quarta-feira, 10 de junho de 2009

CRIMES E DESCRIMINANTES AO COMEÇO DA VIDA HUMANA

CRIMES E DESCRIMINANTES AO COMEÇO DA VIDA HUMANA

Anotações prévias.

Nossa exposição será sobre o homem no seu início mais primitivo de vida, tempo minúsculo de contar com possibilidade inicial de sair do ventre materno.

É análise jurídica feita pelo método indutivo-experimental (indução, generalização, experimentação), que não uma reflexão filosófica existencial. Adentraremos por esta uma que outra vez quando indispensável, ao falarmos de necessidades de interiorização de conceitos e sentimentos.

Por brevidade apresentaremos ao final somente as referências bibliográficas gerais, tanto de publicações editadas em papel como das virtuais. Não haverá notas de rodapé a indicarem fontes completas.

I — Quando é ilícito o prejuízo ao direito de nascer

Em princípio não se pode retirar a vida ao ser que irá nascer (nascituro), mesmo quando é ele apenas um zigoto.

O zigoto segundo o Direito. Do ponto de vista do direito brasileiro fica o pensador convencido de a retirada do zigoto ser contra o direito à vida. Será crime fazê-lo, salvo se incidir norma jurídica pré-excludente (ou descriminante). É matéria insusceptível de reforma constitucional (artigo 5º cc. 60, § 4º-IV). Só pode isto ser alterado mediante plebiscito convocado pelo Congresso Nacional; ou em nova Constituição com prévia eleição de constituintes.

Quando surge um zigoto. Percebe-se não haver unanimidade sobre alguns pontos que devem considerar-se fundamentais (outros talvez não). Exemplos destes últimos: se o surgimento do zigoto é imediato ao coito ou se há aí algum intervalo entre o coito e a formação dele; se o zigoto se não se forma na mesma hora do coito, passa a sê-lo depois de que número superior de horas; qual seria, mensurado, este eventual tempo intermédio, e por que é assim; quando é que há na mãe um novo ser humano; se o zigoto já é ou não um ser humano (constitui-se enquanto tal de dois gametas: óvulo e espermatozóide); se há ou não entre o zigoto e o ser humano a mesma diferença existente entre a semente de uma árvore e essa árvore; se matar a semente de uma árvore é o mesmo que matar essa árvore; o que é gravidez e o que é gestação, em conceitos precisos; se o zigoto já é, concretamente, o nascituro das regras jurídicas, do Direito das Gentes (ONU, Pacto de San José) e do direito interno brasileiro (Constituição Federal de 1988 e Código Civil).

Epistemologia e ideologias. Temos de meditar também se, sem uma resposta segura a essas questões preliminares da medicina (talvez também da psicologia e da sociologia — “o é que um ser humano”?), não estarão as discussões a dar voltas sobre valores éticos e religiosos, portanto prenhes de conceitos previamente formados na mente de cada pensador. O que pode então ocorrer? Que cada contendor só esteja a falar consigo próprio, sem resolver pressupostos, digamos, “extra-mentais”, capazes de conferirem consistência cognitivamente confiável às proposições formuladas.

Ora bem, fora de uma epistemologia solidamente extra-mental (a todo rigormais extra-mental!), muita discussão decerto haverá, e luta ideológica. Com pouca ciência positiva, todavia. Chamamos ciência positiva ao conhecimento do que está posto na natureza, “lá fora”: aquilo cuja existência não depende de nossas construções mentais — sensações, percepções, conceitos, juízos, símbolos lingüísticos.

Sem isso as religiões todas podem ser danosas à própria saúde... Se o discurso exsurgido se converter em alguma guerra de posições, todos nós, enquanto pensadores livres, estaríamos a perder aí o nosso tempo com o tema: assim, estaríamos apenas aptos a “discutir” se Deus permite, se as éticas toleram, se o direito (estudado “filosoficamente”) acolhe isto que diz com o abortamento: pode-se ou não se pode matar o ser vivo iniciante que veio agora a se enraizar no seio da mãe?

Momentos. Qual o momento, pois, em que a mãe tem em si um novo ser (diverso da individualidade dela)? E cabem mais estas questões: 1) se mesmo antes de chegar a feto (isto é, quando é apenas zigoto), esse indivíduo não pode ser desfeito artificialmente porque haja abortamento. 2) Mas, é mesmo um indivíduo, este, agora chegado ao ventre? 3) Tomar a "pílula do dia seguinte" é cometer o crime de abortamento? 4) E o uso "DIU"? 5) Qual a razão sociológica de o abortamento continuar sendo crime (afora as pré-excludentes de ilicitude)? 6) Se o zigoto já for o nascituro (código civil brasileiro, art. 2o “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro), então se é ou não direito dele, nascituro, o desenvolver-se desde o coito até ao nascimento ("direito de nascer"). 7) Se como está na Constituição Federal de 1988, com as regras jurídicas completivas do Preâmbulo —

Estado Democrático, com o artigo 1º — Estado Democrático de Direito — com o art. 4º-II — prevalência dos direitos humanos [...], com o art. 5º — Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, [...]

— se por tudo isso, quadra repetir, haverá alguma dúvida sobre a resposta à indagação sobre se pode o zigoto, em princípio, ser sacrificado ou não.

A primeira resposta pelo Direito das Gentes e pelo Direito Interno do Brasil. Quer nos parecer que a resposta cabível é negativa em princípio — não se pode matar o zigoto: sacrificar o zigoto é matar um ser humano. Segue-se então que o abortamento não pode ser descriminalizado — isto contraria o Direito das Gentes e a Constituição Federal de 1988. Direito das Gentes é aquele sistema jurídico que sobrepaira a todos os Povos. Incide sobre todos, marcando-os, embora seja continuadamente infringido. São coisas muito diferentes entre si a vigência de norma jurídica e a sua aplicação. A vigência somente cede à derrogação do costume quando este é inveterado e proveniente do consenso, inda que silente, dos membros do círculo social correspondente. No caso particular do Direito das Gentes o círculo social é o círculo social universal, o mundial; é a comunidade total de todos os seres humanos.

O direito internacional é outra realidade: diz o que se passa entre dois ou mais povos — um tratado, um acordo entre Povos e outros negócios jurídicos são internacionais. Já o Direito das Gentes é supra-estatal, atinge de cima (incidência) todos os Estados do orbe, automaticamente, sem mais atuação humana. Uma vez surgido o fato (suporte fático) correspondente à norma, ele já fica definido pelo processo social de adaptação jurídico. Por exemplo, a norma pacta sunt servanda é supra-estatal ao passo que um pacto entre dois países é matéria de direito internacional público.

Questão relevante. A questão é grave para as interações jurídicas: o abortamento está proibido, em princípio, em todas as nações da terra.

No tocante ao Brasil (direito interno nosso) temos a explicitude ao mesmo tempo didática e reguladora no artigo 5º, § 2º da mesma Constituição Federal de 1988:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Mediante esta regra nós incorporamos normas jurídicas do direito supra-estatal. Ora bem, pois o direito à vida já por si conteúdo de Direito das Gentes. A Carta das Nações Unidas incide sobre todos os povos, mesmo que seja, repitamos, constantemente infringida em muitas das suas regras jurídicas. Não são aplicadas várias delas, mas elas continuam a viger. Ocorrido o suporte fático, incidem, dando-lhe entrada no mundo jurídico.

Pois entremos à Carta das Nações unidas. Diz ela já ao Preâmbulo:

[...] reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano [...].

Segue-se a "Declaração Universal Dos Direitos Do Homem", aprovada em resolução da III sessão ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas. Também o Preâmbulo desta Declaração é expressivo, fácil de entender:

Considerando ser essencial que os direitos do homem sejam protegidos pelo império da lei, para [...].

Acrescenta o “Artigo III”:

Todo homem tem direito à vida, à [...]. E vem ainda o artigo VII: Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. [...]

A incidir sobre as Américas temos a confirmação da “Convención americana sobre derechos humanos suscrita en la conferencia especializada interamericana sobre derechos humanos” — San José, Costa Rica 7 al 22 de noviembre de 1969, ao modo seguinte:

“Convención americana sobre derechos humanos (Pacto de San José); Parte I - Deberes de los Estados y derechos protegidos; Capitulo I - Enumeracion de deberes; Artículo 1. Obligación de Respetar los Derechos; 2. Para los efectos de esta Convención, persona es todo ser humano.

Personalidade. Quer isto dizer que, do ponto jurídico do Direito das Gentes, o próprio conceito de “personalidade”, ou de pessoa, não se restringe ao definido pelo direito interno do Brasil, tanto na Constituição (“Art. 1º [...] como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...] etc. como no código civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida”. Ou: “A existência da pessoa natural termina com a morte; [...] e “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome” etc. Este é o conceito prevalecente, segundo o pacta sunt servanda. Para o Brasil assim é, e também nos outros países das Américas.

Conclusão provisória. Ou seja, também o zigoto (=óvulo fecundado) está com a vida garantida pelo sistema jurídico. Ir contra ele é cometer ilícito jurídico, salvo se houver alguma descriminante a viger.

Se o zigoto já é, em si, um ser humano. Retomando o tema havemos de responder à pergunta — se o zigoto já em si mesmo é um ser humano ou se, ao contrário, se é uma coisa estranha ao conceito biológico de homem, cujo conjunto forma o círculo social máximo de Humanidade. Primeiro, dizemos nós, é algo, o zigoto é um ser. Segundo, é um ser vivo. Terceiro, nem é ele uma coisa nem é um pedaço de bruto (zigoto de bruto). Quarto: parece então que o zigoto só se pode conceituar biologicamente como um ser humano vivo. Estamos em pleno mundo dos fatos extramentais, que não no plano das idéias.

Pessoa. Sabemos não ser ainda o zigoto pessoa para os povos não jungidos pelo Pacto de San José. Mas, é um nascituro e é pessoa segundo esse Pacto que o Brasil celebrou. Nenhum interesse tem neste estudo, pois, o conceito metafísico de personalidade. Para o direito vigente no mundo todo (no Brasil apontamos regras jurídicas supra-estatais, constitucionais e infraconstitucionais a incidirem), uma vez posto no mundo o suporte fático “zigoto”, incidem as normas jurídicas sobre a sua intocabilidade quanto ao direito de ele nascer — tanto as de Direito das Gentes (ou supra-estatal), com as do direito interno brasileiro. Mais adiante veremos o que seja pessoa no processo moral de adaptação social.

Vedação jurídica do abortamento. O abortamento é juridicamente vedado, eis a conclusão. No Brasil o abortamento é um ilícito criminal contra a vida se for cometido por pessoa maior e capaz. A nossa legislação sobre o abortamento (Código Penal, artigos 124-128) é das mais rigorosas do mundo: apoucadas são as figuras a permitirem-no. Próximos a nós estão Chile e Colômbia. Se o abortamento for praticado dolosamente, o julgamento dele é feito pelo tribunal do júri, também segundo a Constituição Federal de 1988, artigo 5º-XXXVIII:

é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: [...] c) a soberania dos veredictos; [...] d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida; [...]

II — Casos de licitude na ofensa ao direito de nascer

Situações fáticas há, contudo, em que se elimina o zigoto sem que seja ilícita a morte causada a ele, sem estar a pessoas a cometer um crime. Assim é por vigerem regras jurídicas pré-excludentes ou descriminantes. Duas são estas descriminantes: (1) o estado de necessidade e (2) a inexigibilidade de outra conduta do agente.

A — O “estado de necessidade”. Falemos primeiro sobre o estado de necessidade, ou ato praticado em estado de necessidade. Trata-se de um ato-fato (que é uma das cinco classes de fato jurídica na classificação científica de Pontes de Miranda). Quando alguém precisa prejudicar a esfera jurídica de outrem para salvar vantagem ou bem de vida, próprio ou alheio, não pratica ato ilícito. O critério para saber-se que proporção, mínima que seja, deve haver entre os bens em conflito é matéria do mundo fático: cálculo sociológico desses bens, “valoração”. É impossível, parece, uma resposta dada a priori. Embora não seja fácil a questão posta, ela pode ser cientificamente resolvida.

1) No direito civil brasileiro. Vige a norma do atual código civil. Sendo iminente o perigo, é lícita a própria lesão à pessoa se for indispensável o ato agressor para afastar o dito perigo iminente. Eis:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos: [...] II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as cir­cunstâncias o tornarem absolutamente ne­cessário, não excedendo os limites do indis­pensável para a remoção do perigo.

2) No direito penal brasileiro. O mais fácil caso de pesquisa é o estado de necessidade, quando estão duas pessoas a se afogarem — encontram só uma prancha, mas nela não cabem os dois — ou um ou outro terá de perecer (tabula unius capax — ou tábua de Carnéades). Esta descriminante penal brasileira temo-la no Código Penal vigente:

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. § 1º - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. § 2º - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

Tem de haver a proximidade de dano, aqui e agora, situação esta que o agente não tenha provocado. O mais complexo é a medida dessa necessidade: o termo razoabilidade lembra o racionalismo. Veio-nos este pelo menos desde Aristóteles (nous) — umas das virtudes dianoéticas. Com o advento da ciência positiva do direito (conhecimento pelo método indutivo experimental) é possível chegar-se a uma precisão maior: o que a inteligência, com o auxílio da matemática pode pesquisar e, pela estatística, medir.

Tolerabilidade humana. Tarefa fácil decerto não é; tampouco impossível. A aproximação conscientemente calculada do que seja tolerável ou suportável para o homem (conceitos retiráveis da lógica, da matemática, da física, da psicologia, da sociologia), eis o que se tem de acolher na pesquisa. Temos de descobrir o grau de sofrimento que ele é capaz de receber em si sem autodestruição, achar o peso adequado às suas forças físicas e psíquicas, descartado o aniquilamento do ego. Todas as ciências (tantas quantas forem possíveis no espaço-tempo-energia de cada círculo social histórico, real) devem ser examinadas para se errar menos contra a vida — a do zigoto e a de quem o vai agredir em estado de necessidade.

Servirão ao pesquisador sincero e dedicado os dados recolhidos das ciências sobre o humano: antropologia, filosofia social, demografia, demográfica, pesquisa social empírica, etnologia, antropogeografia, ciências da comunicação, lingüística, ecotropologia, pedagogia, ciência das religiões, ciência sobre o Estado (“Staatswissenschaften”), ética social, psicologia social, psicanálise, sociologia geral e sociologias especiais (da política, do direito, da moral, da estética etc.), economia e quanto mais que alcançável for. Há um princípio fundamental: o homem foi feito para ser feliz, pairando acima da simples animalidade. Isto o define.

B — A inexigibilidade de outra conduta jurídica do agente. Há outra descriminante a que aludem os penalistas: a inexigibilidade de outra conduta jurídica do agente nas circunstâncias espaço-temporais das forças do momento histórico. O assunto é também existencial, experimentada a vida individual e social dentro do conjunto de necessidades e anseios, limitado tudo isto pelo quadro real-histórico das ocorrências do ser humano, como ele é, como pôde ser e como ainda poderá ser. Já se vê o difícil campo de pesquisa em que se encontra aí novamente o homem reflexivo. Nem admira que sejam assim as coisas. O mundo é mesmo complexo: diversificado e denso. Sabemos muito pouco e de quase nada. Aristóteles, e com mais precisões, Santo Tomás o percebeu. Mostra o aquinatense que a inteligência humana (intellectus ipse) tem sua estruturação espiritual própria. E nessa sua estrutura está inscrito algo (“naturaliter menti impressum”), como resultado de sua integração nas “idéias eternas” por participação, pensava o santo. No caso especial dos princípios de bem (“bonum”), que presidem aos fenômenos humanos de justiça (e do direito também) parece que é mais intensa a atuação íntima dessa estrutura inata, de tal modo que “justum naturale non potest ignorari (Summa Theol., I, 94, 5, c).

Insistindo no possível, mas difícil conhecimento das “coisas contingentes” (=dos fatos humanos, diríamos) como as do inter-relacionamento humano em matéria de justiça e de direito, S. Tomás reafirma a sua diversidade e a complexidade desses fatores. Onde entra a vontade humana em assunto de acerto com a teoria e prática da justiça (virtude com sede na vontade, alega), as relações são mais complexas do que na biologia. Por isso é difícil entender o próprio conteúdo das leis – “intelligere ea quae leges dicunt” (In Eth., L. V. 1. XV, n. 1.075). O mais delicado é aplicar as leis exatamente com é imperioso que se apliquem – “sicut oportet” (In Eth., L. V. 1. XV, n. 1.076).

Direito escrito e a equidade do direito não escrito. É bem por isto que, para a exegese do direito positivo (posto pelo homem, notadamente o direito escrito), é insuficiente a literalidade — “há mais coisas” diríamos nós plagiando. O direito escrito há inevitavelmente, ao ser aplicado, de completar-se com eqüitativo (epiiches est quoddam iustum). Não admira, pois o particular (=a concretude histórica dos fatos) é como que de número infinito, escapando à inteligência humana a capacidade de abarcá-lo integralmente, quando legisla (In Eth. L. V, 1. XXVI, n. 1.083). Em muitos casos é impossível fazer-se um juízo universal de “verdade-erro”. É exatamente o que ocorre em se tratando da conduta humana, sempre contingente. Qualquer proposição (=juízo) que aí se forme estará inçada de exceções.

Ao tema. Tanto o estado de necessidade, como a discriminante mais recente de inexigibilidade jurídica de outra conduta do agente, são acontecimentos da própria natureza, que os antigos denominaram “direito natural”. Surgem assim essas regras jurídicas não escritas, porque nenhum legislador é onisciente. Homem algum é capaz de prever a enorme variedade do mundo fático, que ele não percebe senão em pequena parte. De mais a mais, as necessidades humanas abrem caminhos heterônimos, livres, independentes do legislador ordinário; partes da natureza, elas são algo assim como juristas “de sexto sentido”...

Vamos a um exemplo. Haverá casos em que o subalterno de um ministro corrupto não conta com recursos psíquicos próprios para deixar de cumprir uma ordem ilegal, através da qual o ministro vai se enriquecer. Poderá ser vítima de um falso inquérito para perder o cargo. Poderá inserir-se-lhe o nome indevidamente em outros casos de corrupção, por obra do mesmo ministro corrupto poderoso. O sacrifício exigido ao vitimado é tão grande que humanamente não se lhe pode exigir outra conduta senão cumprir a ordem imoral do corrupto. Nessa situação as pessoas equilibradas não censuram a obediência ilegal ao ministro corrupto.

Outro exemplo. Essa mesma inexigibilidade de outra conduta do agente possivelmente se aplica ao abortamento eugênico. É o praticado quando o feto é portador de anomalia grave e incurável. Os dados obtidos sobre certo feto podem ser incompatíveis com a vida — “o feto não dispõe de qualquer condição de sobrevida”. É um provável natimorto. Estará na lei brasileira a descriminante de inexigibilidade de outra conduta do agente neste caso? Não é ele considerado como necessário, nem como “aborto sentimental”, mas a situação fática do aborto eugênico pode ser tal, segundo dados da ciência positiva, que esse abortamento pode mesmo excluir a reprovabilidade do cometimento; deixa de ser ilícito, não há culpabilidade, pensam alguns. A inexigibilidade de outra conduta do agente não o permite.

Opiniões. Outros autores pensam que só cabe a descriminante da inexigibilidade de outra conduta do agente, quando o sacrifício de algum bem representa valor igual ou superior à coisa sacrificada. Outros se referem a um comportamento “não razoavelmente exigível”. Concordam muitos em que a inexigibilidade de outra conduta do agente é a mais importante causa de não-culpabilidade (=pré-excludente de ilicitude), mesmo já se sabendo ser ela é de difícil análise. Essa dificuldade conduz alguns pensadores a pensarem na inadmissível pré-excludente: importaria muita insegurança jurídica, enfraqueceria a legalidade, geraria confusões mentais de tal porte que surgiriam muitas absolvições infundadas. Contestam outros dizendo que sistema penal fraco é aquele que admite punição em casos em que era impossível ao agente praticar o ato legalmente escrito como ilícito: embora presentes os pressupostos de uma absolvição, o medo ou a preguiça do pesquisador levá-lo-ia, contra a natura rerum, à expulsão da inexigibilidade de outra conduta do agente dos sistemas jurídicos.

A nossa opinião sobre a inexigibilidade de outra conduta do agente. Os brocardos antigos, geralmente escritos em latim, devem levar-se em conta por indicarem a tradição das concepções no correr da História, séculos a fio. Esses brocados variam de redação, mas, no fundo significam que “ninguém é obrigado a fazer o impossível”. Eis aqui, uma lista das expressões latinas significativas, a traduzir em símbolos lingüísticos a mesma idéia de impossibilidade humana do agente. Entremos às mais comuns dessas máximas escritas em latim:

Ad impossibile nemo obligatur. *Ad impossibile nemo tenetur. *Ad impossibilia nemo tenetur. *Impossibilium nulla obligatio est. *Impotentia excusat legem. *Lex non cogit ad impossibilia. *Nemo ad impossibilia tenetur. *Nemo potest ad impossibile obligari. *Impotentia excusat legem. *Obligatio impossibilium nulla est. *Ultra posse nemo obligatur. *Ultra posse suum nullum lex iusta cogit. *Ultra posse suum profecto nemo tenetur. *Ultra vires nemo tenetur. *Necessitas reducit ad moerum ius naturae *Necessitas vincit legem. *Necessitas non habet legem.*Necessitas est lex temporis.

De modo que o quanto dissemos acima sobre os dados recolhidos das ciências sobre o ser humano quadram bem aqui. E é possível dizer mais dentro dos quadrantes mais estritos do processo jurídico de adaptação social.

Fundamentos constitucionais da inexigibilidade de outra conduta do agente. A pré-excludente inexigibilidade de outra conduta do agente é regra jurídica não escrita. Pensamos estar ela implícita nos princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988. Bastamo-nos com indicar os principais: Preâmbulo — [...] Estado Democrático, destinado a assegurar [...] o bem-estar, o desenvolvimento, [...] a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista [...]. Dos Princípios Fundamentais — Artigo 1º [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...] Art. 3º [...] Constituem objetivos fundamentais — I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...].

A priori não se consegue afastar uma situação supositícia em que o bem-estar mínimo, contrário à insuportabilidade do sofrimento, venha a impor a alguém ou a todo um círculo social, a necessidade de sacrificar um zigoto, ou a célula-tronco de um embrião. (Ela é encontrada “em células embrionárias e em vários locais do corpo, como no cordão umbilical, na medula óssea, no sangue, no fígado, na placenta e no líquido amniótico”). Essa admissão, ou do estado de necessidade ou da inexigibilidade de outra conduta do agente, pode ser um ato de justiça e um gesto de fraternidade. Andam de parelha o Direito e a Moral.

O desenvolvimento da ciência poderá ser tão premente e tão socialmente útil que seja insuportável atrasar as pesquisas, ainda sabendo-se que numa delas pode surgir a morte de embriões tais que, inviáveis, acabariam sendo rejeitados, sem aproveitamento algum em si mesmos. E há mais: com alto grau de probabilidade, poderiam eles converter-se num benefício à salvação de vidas e à ajuda de pessoas sofredoras que perderam alguns movimentos do corpo. Quadra pensar ser esta uma situação fática capaz de uma consecução maior de exercício dos “direitos humanos”, e de fraternidade, e de solidariedade.

Nem parecerem discrepar as concepções religiosas. No cristianismo do Ocidente há indicações de serem divinamente boas as ações praticadas para esse fim. Recordemos algumas. “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, “Procurai primeiro o reino de Deus e a sua justiça; tudo o mais vos será dado por acréscimo”, “O Reino dos céus está dentro de vós”, “A letra mata, o espírito vivifica” etc.

Pontos comuns entre a inexigibilidade de outra conduta do agente e o estado de necessidade. Há pontos comuns entre a tabula unius capax (estado de necessidade) e essa inexigibilidade de outra escolha, para aplicação segura em alguma situação individualizada. Cuida-se, repitamos, da tomada de posição em face do dos recursos e valores do agente em sua individualidade efetiva no espaço-tempo, extra-mentalmente pensado. Tem de agir como um “homem de bem”. As ações, com que se atende à necessidade de exigências interiores de felicidade, são ações de valor. Recursos são as virtualidades e poderes instrumentais, individuais ou sociais, necessários à prática de ações.

O Bem humano. Bem máximo para os seres humanos é a felicidade. Consiste ela na consecução do que for apropriado à dignidade deste único animal dotado de inteligência e capacidade de amar — o animal homem. Consegue ele ser feliz é com atividades: será pela prática continuada de atos (hábitos) contidos nas suas duas potencialidades: as éticas e as dianoéticas — a prática da excelência de vida (com as virtudes em conduta permanente e com o exercício da inteligência contemplativa). Assim a questão discutida sobre o direito de nascer, como (de passagem) a respeito do aproveitamento de células-tronco, tem de assentar as suas bases nessa concepção dos seres humanos, naturalmente determinados a viver associadamente porque é animal político. O Bem de uma pessoa completa-se necessariamente com a vida na polis. O individualismo, forma de pensar o homem, é um erro. A asserção deste erro deixa de ser, pela ciência positiva, uma matéria de subjetividade porque as ciências particulares, aplicadas à sociologia, apontam convictamente para isto: não é possível alguém ser feliz se não se ocupar também com a vida dos seus semelhantes, servindo a eles de algum modo, vencendo receios infundados e confiando no direito-dever de atuar com inteligência.

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Recapitulação e conclusões finais. A vida feliz é um fim em si. Felicidade é uma maneira constante de se completar o ser humano, um modus essendi no qual a instintividade animal pode ser superada sem trauma pela vivência da solidariedade, da ética e da intelectualidade, dos costumes dignos e da inteligência crítica.

Todo esforço há de ser feito para se manter a vida do zigoto e de outras células, cuja morte nulifica a vida de seres humanos em início de formação. Mas, complexíssimos que são os fatos da existência global, há situações naturais efetivas em que o sacrifício desses minúsculos seres se justifica plenamente em função mesmo das vidas de outros seres humanos, na procura do bem, pessoal e coletivo.

Parece manter-se atual o pensamento de Aristóteles a esse respeito. Diz ele ser a vida espiritual a maneira de ser da pessoa boa, feliz em alto grau: além de ela estar em estado duradouro de culto das excelências morais, mantém ainda o cultivo constante (hexis) destas excelências “dianoéticas”: ciência, capacidade artística e técnica, sagacidade, racionalidade, sabedoria de vida, lógica do pensamento. Viver nesse estado, superior à capacidade do animal bruto, distingue e define o homem. E aí está a felicidade do ser humano — o Bem. Isto é um fim em si mesmo e não um “valor” instrumental. Essa felicidade é, por isso, auto-suficiente, qualquer que seja a posição social da pessoa. A grande maioria dos homens de bem vivem na sociedade; é um animal social. Este é o estado de vida desejável por si mesmo: uma atividade vital dos elementos superiores do ser vivo. O bem humano situa-se, pois, na nesta especificidade. Sabemos destarte o que é uma pessoa boa: pelo critério da nobreza natural. O animal carece de nobreza, de dignidade — não pode ter consciência de alteza moral e intelectual. Carece delas. Logo, não se estima.

O conceito existencial de pessoa provém da homenagem natural que o Instinto-inteligência, na maioria dos seres humanos, precisa de prestar ao componente mais elevado de si próprio, ou seja, às potencialidades convertidas nos hábitos mantenedores dos níveis de vivência supra-animal: poder pensar e poder viver honradamente. Ser pessoa (boa) é ser nobre.

Temos pois de pensar que podem surgir situações nas complexidades da vida em que um ser vivo humano pode ser sacrificado. É bem o caso das descriminantes faladas: estado de necessidade e inexigibilidade de outra conduta do agente.

É muito árduo construir ciência. Esta dificuldade costuma ser obstáculo a alguns desses cortes necessários da vida humana — morte do zigoto ou aproveitamento de células-tronco. Quando a aceitação de dogmas domina os cérebros, falta coragem para avanços e renuncia-se ao conhecimento. O medo faz abandonar-se o estudo das pré-excludentes de ilicitude.

Para se conseguir algum progresso nas relações sociais mais estáveis (religião e moral) é indispensável (1) a virtude da coragem, (2) conhecimento confiável. Vejamos.

(1) A coragem. É de temer-se o pensador temerário como é de temer-se também o acovardado. O meio-termo aristotélico recebe hoje versão para além da medida aritmética. Trata-se da lei natural da unideterminação (a Eindeutigkeit desenvolvida por J. Petzoldt): em cada segmento de Espaço-Tempo-Energia a trajetória única possível, a ser aceita pelo estudioso ao pesquisar o ser em movimento, só pode uma. Esta é a melhor e não outra qualquer; outra qualquer escaparia do mundo real. Pode ser a solução tal que direitos de outrem tenham de ser sacrificados. Isto pode ser favorável à felicidade de outrem, que a não poderia obter por outro meio qualquer.

O não-acolhimento ideológico da justificativa de estado de necessidade ou de inexigibilidade de outra conduta do agente, em cada caso particular, concreto (por força de dogma religioso ou por rigidez moral anticientífica), cairia na abstração oca, sem sentido na efetividade do mundo real (tanto do puramente fático como do mundo fático-axiológico).

(2) O conhecimento científico. O conhecimento mais confiável é o conseguido pelo indutivo-experimental: começa com fatos, passa pelas mais subtis e penetrantes elaborações mentais e termina por conferir cada resultado com os fatos. É, pois, pela ciência das realidades postas (com o donné, sem contentar-se com o construit). Deste modo o ser adapta o Eu — o seu complexo instinto-inteligência (=Homem) crítico — à percepção dos dados externos e internos; passa a errar menos. Acerta um cientista brasileiro ao afirmar que [...] “Valores individuais são adaptações de um objeto a um sujeito; valores coletivos, adaptações de um objeto a muitos sujeitos; os valores passageiros são passageiras adaptações, e persistentes valores são adaptações duradouras. Tal o lado objetivo da relação de valor, lado biológico e fecundo. Daí é fácil chegarmos à distinção dos atos: ato mau é o que diminui a soma de valor; ato bom, o que conserva ou aumenta”. De modo que a ciência é a aliada necessária do discernimento — descobrir quando é boa uma ação e quando ela é condenável pelo homem.

As concepções religiosas tradicionais hão de ser encaradas e superadas sempre que elas travarem a expansão do respeito devido à dignidade dos seres humanos. Cumpre seja a pouco e pouco vencido o temor da interpretação das normas, feita mediante a análise livre dos fatos, com a aplicação neles das descobertas reiteradas das ciências.

Serve a tanto o trabalho humilde e corajoso dos homens de ciência positiva, ou ao menos equilibradamente reflexivos. Ser uma pessoa de ciência, ou reflexiva, é modo de vida muito compatível com alta religiosidade, ascética e mística. Parece mesmo correto dizer-se que o sentido da vida de qualquer um, na maioria dos casos, inclui a admissão da Transcendência. Seria muito difícil uma vida bela, plena de sentido, sem alguma experiência pessoal com o mundo Divino. Segundo um geneticista norte-americano a fé em Deus está nos genes. Muitos autores sentiram isso em si e viram-no nos outros.

É como que uma missão do homem de reflexão, amante da vida em plenitude na complexidade dos conhecimentos, trabalhar no sentido de levar-se, e de levar o próximo, às altitudes e amplitudes da existência, cooperando humilde e fraternalmente com outros homens, companheiros seus de caminhada. Mesmo que incompreendido, combatido e perseguido, estará servindo a seres humanos, amando-os, vivendo satisfeito e convivendo feliz.

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