei neste caso. Na lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, é dito que esses juizados (os itálicos são nossos), Art. 1º, são [...] para conciliação [...]. Reza o art. 2º:

O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, [...]

Art. 3º O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas:

I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo;

[...] § 3º A opção pelo procedimento previsto nesta Lei importará em renúncia ao crédito excedente ao limite estabelecido neste artigo, excetuada a hipótese de conciliação.

Art. 5º O Juiz dirigirá o processo com liberdade para determinar as provas a serem produzidas, para apreciá-las e para dar especial valor às regras de experiência comum ou técnica.

Art. 6º O Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum.

Art. 8º [...] § 1º Somente as pessoas físicas capazes serão admitidas a propor ação perante o Juizado Especial, [...]

Agora vem o artigo 9º e o seu § 4º, que sublinhamos para lhe dar relevo.

Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, [...]

§ 4º O réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto credenciado.

Entendeu a juíza não poder ela proceder à tentativa de conciliação sem a autora estar presente (embora ali estivesse o representante dela). Fez exegese literal, sem eqüidade. Desconsiderou o sentido e orientação da dita lei, e a idade da autora. Note-se ainda, quanto à dita lei mais o seguinte:

Art. 13. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios indicados no art. 2º desta Lei.[6]

Art. 13. Os atos processuais serão válidos sempre que preencherem as finalidades para as quais forem realizados, atendidos os critérios indicados no art. 2º desta Lei.

§ 1º Não se pronunciará qualquer nulidade sem que tenha havido prejuízo.

Conclusão parcial. Já com estes dados se patenteia o erro na exegese da norma escrita do artigo 9º e no seu § 4º. Faltou na iníqua decisão mais conhecimento de direito — o que é eqüidade e qual a função jurídica própria dela. [7]

O Estatuto do idoso. Cresce de ponto a importância do erro cometido pela juíza por causa do conteúdo do Estatuto do Idoso (lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003). Poremos em itálico algumas normas cuja orientação é de favorecer o idoso, recaindo o sacrifício sobre o Estado-juiz. Vejamos.

Em geral. Vige a norma do artigo 2º.

Art. 2º O idoso goza de todos os direitos fundamentais [...] mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.

A prioridade do idoso perante o poder público. Está na lei:

Art. 3º É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:

I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos [...]

Acresce a circunstância de a audiência seguinte ser designada para depois de nove meses de espera. Nota-se, pois, a negligência do poder público (Estado-juiz). Foi um ato contrário à boa diligência, a que a idosa tem direito:

Art. 4º Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, por ação ou omissão, será punido na forma da lei. [...] § 2° As obrigações previstas nesta Lei não excluem da prevenção outras decorrentes dos princípios por ela adotados.

Art. 5º A inobservância das normas de prevenção importará em responsabilidade à pessoa física ou jurídica nos termos da lei.[8]

Reforço exegético — o acesso do idoso aos Juizados especiais. Quanto ao acesso à justiça há mais normas especiais no beneficio do idoso, com ônus para toda a gente; mostra a orientação da norma: [9]

.

Art. 71. É assegurada prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância. [...]

§ 2° A prioridade não cessará com a morte do beneficiado, estendendo-se em favor do cônjuge supérstite, companheiro ou companheira, com união estável, maior de 60 (sessenta) anos.

O método indutivo-experimental para o profissional do direito. Para se acertar há necessidade de uma continuada educação de si mesmo na descoberta do sentido e orientação da norma a partir dos fatos da vida. Não a começar pela obscuridade preguiçosa de uma vista curta, nem tampouco com a auto-suficiência soberba de quem se qualifica a si próprio como “intelectual”. Altamente escreveu Pontes de Miranda a esse respeito:

[...] a ne­cessidade de induzirmos da totalidade das relações sociais (de costume, éticas, econômicas, etc.) [...], não por julgamento de valor, mas por meio de julga­mentos reais, de modo que se dá orientação ao conheci­mento e à atividade formadora do direito no sentido de se substituir aos [...] processos instintivos ou meta­físicos o método científico.

A aplicação normativa do direito, [...] pressupõe o conhecimento dos fatos do sistema de valorização; [...] De maneira que a normatividade seria sem sen­tido, se não houvesse algo de conhecido, [...] pela possibilidade de tirar — do conheci­mento científico, [...] indicati­vo — regras, imperativas, que sejam úteis [...] ao homem.

[...] Somente assim poderá viver a lei, somen­te assim, mediante tais corrigendas inspiradas pela vida, podem os textos servir à adaptação dos homens à vida social. De outra maneira, prejudicariam à harmonia, à ordem, ao equilíbrio, e estorvariam as virtudes adaptativas (espontâneas) do sentimento, do costume etc.

[...] No estudo das relações, que são as realidades do mundo social, o que se opera é o conhecimento das funções, no que têm de perceptível, e assim se afasta a tendência finalista, cheia de perigos e incapaz de segurança. Em vez do avan­çar teleológico, mais ou menos subjetivista, o lento mas sólido desenvolver do estudo positivo. [...] estudar [...] realidades sociais, que são as relações. [...] a investigação científica do real, [...] nos é dado pelas re­lações sociais. O que importa, acima de tudo [...]: aceitar somen­te verdades metodologicamente autênticas e de rigorosa positividade. [...] conseguir a exatidão prática, a relativa eficácia, que somente pode ser assegurada pela previsão científica. Os fatos jurídicos são fenômenos, como os demais; podem ser observados, descritos e classificados e à ciência compe­te procurar as leis que os explicam e, com tais conheci­mentos, servir à prática, [...] pode e deve fundar-se na ciência. [...] O homem, como todos os seres, procura a conservação da vida, e as socie­dades, que são organismos maiores, não têm outro fito; de modo que, se [...] a ciência mostra o que é necessário para viver, o dado indicativo imediatamente se converte em regras im­perativas, posto que às vezes postuladas pelo próprio sen­timento que [...] se aproveitará cada vez mais da ciência. [...] [...] se o conhecimento social nos mostra, em ver­dades científicas, solução melhor, então devemos segui-lo no que implicitamente nos aconselha.

[...] O método inicial é a observação; depois, vem a indu­ção; mais tarde, a experimentação, [...] [...] No vaivém das grandes cidades, quando se anda a pé ou de automóvel, é fácil reparar no prodigioso es­forço de adaptação, que faz evitar, aqui um encontro, ali um empecilho, além um perigo, e percebe-se o grau de minuciosa [...] resolução imediata, a que a civi­lização acostumou o Homem. [...] O prestígio da lei escrita como do direito costumeiro apenas advém da presunção, naturalmente elidível, de já ter sido feita [...] a neces­sária indução. O método científico oferece duas garantias: 1) A da objetividade da investigação e, pois, segurança dos resultados, com o que se evita a arbitrariedade, mais ou menos pessoal, do racionalismo legislativo e exegético. 2) A de não estacionar, quando a vida progride [...]: o conhecimento indutivo das relações, conquanto, em si, persista o mesmo, acompanha os fatos e chega a resultados novos ou retificados, [...] Os dados de que hoje induzo não são os mesmos de que induzirei daqui a alguns anos, salvo se realmente persistirem. Mas, se a vida se modificou, nas relações é que se revelam as modificações e na indução será encon­trado o elemento novo. Donde a grande conveniência do método [...]: manter o direito, por força do próprio método, à altura da vida. Em contínuo e fe­cundo contato com a realidade e alimentado de fatos, poderá servir, como nenhum outro, à harmonia da evolu­ção e ao incessante aperfeiçoamento da espécie e da vida social. Nem cometerá o erro do tradicionalismo — que é o de ater-se ao que provia, sem investigar se ainda deve prover, o que condena o direito à imobilidade causadora de males [...]; nem o do racionalismo, que tudo confia à razão, à lógica, ao a priori, e está certo de que os mais complicados problemas do mundo pode resolver com alguns momentos de reflexão, [...] estabelece a discordância [...] entre a pura obra do espírito e o real, a que se destina. Com o método científico, o direito deixa de es­colher arbitrariamente os seus ideais, busca-os nas reali­dades [...] Trabalhar com fatos solidamente estabelecidos, e não frágeis e mutáveis convicções pessoais: o máximo de objetivo, que possa ser, o mínimo possível de a priori.[...] longo caminhar no sentido da crescente objetividade do conhecimento científico.

Somente a indução pode servir como método inicial, científico. [...] É preciso ver as realidades; e somente pela observação, indução e expe­rimentação, poderemos avançar com segurança e prover com sabedoria.[10]

Sobre a invalidade da “dura lex” perante o Direito das Gentes. Segundo a Declaração de Direitos (dezembro de 1948) o Estado não poder estar acima dos indivíduos. É, antes, um instrumento a serviço da pessoa. Vejam-se algumas dessas normas de direito supra-estatal, retiradas a esta fonte de Direito das Gentes. Extrai-se delas que uma lei injusta, isto é, lesiva ao interesse das pessoas, tem de ser retirada para fora do direito de cada povo. Se uma norma legal, com signos gramaticais inarredáveis pela cultura, proíbe o acordo em audiência quando um idoso está ausente dela mas manda à presença do juiz um representante, é regra jurídica dura em excesso, numa demasia inaceitável pelas pessoas da maioria dos círculos sociais da Terra. Lei assim desequilibrada, destrutiva, iníqua, vai contra o Direito das Gentes ou direito supra-estatal. Cumpre seja expelida do sistema jurídico em causa; trata-se da decretação de sua nulidade. Porque ele contraria uma norma jurídica de taxionomia superior, de modo que ela existe e vige, mas não vale.

Tal dureza iníqua vem vedada pelo Direito das Gentes em razão da violação trazida por ela aos valores específicos a que a Humanidade já ascendeu. Vejam-se os conceitos jurídicos insertos na Declaração de Direitos da ONU (1948) com os seguintes termos: todos os membros da família humana, justiça, que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais, direito à segurança social, limitações, exclusivamente com o fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar.

São realidades ou suportes fáticos acolhidos por esta fonte de direito supra-estatal. Essa incidência do Direito das Gentes é de natureza cogente porque tutela valores indispensáveis à vida humana. Determina-se assim a todos os Povos que excluam do seu sistema jurídico as normas intoleráveis à mantença da vida digna. É o caso da “dura lex, sed lex” quando a explicitude dela vede a eqüidade com locuções adverbiais como “de nenhum modo”, “só no caso de...”, “única e exclusivamente quando”. Regra jurídica interna desatinadamente contrária à vida é inválida; precisa ser por isso desconstituída.

Ao texto, pois:

Considerando que [....] reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, [....] o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade [......] essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para que [...] Artigo VIII. Todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. [....] Artigo XXII. Todo homem, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis [....] Artigo XXIX. [....] 2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo homem estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. [....]

Sobre a invalidade da “dura lex” perante a Constituição Federal de 1988. Os princípios gerais de direito indicam necessidades instintivas de segurança e traçam brevemente a regra para se acharem soluções de conflito ou de ameaça a ele. O instinto pressiona os homens, para se imporem limites. Ele risca as linhas diretas simplificadoras de solução. De modo que o instinto-inteligência (Homem) cria a regra sob as pressões interiores e as do círculo social das pessoas. Tudo isto é normal, é a Natureza. Na Constituição Federal de 1988 temos alguns princípios. Todos apontam para a tutela dos bens existenciais, para o valor da vida humana. Veja-se um quadro abaixo, a partir do início mesmo dela até ao artigo 3º, com os conceitos de asseguração de bens da vida, bem-estar, justiça, harmonia, cidadania, dignidade da pessoa, sociedade solidária, promoção do bem.

PREÂMBULO — [...] instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social [...]

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana; [...]

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Se na nossa lei sobre os juizados especiais cíveis e criminais (nº 9.099, de 26 de setembro de 1995), no lugar de dizer:

Art. 9º Nas causas de valor até vinte salários mínimos, as partes comparecerão pessoalmente, podendo ser assistidas por advogado; nas de valor superior, a assistência é obrigatória. [...]

§ 4º O réu, sendo pessoa jurídica ou titular de firma individual, poderá ser representado por preposto credenciado.,

tivesse escrito

“podendo ser assistidas exclusivamente por advogados e unicamente a pessoa jurídica, qualquer que seja a situação, pode ser representada por preposto”,

essa norma seria uma dura lex, inválida tanto pelo Direito das Gentes como pela Constituição Federal de 1988. Não poderia ser aplicada de modo algum porque dela estaria excluída também a eqüidade, coisa que não ocorre com a redação atual porque a exclusividade não foi expressa.

Síntese e conclusões finais. A eqüidade é um recurso de interpretação da lei escrita para lhe servir de integração e de correção da lei tocantemente à dureza das frases porque a palavra não consegue esgotar a complexidade das relações (“dos seres”) em que os homens ingressam e de que saem. Faz com que a norma escrita se acomode às realidades sobre que está a incidir. Os fatos são o ponto de referência para o profissional do direito porque eles são partes exsurgidos da riqueza da vida. São muito mais complexos do que regra. Esta é uma criação do homem. Diante dos fatos (acontecimentos da vida) todo pensador há de reconhecer a sua superioridade em relação ao conhecimento das leis formuladas a respeito deles. A eqüidade é de interesse para toda a epistemologia (ciência do conhecimento), e não apenas para o estudo do direito. Quando ela fica impossibilitada por símbolos lingüísticos inarredáveis em norma contrária à vida humana, esta norma não vale — é vedada pelo Direito das Gentes e pela Constituição Federal de 1988. Por fim, no caso estudado neste texto houve erro de direito da juíza — ela deixou de fazer a tentativa de acordo porque a autora, idosa, não estava presente, ali estando, porém, o representante dela.

Santos (São Paulo), 28/05/2009.

Mozar Costa de Oliveira

Mestre e doutor em direito pela USP, desembargador aposentado.


[1] Ver SMITH William e LOCKWOOD John. Latin-english dictionary. Chambers and Murray: London, 1976, p. 26-27 e 353-354. A etimologia tem a vantagem de mostrar algo das raízes da história. Desvenda reminiscências expressivas do pensamento, que começou pelos gestos, passou aos rudimentos dos sons articulados, fixou traços no vocábulo. Há na palavra falada o som, com algo de uma natural relação com o sentido da coisa aludida (e não como se tudo fosse só escolha arbitrária). Assim, o som inicial provável aeq estaria indicando a relação de peso-contrapeso, próprio da atual “eqüidade”.

[2] Ver a esse respeito SOARES, Caio Caramico. Humildade analítica, arrogância dialética. Folha de São Paulo. 30.5.2004. Caderno Mais, p.13.

[4] Ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, tomo I, p. 21. À página 356 do tomo III o autor faz referência a diversos trabalhos de alemães sobre o mesmo tema “eqüidade” (=Billigkeit): M. E. MAYER (Rechtsphilosophie, 1922, 85 s.), GRAMSCH (Die Billig­keit im Recht, 1938), GUSTAV RADBRUCH (Vorschule der Rechtsphilosophie, Hilbronn, 1948, 24), WILHELM SAUER (Die Gerechtigkeit, 1959, 136 s.), RUDOLF STAMMLER, "Summum ius summa iniuria", Ringvorlesung der Tübinger Juristenfakultät, 1963), HELMUT COING, Grundzüge der Rechtsphilosophie, Berlin, 1950, 115; 1969, 2. Aufl.), e JULIUS BINDER, Philosophie des Rechts, Berlin, 1925, 265 s.).

[5] Convém não pouco ao estudioso do direito estar continuadamente atento à teoria geral do direito, ao modo seguinte: 1) A variedade dos suportes fáticos (complexidade das realidades vividas) em geral preexiste à regra jurídica, instrumento de “construção” de mundos. 2) Donde a exegese: sentido e orientação, legitimidade, existência, validade, vigência, eficácia e efetividade; a interpretação: percepção da estrutura do tipo de fato jurídico examinado; e a aplicação: movimentação das sete classes mais relevantes de energia social, que a norma opera, quando posta sobre eles. 3) Daí o estudo classificatório de uma e outra realidade, sem pressupostos doutrinários tradicionais para se prevenirem, na medida do possível, assim o apriorismo e como a ingenuidade do senso comum. 4) O exame do fato jurídico em espécie (as cinco classes dele) segue as vias da matemática e da lógica simbólica, levando em conta a teoria geral da relatividade aplicada às ciências sociais. 5) Todo cuidado em manter conceitos precisos e exatos, também ao se estudarem os planos em que tem que ser, ou pode ser, examinado o fato jurídico (existência–inexistência, validade-invalidade, eficácia–ineficácia). 6) O exame do plano “eficácia-ineficácia” recolhe conquistas de mais de três séculos de pesquisa sobre as quatro classes da relação eficacial: direito-dever, pretensão-obrigação, ação-(sujeição), exceção-(abstenção), incluída a classificação quinária das pretensões e, sobretudo, das ações de direito material, com a distinção entre elas (ações de direito material), a pretensão à tutela jurídica estatal e os remédios jurídicos processuais. São conceitos diferentes porque têm por base realidades entre si muito diversas. Estas relevantes questões estão soberbamente estudadas até ao pormenor em Pontes de Miranda. Vejam-se estas obras: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 60 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, tomos I, II, III e IV – 1954; __________. Tratado das ações. 7 tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, tomo I – 1970; __________. Comentários ao código de processo civil (de 1973). 2ª ed. rev. aum. 17 tomos, 3a. ed., 1a. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1996. Atualizados por Sérgio Bermudes, tomos de I a IV.

[6] Art. 2º — O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

[7] Sobre os comentários entristecidos do homem (o representante da idosa na audiência malograda), que a Folha de São Paulo publicou, disse um juiz o seguinte: “O ilustre cidadão desconhece que a Lei do JEC fixa limite de valor para o pedido (art.3º, I) e também prevê expressamente que a ausência da parte, desde que não justificada antecipadamente, acarreta a extinção da ação (art. 51, I). [...] “juízes não inventam nada. Apenas aplicam a lei. Qualquer insatisfação, deveria ser demonstrada em Brasília, no Congresso Nacional [...]...

[8] Outras normas desta mesma lei apontam para a orientação tutelar dela em benefício de uma idosa, como a autora da ação que vimos aludindo. Veja-se: Art. 6º Todo cidadão tem o dever de comunicar à autoridade competente qualquer forma de violação a esta Lei que tenha testemunhado ou de que tenha conhecimento. [...] Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis. [...] Art. 43. As medidas de proteção ao idoso são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados [...] III – em razão de sua condição pessoal [...]

[9] Leis há em que é mais perceptível a orientação das normas. Junto com o estatuto do idoso, outras vigem: sobre o índio, sobre a criança e a adolescência etc.

[10] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, tomo IV, páginas 65-71.

Um comentário:

maricella disse...

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