terça-feira, 30 de junho de 2009

CONFLITO E MUDANÇA SOCIAL ÍNDICE INTRODUÇÃO I – MUDANÇA SOCIAL: A DIFERENCIAÇÃO A) Teoria funcional da mudança social B) Fontes endógenas e exógenas da mudança social C) A diferenciação D) A mudança resulta da diferenciação II – TEORIA DO CONFLITO SOCIAL A) A título de preâmbulo B) Tipos de conflito C) Enfrentando o conflito III – ALGUMAS CONCLUSÕES PROVISÓRIAS ** ** ** ** ** ** ** ** ** ** ** INTRODUÇÃO Na interpretação do funcionalismo mais ingênuo – de S. Maine e de E. Durckeim, por exemplo – o espectro da análise histórica revela duas fases claras da estrutura social dos grupos humanos: 1) as sociedades primitivas, pequenas, intensamente coletivas; 2) as modernas, expansivas e contratuais. A coesão do grupo é, naquelas, caracterizada pela posição de sangue, coincidente com a do prestígio. O laço moral repressivo é forte. A subjetividade é pré-convencional, resultando numa solidariedade mecânica em que é mínimo o risco de desagregação, anomia e desestruturação. O sistema assim vigente estpa muito distante de ameaça de implosões. A análise de M. Weber em “Economia e Sociedade” é mais rica. Trabalha ele com os seus “tipos ideais”, mas de tal modo trançando-os e entremeando-os que a visão histórica é mais densamente descritiva e realista. A civilização primitiva apresenta uma ordem social basilar de natureza tradicional patriarcal: direção da gerontocracia. Do ponto de vista cultural prevalece o monismo sociocêntrico, com pensamento mitológico e comunicação altamente simbólica. A economia é quase exclusivamente familiar, em estado de comunismo caseiro; as trocas, quando as há. são em espécie. A consciência autônoma, na ordem do aprendizado (educação), é praticamente nenhuma. São fortes as relações concretas de dependência e lealdade incondicional (“bom filho e bom servo”). No estágio seguinte – e passagem do arcáico para o histórico – salta-se da tradição patriarcal para a tradição patrimonial. Da visão mágico-mitológica caminha-se para uma cosmovisão metafísica religiosa. A base econômica é a do império patrimonial; temos a dominação do sultão, do senhor feudal, do régulo absolutista (príncipe, senhor da terra). Governa ele os súditos de maneira menos direta e próxima. O começo do pensamento empírico faz soltar-se mais decididamente o pensamento, que se alça aos vôos metafísicos bem como às coerências de valores indiscutíveis, cujo trançado constitui a ética de convicção. Atuam elites religiosas como sacerdotes, profetas e mesmo filósofos. Pequenas cidades têm relativa auto-suficiência econômica. Uma economia “natural”, que se abre às perspectivas do mercado econômico. Nessa fase já se esboçam os primeiros gestos do capitalismo político. No mundo educacional dá-se o surto das universidades e igrejas. As relações de lealdade pessoal ganham em abstração, inclusive com avanços de autonomia de consciência; a figura típica é a do “súdito obediente”. Firma-se mais acentuadamente a ética de responsabilidade: pensam-se os meios e a sua adequação técnica e moral em relação aos fins e às conseqüências da ação social. Medem-se forças, equacionam-se mais maduramente as circunstâncias no desempenho da eficiência. Assume-se a responsabilidade pelos resultados para além da pura paz de consciência decorrente, na ética de convicção, da coerência de princípios e de convicções, que esteiam qualquer tomada de decisão e qualquer luta. O terceiro estágio da civilização na visão weberiana é o da modernidade. Denota-se a diminuição crescente do despotismo em todos os níveis: político, cultural, econômico e educacional. Caracteriza-se a política, como relação social, pelas regras do jogo do poder na organização do grupo humano e na distribuição dos focos de dominação e de alianças. Mas a dominação adquire uma dimensão de legalidade: plebiscito, conselhos, parlamentos e burocracia. Na instância cultural assiste-se a maior aproximação do pensamento com a consulta aos fatos. É o controle do pensamento pela experiencialidade, pela empiria. Os homens são “cidadãos”, governados por políticos profissionais. Prevalece decisivamente a ética de responsabilidade deixando entrever amadurecimento ético-cultural. O conhecimento adquire maior autonomia. A secularização da análise antropológica desmitifica a história em novo passo de “iluminismo”, agora à cata de concretude e de demonstrações a respeito do destino do homem (“desencantamento do mundo”). A diferenciação semiótica conduz a maior precisão do pensamento e da comunicação; a linguagem das ciências particulares ganha especificidade e confere-lhes mais exatidão, resultando em maior desenvoltura da pesquisa, que se desprende do dogmatismo da tradição. O teocentrismo distancia-se das perspectivas humanas em termos de concepção política e idealização do mundo. É o tempo do intelectual liberto e da emancipação da inteligência, livre de imposições místicas. No plano econômico é a vez da economia de mercado, em que todos se apresentam como “cidadãos”, “seres livres”, aptos para contratar. No campo educacional pululam as escolas públicas. Delineia-se o tipo autônomo de consciência, mormente em face da autoridade religiosa e da ética tradicional. Os seres humanos recebem a cunhagem atual de “bons cidadãos”, de “cidadão do mundo”. O direito era irracional e formal na “ética mágica”, irracional e material na “ética moral”, racional e material na “de convicção”; torna-se racional e formal. É agora lógico-abstrato, dotado de principiologia jurídica específica na “ética de responsabilidade”. E também o tempo da assunção de riscos na conexão meios-fins. Aprofunda-se, ao menos da democracia liberal, a distinção entre o direito público e o direito privado. Isto depois de já ter deixado para trás, como realização das fases anteriores, o discrime entre direito civil e penal, e a distinção entre direito sagrado e direito secular. A modernidade é, portanto, de “feição contratual”, com aprofundamento da divisão do trabalho. Para a ótica funcionalista a problemática da mudança social — registrada pela História de modo desenganado — planteia-se em termos de lograr o equilíbrio entre persistência de identidade de certo sistema e a sua diferenciação no tempo e no espaço. A perda de identidade é sinônimo de crise, que há de ser superada pelo fato mesmo de ser desfiguramento da identidade sistêmica. Fica bem clara a questão de controle das mudanças e de disciplinação dos conflitos como condição indispensável para que se não esboroe o sistema. E o funcionalismo clássico invoca a regulamentação do direito como instrumento indispensável à conservação da identidade do sistema submetido a mudanças, a fim de que não seja ele destruído. O fato é, porém, que a sociedade moderna se complexifica com abundância e riqueza de diferenças funcionais. Evidenciam-se relações de maior igualdade entre ordens parciais dissimilares. Os subsistemas multiplicam-se, como que obedecendo ao princípio físico do determinismo e à lei biológica da variabilidade. É versão sociológica da lei da integração e dilatação dos círculos sociais. O conhecimento, a despeito da sua imensa relatividade, sobretudo no campo mesmo da sociologia, tem papel relevante, com reflexos da multifária aplicação no campo da tecnologia – esta por sua vez sob o impacto da ideologia. A vantagem metodológica que leva M. Weber sobre o funcionalismo está na circunstância de ele, como K. Marx, ter sido mais penetrante e crítico em relação ao problema central do conflito, dentro dos sistemas sociais da modernidade – houve-os sempre, em épocas precedentes, mas acentuaram-se sobretudo depois da primeira revolução industrial. Os anteriores funcionalistas parecem preferir ignorar o conflito. Adotam posição idealístico-voluntarista, como que para desfazer-se intelectualmente de um elemento indesejável. Relativizam-no, crendo inclusive na neutralidade do estudioso e do governante. Pensam ser questão de repressão, quando não contornável. Embora vendo com clareza várias das iterações sociais – com que se enriqueceu a sociologia —, o velho funcionalismo deixou de desvendar a fundo a grave questão da legitimidade com a qual determinado sistema tem oportunidade real de desenvolver-se de acordo com as concepções e crenças dos seus próprios elementos, em ritmo de variação dinâmica. Sua tendência conservadora vai longe demais para que possa traçar esquema teórico básico capaz de imprimir agenda de soluções para o problema da mudança. E mudança tanto mais rápida quanto impulsionada pela instabilidade das necessidades econômicas e pelo jogo violento do poder. Examina em suma as redações sociais de cima para baixo, numa perspectiva hierarquizante, em vez de compreendê-la por dentro e por fora da lógica estatal (“lógica infra-estatal”). Ora, a vantagem maior de M. Weber está justamente no fato de ter quase que se adiantado as próprias críticas de neo-marxismo atual , enfrentando o problema ético da legitimidade. Buscou encher de realismo histórico a análise da crise na sua etiologia ideológica. A tomada de consciência da crise da sociedade e da crise simultânea do Estado – como esgotamento de capacitação para dar respostas a demandas –, não chegou a conduzir M. Weber à superação do liberalismo agudo, busca desesperada de solução para o problema do dilema socialismo-capitalismo. Mas por certo que elevou a análise sistêmico-funcionalista a grau assaz profundo de compreensão dos problemas sociais, até com o fornecimento de paradigmas ainda válidos para o estudo do conflito e da crise – com que se debate o Ocidente . A visão atual dos estudos sociológicos é tecida das duas visões, ambas as críticas: o funcionalismo crítico de M. Weber e a crítica neo-marxista (esta com evidente ênfase na transformação a caminho de crescente socialização da economia e da cultura, mas já em ambiente de democracia). É por essas vertentes que perambula o pensamento ocidental, à busca de refrigério para a seca da crise, na polarização legitimidade-governabilidade. A pesquisa e a práxis política labutam por aprofundar o questionamento dos valores, para compreender os anseios e os movimentos mais profundos da sociedade complexificada dos dias de hoje. Nos países desenvolvidos, de capitalismo avançado (a sofrer alguma intervenção do Estado Social), como também nos do Terceiro Mundo, sob forte influência do capitalismo internacional, vem sendo assim nos meios acadêmicos. Tem-se hoje a convicção teórica bastante desenvolvida no sentido de a governabilidade ser possível somente com a simultânea percepção do sentido da lógica da consciência da crise. Pela constante comunicação entre pensadores, governantes e governados, e pela crescente participação setorizada de todo o corpo social, há esperança de se mudar o necessário e de se manter o indispensável. A expansão transnacional da economia, EEUU à fonte, vem causando destruições. O “Consenso de Washington” tenta manter vivos e atuantes os efeitos do neoliberalismo, que falta ocupar-se de equipar pessoas com meios de lhe serem atendidas as necessidades fundamentais da pessoa: abrigo, comida, roupa, emprego, alfabetização, treinamento profissional, médico, hospital, remédio, proventos melhores na aposentadoria, lazer estimulante! Ao crescimento econômico de países mais ricos corresponde maior penúria aos já empobrecidos; nestes, distribuição de renda perigosamente desequilibrada. O poder político mais ou menos velado das grandes empresas norte-americanas determina boa parte da orientação da mídia — eficiente formadora de opinião nos EEUU. O pensamento deste Povo é pouco solidário em matéria de estruturações sociais. Ruins as ##. O escopo deste trabalho é de trazer reflexões sobre os temas ligados ao conflito social e às mudanças reclamadas pela pulsação social de bilhões de pobres. É ingente a tarefa e urgentíssima, de se traçarem matrizes da governabilidade que a Constituição Federal tem de imprimir à forma social, guiada pelas regras jurídicas do Direito das Gentes. Cumpre lograr-se princípio organizacional básico que viabilize a continuação da vida social e lhe dê medidas de alcance prático para dar largas às mudanças. Sem estas chega-se à gravidade do impasse, do caos . [90% de aprovação a Bush contra Afeganistão — Prepotência de Bush sobre a ONU para mover guerra ao Iraque c/ prevalente interesse pelo petróleo do Mar Cáspio — Prepotência de Israel em face da ONU para matar palestinos com o argumento de legítima defesa prévia]. I – MUDANÇA SOCIAL: A DIFERENCIAÇÃO A evolução (e o desenvolvimento) de certa estrutura social dá-se, na concepção de T. Parsons, pelo fenômeno da diferenciação. Ocorrem então distintos modelos institucionais a sucederem-se. Daí a explicação analítica para as mudanças sociais . Para se penetrar a teoria parsoniana é de mister assentar alguns dos seus conceitos fundamentais. A) Teoria funcional da mudança social. Os conceitos fundamentais na análise desse fenômeno são: estrutura, equilíbrio, processo, papel-coletividade, modelo, valor-norma e estabilidade. Estrutura. É o conjunto de elementos mais ou menos fixos e estáveis susceptível de receberem alterações em fatores que também se lhe aglutinam substancialmente. Há um fundo estático de partes essenciais, que ficam; há um complemento dinâmico, composto de elementos naturais — estes se substituem e se sucedem. Assim, o quanto se passa com um corpo vivo, na biologia, é acontecimento natural que se repete, com mais complexidade e riqueza, na família, numa pequena comunidade territorial (seita religiosa, ou associação moral — por exemplo) no Município, no Estado-membro, na União . Equilíbrio. É a situação de constância essencial de uma certa estrutura. Trata-se de um estado de permanência relativa, no seus sistema de trocas. É observável intra-sistemática e extra-sistematicamente: identidade de linhas relacionadas de energias no seu interior, embora submetido o sistema em questão a incentivos interiores e a solicitações exteriores, no sentido de disrupção, e desagregamento, e mudanças. Processo. É a dialética factual, real-empírica, consistente na dinâmica interativa entre elementos perturbadores da simetria — tendentes a alterar a estrutura — e as unidades estruturais empenhadas em manter a identidade essencial do sistema . Temos portanto dois pólos lógicos e ontológicos essenciais: a estrutura e o processo. A estrutura mantém a idéia (e realidade empírica) de equilíbrio, estabilidade, simetria interior, conservantismo. Já o processo conduz ruptura, desestabilização, diferenciação intrínseca, evolução. Papel-coletividade. Nos sistemas e subsistemas sociais, a menor unidade é o sistema. Corresponde biologica e aritmeticamente ao indivíduo. “Papel” tem porém um sentido dinâmico. Duplo, aliás: (a) é a orientação que o ator ou participante imprime à via social e (b) é a modalidade de reação que ele é capaz de apresentar à ação de outro papel ou outros papéis. Papel é portanto ao mesmo tempo a orientação ativa do ator e a modalidade passiva dele. Ora, em nível superior de complexidade, ou seja, acima dos papéis, estão as coletividades. Elas são portanto unidades sociais mais complexas na interação social, na ação social. Note-se a importância teórica da distinção entre papel e coletividades inclusive para se discutir, mesmo em termos de uma visão neo-marxista — de Klaus Offe, por exemplo — as tentativas de superação das crises democráticas de governabilidade. Os papéis, se isolados, pouco têm a fazer no sentido de conseguir valor de pressão social. Podem muito mais as coletividades (partidos, associações, parlamentos . Estabilidade é estado de equilíbrio. Tem pressupostos essenciais, que são: 1) para ser estável, determinado modelo normativo (uma Constituição Federal, por exemplo) tem de ser constante no fluxo do tempo: mudar pouco, ser durável; 2) para tanto é indispensável a adequação desse modelo, no qual ser e dever-ser não se distanciem sensivelmente, de tal modo que a atuação dos papéis e das coletividades tenham ações previsíveis e esperáveis, dada a sua propensão intrínseca; 3) é mister que o modelo seja institucionalizado pela via de consenso (compreensão e aceitação), de tal sorte que o ator se veja no modelo como sujeito dotado de pautas racionais de comportamento; 4) precisa o modelo normativo de ser capaz de integrar os papéis e as coletividades interiores, harmonizando complexidades, coordenando diversidades, integrando a co-existência de diferenças, assimilando o pluralismo. Modelo é a figura resultante da descrição das interações e das expectativas de interações no relacionamento ativo-passivo dos papéis, entre si e com as coletividades. Como uma parte dessas relações empíricas é esperada mas nem sempre realizada, segue-se que o modelo é em parte normativo (dever-ser) e em parte é puramente descritivo (ser). Ou seja, algumas interações esperam-se como adequadas ao equilíbrio dinâmico, relativo, do sistema. Como elas podem não acontecer, mas são necessários ao funcionamento do sistema, vislumbra-se então a legitimidade da sanção. Esta vem a ser portanto a correção, ou tentativa de correção de uma micro-ruptura determinada, por disfuncionalidade identificada na vida do sistema. Valor-norma é outro binômio com que se há de trabalhar na análise das estruturas e das mudanças. O valor é um padrão regulador de alcance mais geral para determinado sistema, independentemente das condições e das considerações individualizantes de cada papel. Já a norma é um padrão regulador de determinados papéis, ou grupos de papéis, ou coletividades, definindo-lhes as ações esperadas dentro do sistema. O conjunto das normas subordina-se portanto à abrangência mais ampla e mais profundas dos valores, cujo padrão normativo é mais complexo e menos analítico na sua explicitude. Sistema e subsistema: a definição de papéis de coletividades, e de sistemas, é relativa. Diz respeito ao grupo de funções sociais, que se está a analisar. Assim, mesmo um papel isoladamente considerado, se o examinarmos na sua estruturação interna, mostrará “subunidades”. E o sistema integral, mirado na sua posição relativamente ao ambiente exterior, poderá exigir que se conceba apenas como subsistema, interior a um sistema mais amplo. B) Fontes endógenas e exógenas da mudança social O equilíbrio de um sistema social obedece à lei da inércia. Ele resiste às modificações . De modo que, para bem observarmos a arrancada das mudanças, convém identificar claramente os elementos “perturbadores” do processo, que a desencadeia e a orienta. Ora, a mudança intrínseca dos papéis tem causação exógena; consubstancia-se na pressão exercida sobretudo pelas estâncias culturais de formação social. Trata-se dos processos sociais de adaptação, os de natureza mais espiritual, que alcançam níveis mais profundos de consciência (Religião, Moral, Arte), — vista a estrutura do ser humano em linha vertical. Essa causação tem pelo menos quatro significados. O primeiro: a institucionalização de valores somente consegue ser efetiva (eficaz nos resultados) quando haja a concomitante atividade de internalizá-los de assimilá-los pela conscientização. Segundo: é de importância fundamental para a organização estatal a abertura de espaço para a integração espontânea de ideais culturais, deixando-se campo livre à produção de valores religiosos, morais, estéticos e do saber. Terceiro: as personalidades individuais mudam algo na sua estrutura em função das instituições normativas, sejam elas as mais formais (como o Direito, a política oficial, o plano econômico do governo) sejam as mais espontâneas — com as vivências religiosas, as experiências éticas e as concepções estéticas e científicas. Em quarto lugar, convém pensar em que a estabilidade, conjugada com a adequação social (acerto, verdade intrínseca, justiça material) das instituições, contribui muito para a estabilidade psicoemocional dos papéis, tornando mais calculável a sua conduta em face dos valores e das normas que traçam a fisionomia do sistema. Mas temos de contar igualmente com variáveis independentes. São capazes de brotar mais ou menos isoladas dentro do sistema social, e vêm dotadas de potencial de mudancista. É o caso, por exemplo, do surgimento de lideranças carismáticas. Podem impulsionar mudanças “por saltos”, de modo menos previsível. T. Parsons ocupa-se mais da ordinariedade das mudanças, numa explicação analítica que lhe parece suficiente. Para ele as instituições sociais, reduzidas à sua lógica formal, têm uma outra variável independente, que é a diferenciação. É variável independente, típica, importante para a compreensão do fenômeno da mudança social. C) A diferenciação Determinado papel percebe em dado momento que o sistema lhe é parco em capacidade de atendimento às suas necessidades. Emancipado, desprende-se então do sistema. Busca outro mais vasto, em que se integrar. Este é o esquematicamente o fenômeno da diferenciação, encontrável em qualquer sistema. Explica a mudança social, ao menos como um dos seus fatores, importante e até corriqueiro. De modo que, a insuficiência de recursos (motivacionais, ou materiais) para a consecução de metas pessoais dos papéis constitutivos de certo sistema, excita a experiência pessoal da frustração específica. Amostra: dentro de certa família, ou de pequena comunidade interiorana, ou de pequena empresa, o ator social sente-se adulto, independente, desadaptado, tocantemente às suas esperanças e planos. Desprende-se então e parte ao encalço de mais ampla oportunidade, em organização social dotada de maior complexidade, e riqueza de recursos. Tem-se aí uma micro-ruptura do anterior sistema. Desprende-se um dos seus papéis, ao encalço de integração diferente: outra estrutura, novas instituições, outros valores e normas, processos culturais diversificados. Dilata-se o círculo social. Por isso que o papel divergente se muda, mas leva consigo resquícios inapagáveis da linhagem de origem. Quando esse processo de diferenciação se acentua, o sistema perde os talentos emancipados. O aguçamento do fenômeno tende a fazer obsoleto o sistema anterior. Esmaece ele nas suas potencialidades. Caminha para o esgotamento. Mas a causação exógena — da opinião pública, por exemplo — pode determinar a sua re-organização intrínseca. Dá-se então um esforço, por vezes bem sucedido, de mudança do sistema. Se o conseguir, sobreviverá modificado, alterado, com algo de novo na sua estrutura. As formas de sua participação social alteram-se. É o caso, por exemplo, do novo papel da mulher, da modernização dos meios de produção, de alteração dos hábitos de consumo, de alteração de mentalidades (“Weltanschaungen”) e de interesses, dos tipos de jogo nas bolsas etc.. A integração dessas novas formas, nos papéis remanescentes, é possível mediante imposição de novas instituições formais, adequadas à nova instituição, que se esboça. D) A mudança resulta da diferenciação A governabilidade ou controle do fenômeno de diferenciação intensamente produzida depende da criação de oportunidades, de mecanismos de produção social: multiplicação de recursos, de padrões axiológicos e normativos adequados, de benefícios motivacionais e materiais, que satisfaçam aos papéis e às coletividades interiores. Para tanto é indispensável o talento criador de novas modalidades de integração social. Recursos diferenciados, outras formas de integração social. Recursos diferenciados, outras formas de produção (econômica, política e cultural), instituições modernizadas há de acolher os subsistemas dentro do sistema, que se expande. Isto implica desconcentração de poderes e de recursos para se alimentarem as novas demandas. Como se vê, a integração crescente dos círculos sociais acarreta esforço fecundo e não dispensável de “democratização” de recursos naturais. Cumpre, ao mesmo tempo em forcejar acertadamente a participação do Povo na produção e na usufruição dos benefícios do trabalho social . Essa perspectiva de expansão do sistema social, em ritmo de diferenciação, aponta para a necessidade de se diminuírem os desníveis de fortuna, de sorte, de destino — traçados pela história do individualismo possessivo, desde as sociedades primitivas marcadas pelo patriarcalismo até os nossos dias, carregados pela heranças desigualizantes dos mais fortes (mais fortes inclusive no egocentrismo possessivo). Não se pense aqui em tiradas moralizantes. A análise da ambigüidade encontradiça na dinâmica entre estrutura e processo, levada a cabo nos resultados e exigências da diferenciação sistêmica, indica a necessidade (entre outras medidas necessárias), da diminuição gradativa (e enérgica) das desigualdades sociais que atentam contra o mínimo de expectativas humanas em termos materiais e culturais. Impõe-se algum sacrifício de vantagens excessivas do ponto de vista das necessidades de papéis e de coletividades; não para extingui-las, mas para deslocá-las — alocação de recursos sociais, em benefício do sistema, para que possa ele subsistir, no tempo e no espaço. Nova ordem, superior em mais complexa, pede esse tipo de reabsorção de energias sociais, dos mais variados níveis ou instâncias de formação social, dos mais variados níveis ou instâncias de formação social. Resulta essa nova articulação do fenômeno mesmo da mudança social, normal, regular, determinado pelo fenômeno inevitável do alargamento do espaço social. A intervenção da inteligência, a tomada de consciência da crise formada, a abertura política disposta à crítica de novas formas e de novos valores, em diálogo rítmico com as diferenciações e conseqüentes alterações das redes estruturais — são posturas responsáveis de maturidade exigidas pela história contemporânea. Serve a intervenção consciente ao menos para diminuir em grau ótimo as conseqüências do conflito, realidade social que a leitura funcionalista não enxerga com a mesma clareza que a colaboração neo-marxista a viu. É certo portanto que o cálculo do dissenso tolerável é cálculo da capacidade de resistência do tecido social — papéis-coletividades, estrutura-processo, valores-normas, sistemas e sub-sistemas, ação intrínseca e ação extrínseca. Montada a equação (ou inequação) sistêmica de oportunidades funcionais da sociedade, as soluções haverão de dar-se em três variáveis, simultâneas e relevantes: segurança para as liberdades fundamentais, expansão democrática e progresso social com metas nítidas e métodos explícitos (ética de responsabilidade). São pressupostos e, ao mesmo tempo, programa de atividade incessante — porque contínua é a diferenciação social — de re-estruturação social (organizada e consciente). Mudança e recuperação de energias, rupturas constantes e remodelação de formas integrativas — novas, diferenciadas e não necessariamente cercadas pela histeria destrutiva e medrosa do conservantismo . Novos modelos não significam iludivelmente, sempre, rupturas totais e início “ab ovo”, mas em re-adaptações profundas: crise de identidade mas capacitação para conservar o mínimo preservável exigido pelo não-mutilamento da feição histórica de um Povo. Modelo normativo novo é renovação de modelo, com a adoção de novas formas integrativas justamente em função das aquisições históricas. Vamos a um exemplo: crescimento em igualdades não destrói a conquista das liberdades fundamentais (entre as quais a liberdade omnímoda de iniciativa privada e de ganhos individuais praticamente ilimitados não são elementos imprescindíveis). Se não forem encontradas formas intermediárias, energicamente eficazes, (eficientes e capazes), a subida de temperatura dos conflitos e a generalização da crise poderão determinar um “salto” (“natura facit saltus”) para uma estrutura social quase que inteiramente diferente — justamente aquela que mais dói aos reacionários e aos arraigados espíritos conservadores. Lembrança histórica é o das explosões populares. Levaram a dolorosos fechamentos sociais de esquerda, à ablação de conquistas democráticas e de muitas liberdades fundamentais. Ora, em todo o mundo assistimos a cenas desse tipo, mesmo em povos dos mais tradicionais e dominados por autocratismo conservador (China antes de 1.949, Cuba, alguns países árabes). A nova Constituição do Brasil de 1988, após a diferenciação eleitoral de 1.985 (inclusive com algo da variável independente do carisma Tancredo Neves), tinha de conter valores globais diferenciados dos anteriores, mormente no que diz respeito à participação popular na vivência democrática e, sobretudo em normas decisivas em direção ao crescimento social. Havia de ser assim em termos de direito ao emprego produtivo, à subsistência real, à assistência médico-odontológica-hospitalar de carentes, ao acesso efetivo à educação para todos os economicamente incapazes, ao acesso à criatividade pessoal. Essa guinada importaria em nova direção da economia, que não podia deixar de ser planificada a curto, médio e longo prazo com estratégias assumidas de realizabilidade efetiva, O planejamento havia de ser claramente exposto e discutido Os mais privilegiados tinham, já então, de ser persuadidos a fazerem concessões generosas. Cumpre sobrevirem as técnicas de execução eficiente. Numa palavra, há que submeter-se a revisão profunda o atual capitalismo brasileiro. A não ser assim, o sistema perde capacidade de resposta ao estímulo da diferenciação — endógenas e exógenas. É inevitável a sobrecarga na interioridade do sistema. Eclode na certa o conflito, ao menos na forma de ressentimento. Pode ocorrer o pior, que é o esgarçamento continuado do sistema por perda do ensejo de adaptação eficaz. Daí a importância da noção de conflito. II – TEORIA DO CONFLITO SOCIAL A) Preâmbulo Aos poucos vai diminuindo o abismo, ao menos aparente, que separava funcionalistas e marxistas. Parece que hoje assistimos a um certo idílio entre as duas interpretações da realidade sociológica: aos marxistas de hoje no Ocidente os mais conservadores adoçam o termo com um “neo”; os neo-marxistas correspondem: já não é tão crua a acusação de conservador a muitos sociólogos funcionalistas: são apenas “neo-funcionalistas”. A observação mostra uma pequena diminuição do grau de relatividade do conhecimento sociológico: são dados passos eficazes de aproximação em direção a realidade ontológica, ao material complexo do trançado da vida em comum, filtrada pelas seletividade do imaginário móvel, no qual todavia o conhecimento mais objetivo não se resigna ao afogamento, ao desespero, ao ceticismo . A sociologia do direito continua a trabalhar entrementes com a cesta de lixo da dogmática jurídica. Pesquisa os elementos disfuncionais do direito, como fato social altamente sujeito às influências subtis da política: as distorções da força, por trás da aparência do justo. Um dos compartimentos dessa investigação é a crítica à teoria do direito. No que esta minimiza importante componente da realidade (a complexidade do conflito), há que lhe ressaltar a omissão, a indiferença ao social. O resultado jurídico-sistemático advém do esforço vencedor bem sucedido, que geralmente ignora o conflito de classes (dentro delas e entre elas). Isto ocorre mormente quando, hierarquizadas durante o perpassar da História, num e noutro agrupamento humano, no tempo e no espaço; porque é dessa inequação ou injustiça material que as sistemáticas brotaram, de modo especial no Ocidente, depois das revoluções industriais. A vivência estatal, como também a experiência social incessante, não se esgotam no conteúdo extraível do sistema jurídico. A maioria mesma dos indivíduos ignora a produção oficial de normas de convivência. É obscura a legitimidade de muita lei. Cabe também à sociologia do direito efetuar constatações de ausência de correspondência entre incidência e aplicação das normas jurídicas – entre “vigência” e “eficácia”, como soem expressar-se sociólogos e filósofos do direito. Com maioria de razão toca-lhe examinar a legitimidade da regra jurídica: se a expressão dela, no seu conteúdo, atende à necessidade do equilíbrio do corpo social. Este é campo próprio da política científica, uma especialização da sociologia. Fundada nesse conhecimento, a ação política erra menos. Cumpre testar os confrontos valorativos e os procedimentos postos a serviço da sociologia jurídica. Muitos deles são energicamente efetivos, mas não se formalizaram na dogmática jurídica. Constituem uma espécie de “lógica infra-estatal do direito” . Os “direitos humanos” são quase sempre direitos a se exercitarem em face do Estado. Ora, o próprio Estado produz as normas oficiais do direito. O Estado mesmo aplica o direito por ele objetivado, para realizá-lo empiricamente — procedimento oficial de alcançar a “eficácia” da ordem jurídica. Indispensável logo, e ao mesmo tempo fecunda, é a crítica para que não se perca a consciência de crises. Estas se preparam no interior dos sistemas sociais (subsistemas) e ameaçam a própria estrutura do sistema global. Não é a crítica um empreendimento iconoclasta. Não visa à demolição do direito como fato. Sua função há de ser a renovada tomada de consciência de disfunções, de abertura de alternativas. Há de apontar soluções para as crises que venham abater-se sobre o direito vigente em decorrência da irracionalidade dos padrões de dominação. Esta é de institucionalização que se impôs. E resiste a diferenciações, a mudanças, ao reequilíbrio das relações políticas e econômicas. Acentua R. Dahrendorff — um não neo-marxista — este fenômeno destrutivo: tentar ignoraram-se os conflitos. Corresponde, em nível sociológico, ao fato psicológico de se reprimirem os conflitos emocionais individuais. Geram neuroses e explosões nos papéis e nas coletividades. Um dos germes da relatividade do conhecimento sociológico consiste precisamente em a força das determinantes exógenas canalizarem parte da própria seletividade dos temas que se levam à tona da consciência. Mais árduo então o evitamento dos conflitos e mais lento o progresso simplesmente “funcional” dos sistemas sociais. Esperável pois, claro está, a permanência conservantista de métodos, paradigmas, classificações e “tipos-ideais”. # perigo é a angústia de um “eterno retorno”: refugar as idéias e “soluções” encontradas para as diferenciações, sufocar os ímpetos de mudanças sociais. Nos centros de estudo, dos países avançados industrialmente (em que indivíduos e grupos alcançaram grau elevado de bem-estar), a preferência é pela ótica funcionalista. Acentua-se o elemento consensual, com perda efetiva de visão de outro elemento não menos relevante e poderoso da realidade: a dinâmica do conflito. Não se conhece na História, círculo social isento de conflito, de tal jeito que este não se pode interpretar como uma anomalia da vida. É, antes, como um fato natural, propulsor intrínseco, dimensão co-natural da vida em comum, qualquer que seja o grupo humano de que se trate. B) Tipos de Conflito Cumpre destacar os determinantes estruturais do conflito. Vem a propósito salientar como é gerado no íntimo da sociedade. Quadra analisar as suas dimensões, as suas espécies e a sua forma de canalização (com solução ou com pseudo-solução). Conflito, em sentido amplo, é toda oposição entre os elementos de um grupo sob a forma de luta, ainda que mais ou menos inconsciente. Ele é social quando os elementos em luta são grupos da sociedade (“coletividades”, na linguagem de T. Parsons). Agora, conflito social em sentido estrito é aquele gerado dentro de uma sociedade juridicamente organizada, em cujos pólos estão categorias sociais verticalmente hierarquizadas, em luta. Conflito em sentido estrito há também entre sociedades internacionais. No conflito propriamente dito a luta não ocorre entre iguais postos em linha horizontal. Tampouco quando os grupos contendores são entre si relacionados por continência (digamos, por exemplo, o Brasil com o FMI). O problema do conflito social em sentido estrito surge quando entre os grupos se configura a dominação hierárquica, numa relação fática de subordinação. Exemplos: pais – filhos, empregados – patrões, governo – oposição (nos governos autoritários). Nos anos 80 temos EUA – Nicarágua, URSS – Afeganistão. No novo milênio temos EUA- Alqaeda, EUA-Iraque. É difícil o conceito analítico, descritivo, crítico, objetivo — de “classe”. É fundamental, para a análise e classificação dos conflitos, evitarem-se as tiradas ideologizantes, as generalizações estéreis, os unilateralismos simplistas de divisão de classes. Tal é o caso, por exemplo, de chavões acríticos do tipo “o motor da história é a luta de classes”. Nos conflitos sociais em sentido estrito o próprio conceito de classe é relativo. Há que se trabalhar com ele em tomada de consciência de se estar lidando com um “tipo ideal”. Isto, posto seja mais ou menos denso de alguns elementos característicos, não esgota todo o potencial dos conflitos historicamente importantes e decisivos. É que empiricamente nem todas as sociedades apresentam os mesmos tipos de conflito. Nem pesa em todas elas, para a dinâmica das mudanças sociais, conflitos de mesma natureza. Estruturas diferentes podem dar surgimento a conflitos diversamente importantes. Todavia, os conflitos mais “gerais”, mais encontradiços, estatisticamente mais determinantes, soem ter o conteúdo de relações de poder e relações de produção. Ou seja, os conflitos mais comuns são os do sub-sistema político e os do sub-sistema econômico. Na Política e na Economia encontramos as relações mais conflituosas . Diante do fenômeno, duas leituras do mesmo fato contrapõem-se em paradigmas de interpretação: o funcionalismo frisa o aspecto consensual, o marxismo o conteúdo da fricção social. A seletividade preferencial do elemento consensual (pacto, integração) é pelo menos tão velha quanto Rousseau. Conta mais a estabilidade, arma-se a permanência do equilíbrio do sistema. Medra melhor neste terreno a semente do conservadorismo com as salvaguardas de salvação do “status quo”. Alimenta-se também aí a concepção de esperança no funcionalismo do pacto e do consenso. De outro lado, também é mais velha que as elucubrações de K. Marx (freqüentemente acertadas, aliás) a linearidade cosmovisual da sociedade como conflito (luta, força, coerção). Basta pensar-se na coação externa de T. Hobbes, para dominar a eficácia do dissenso social: integração pela coação, pelo medo, pela força, pela violência (a física, ou a simbólica). O que é, de qualquer modo inegável, segundo R. Dahrendorff a existência (e o efetivo funcionamento) do elemento coativo sob a forma de dominação, a política ou a econômica (além de outras menos dramáticas). A própria intensidade do conflito é já argumento simbólico forte para ambos os grupos de contendores: que se limitem, quanto possível às atividades conflituosas! Dahrendorff não se permite de um lado escamotear a conflituosidade; de outro dá certa razão à interpretação funcionalista. O custo social do confronto, reconhece, atua como válvula calibradora a bem da estabilidade. Não compensa levar a fricção social a extremos devastadores para ambas as partes . A tese de Dahrendorff não é compartilhada pelo radicalismo terrorista a que assistimos no 3º milênio: ETA, Tchechênia, Alqaeda, homens=bomba, Israel. A co-naturalidade do conflito leva a pensar no seu germe propulsor, indeclinável e aproveitável pela consciência. Erige-se como fautor de mudanças, também as construtivas. Há diferenciações exigidas pela própria estrutura social, em face de impulsos endógenos e exógenos. Fazem parte da “natureza das coisas”. Aparece como utópica, no espectro desta análise, a esperança numa “sociedade sem classes”. O que provavelmente deve ocorrer é mudança de forma do conflito; não a ablação dele. Seria uma cirurgia deformante da sociedade composta por seres humanos. Simetria absoluta é, nesta vida, a morte. Vem-nos aliás da física: é a dessimetria, e só ela, que pode determinar mudanças, enriquecimentos. De modo que a busca mesma de vantagens materiais (economia) e de poder (política) é um propulsor inextraível da sociedade. Outra coisa é a sua exata dosagem, na relatividade (também inescusável) de cada estrutura. A figura de cada sociedade histórico-geográfica difere uma da outra. De qualquer modo, é importante o confronto pelo poder. Encontramo-lo nos grupos dispostos em linha vertical. Nessa dissimetria, rica em conteúdo de dominação, o fim do dominador é manter-se na situação de contar com a obediência, no exercício de certo mandato (há sempre outros por trás de quem impera). Precisa o dominador de obediência das pessoas que em princípio são capazes de receber o mesmo mandato — como o caracteriza M. Weber. Assim, o esquema de dominação está exposto continuamente ao conflito. Encontram-se nele os seguintes elementos: a) hierarquia; b) atuação de mecanismos de controle; c) institucionalização da inequação dos poderes; d) fixação de limites à intensidade da dominação e regras “procedurais” endereçadas ao exercício desse controle; e) por conseguinte, a existência de normas de mútua regulação. Como se vê, o direito exerce função integrativa e conservantista, imprescindível, no esquema de dominação, co-natural às sociedades humanas. Os esquemas de dominação traçam-se também entre associações de domínio — com prestígio e benefícios de mais renda para os mais poderosos e inferioridade para os dominados. Bem visível é a presença de elementos políticos e econômicos, portanto. De novo esses dois processos de coerção social, mais instáveis e mais irracionais no seu modo de impor posições sociais: a Política e a Economia, ambas as constituírem processos sociais de adaptação próprios da co-existência entre papéis e entre coletividades. A cristalização estabilizadora desses esquemas tem freqüentemente forma jurídica com instituições e normas. E porque se cuida precisamente de dissimetria, tende a simetrizar-se com a sucessão de novos esquemas, por vezes qualitativamente menos dissimétricos que os anteriores. Donde se vê a inafastável, natural, constante iminência de conflito; atinge a própria discussão sobre o acerto da ordem jurídica vigente. Tanto mais ameaçadora é porém a probabilidade de conflito quanto maior o desequilíbrio da inequação de domínio e, quanto mais crescente for a consciência que toma a classe oprimida sobre a sua posição de desvantagem . É próprio dos grupos de dominação formar as associações de domínio em formas de estamentos, ou de corporações. Liga-os o interesse de superioridade, a ser mantido. As alianças destinam-se ao fortalecimento desses interesses. São vantagens intrincadas, complexas, cujo denominador comum é o fortalecimento ou pelo menos a mantença das posições favoráveis — de prestígio, de renda, de poder, de usufruição. A conservação desse desequilíbrio é sentida, observada e pensada pelos oprimidos do esquema. Donde a irrupção de fatores endógenos de desadaptação intensa. Papéis e coletividades inferiorizadas, na ânsia necessitante de libertação, nutrem forte expectativa de novas integrações. Cuida-se de fenômeno amplo da diferenciação, no sentido parsoniano. Estabelece um processo de formação e preparação do antagonismo e da luta, aberta ou escamoteada. A gênese do conflito inicia-se pela identificação de interesses comuns do grupo e pela localização dos interesses contrapostos do adversário. Segue-se a organização dos dois pólos, que se vão confrontar. O terceiro momento é a tensão: confronto mais ou menos aberto, acolitado pela articulação clara dos antagonismos. Nos regimes totalitários, porém, a posição tensional da oposição apresenta-se menos visível: difusa, espalhada, perdida. Dimensão importante, na análise do fenômeno conflitual, é o quanto de violência. Entende-se por violência a profundidade e o grau das medidas da força adotada. Há a distinguir-se ainda a intensidade e a densidade. Intensidade do conflito é a abrangência dos seus resultados, o peso da eficácia final do confronto ocorrido em termos de perdas, para os derrotados e para o sistema, em que e movem os grupos conflituosos. Finalmente a densidade do conflito — o grau de irracionalidade com que se desenvolve a luta desde o simples debate, discussão acalorada, acirramento competitivo, escaramuça, batalha e finalmente a guerra. Estas três dimensões do conflito marcam-lhe o impacto, cuja diminuição pode ser conseguida, até certo ponto. O exato limite, a que pode chegar o controle, é quase impossível de ser fixado. Mas é de interesse político saber que o reconhecimento preciso dos grupos conflituosos é a primeira condição política para se lhe diminuir o impacto. A oportunidade, mobilidade na escala social, para ascensão dos indivíduos postados nos patamares inferiores, é elemento estrutural da maior importância para se prevenirem impactos conflituosos de alta temperatura. Flexibilização de movimentação horizontal dos atores sociais, eis outra linha estrutural importante para se evitar o superaquecimento. Quanto mais ligado for o ator social ao seu estamento, ou corporação (por crença, ou idade, ou sofrimentos em comum, ou interesses fortes a defender), com rigidez do quadro social, então será maior a possibilidade de fortalecimento da capacidade de confronto. O mesmo ocorre quando classes se unem em parcerias e coalizões, concentrando interesses comuns, ou estratégias de recíprocas vantagens. Pense-se na união de ideais (ou interesses) religiosos, políticos, econômicos. Exemplo: determinado movimento religioso com influência em certo partido e unido a determinada classe de trabalhadores reivindicantes. São ordens institucionais diferentes a penetrarem dentro de outras ordens institucionais, com somatória convergente de esforços. Têm elevada probabilidade de agigantar-se na capacidade de conflito, poder de pressão, resistência, de desobediência civil, de confronto, exigências negociais. C) Como se enfrenta o conflito Em referência ao marxismo ortodoxo, mormente na sua versão de práxis leninista, R. Dahrendorff sublinha mais uma vez a ilusoriedade da crença (ideologia) numa “sociedade sem classes”, de uma “comunidade do Povo”, de uma “ditadura do proletariado” — estágio futuro em que os conflitos estivessem todos extirpados. Ao contrário, as tentativas vitoriosas de consegui-lo tiveram por custo o exsurgimento de outra figura de superposição de classes, o que não significa portanto a eliminação do conflito do corpo social... No tocante a essa matéria (enfrentar a problemática do conflito em sentido estrito), há três técnicas básicas a distinguir. A primeira, técnica da repressão — uma só classe a dominar todas as demais, sufocando todo movimento de insatisfação. A segunda, técnica da “solução”: sonha com a ablação das classes e nutre-se desse sonho. Finalmente a terceira é a técnica da regulamentação das manifestações de conflito: reconhecer os grupos representativos, estabelecer procedimentos formais de entendimentos, prevenir privilégios de posições. Esta terceira atitude busca portanto a canalização institucional dos conflitos. É a atitude modernamente assumida por vários Estados. Em tal caso assiste-se a uma intensa implicação, recíproca, entre Estado e sociedade. O aparelho governamental, para manter a governabilidade da sociedade em meio aos conflitos (mais: em porfia com a própria crise), compromete-se mais com os vários grupos . Aqui — dizemos nós — o Estado aparece como intenso feixe de relações sociais, condensador de articulações sociais conflituosas, segundo um padrão dominante. Este padrão vem em grande parte exteriorizado pelo direito vigente, com freqüência o mais favorável às classes dominantes. Ora, no seio profundo dessa práxis jurídica aplicada à institucionalização dos conflitos, ergue-se surto poderoso de indagações de legitimidade. Temos aí fonte perene de novos antagonismos, uma espécie de sistêmico-funcionalidade, de “eterno retorno”... do conflito. Tão irônica réplica “funcionalista” ao conflito em sentido estrito, nasce como resposta ao funcionalismo sistêmico da mantença do equilíbrio. As classes burguesas procuram valer-se dessa terceira técnica — a regulatória — em prol da domesticação interesseira do conflito. Busca “especializá-lo”, como aconselha N. Luhmann . Voltemos porém ao pensamento desenvolvido por R. Dahrendorff. Segundo ele a atitude técnica de regulamentação dos conflitos tem de achar a sua procedimentalização em três níveis principais: a) localização social do foro de discussões; b) identificação de mediadores competentes; c) quando necessário, socorro a árbitro estatal. Com essa canalização pode esperar-se, não a eliminação (impossível) dos conflitos, mas uma canalização racional deles, com obtenção do grau ótimo da diminuição do seu impacto. Cumpre acentuar o aspecto relativista da perspectiva aberta para o problema do conflito em sentido estrito. Só se pode autorizadamente pensar em diminuição do impacto dos conflitos, não na erradicação deles. Por quê? Porque eles se constituem em elemento natural da estrutura social. Onde houver sociedade, aí há conflito — como em toda sociedade, há o direito. Ele é, segundo R. Dahrendorff, o ponto incandescente da estrutura social. Reconhecível, calculável, abrandável no seu impacto, sim; mas também ineliminável. Reprimi-lo é a tentativa dos regimes autoritários. O regime democrático consciente e realista não se abalança mais do que a aspirar à regulamentação do conflito, canalizando-o, controlando-lhe os impactos (violência, intensidade e densidade) por meio de princípios organizacionais básicos ou matrizes de governabilidade, oriundos tanto quanto possível da participação jurisferante igualitária de todas as classes . De modo que o conflito faz parte das relações sociais, sempre. Suas mais poderosas propulsoras são a Política e a Economia: onde há associação de domínio, surge conflito político; tais associações aparecem a cada passo da estrutura social. Acresce a energia potencial conflitiva da instância econômica de formação social: sempre que tivermos empresa econômica, vai surgir antagonismo econômico — não importa o regime social do Povo . III – ALGUMAS CONCLUSÕES 1) A interpretação sistêmico-funcionalista da sociedade sublinha exageradamente o elemento consensual das ações sociais. Essa preocupação é só pretensamente pacifista. Escamoteia, no fundo, a dura realidade: o conflito é elemento verdadeiramente ínsito à sociedade. Outro erro é o de arriscar-se a ver o conflito como patologia social. Razoável porém é ter como patológicos apenas os altos graus de febre do conflito, graus que são eminentemente relativos a cada círculo social considerado. A força do impacto conflitual há de ser examinada sob aquelas três dimensões: violência, intensidade e densidade. 2) Grandes desigualdades sociais são dessimetria perturbadoras. São nós da rede social; transformam-se em conflito quando não sejam conscientemente desatados. Desatar esses nós é intervir consciente na sociedade. Pode isto, e deve, ser também função do Estado; cabe-lhe adotar medidas institucionalizadoras, propulsoras de novos mecanismos de produção político-jurídica, de recursos materiais e de abertura de oportunidades difusas de produção no seio das instâncias culturais de formação social. Esse esforço do Estado concretiza-se numa tentativa constante de dotar o sistema social de matrizes institucionais democratizantes: no plano de mais igualdades. Terá de ser assim na produção e distribuição de bens econômicos, na distribuição e devolução de centros decisórios e de participação cultural. Temos portanto necessidade de aumento de oportunidades econômicas efetivas para as classes desfavorecidas (exemplo: emprego assegurado e garantia dos meios bio-psicologicamente mínimos de subsistência). Ainda: promover a participação das massas na escolha dos dirigentes, e no seu controle; bem assim, em certo grau de participação da condução e gestão da coisa pública (exemplo: aprimoramento efetivo da práxis política da “democracia participativa”, no sentido de C. B. Mac-Pherson) . Mais: falta maior integração efetiva dos atores sociais na produção e distribuição cultural. Exemplo: direito à educação gratuita em todos os níveis por parte dos educandos carentes e capazes; oportunidade efetiva e juridicamente garantida de acesso aos produtos da arte, da moral, da religião e de expansão da consciência subjetiva — o indivíduo não apenas como “papel”, mas como consciência livre, irredutível a simples molécula da massa. 3) Fracassa na pacificação da massa e de calibração social, na integração Estado-Sociedade, a Constituição que não traçar regras claras e enérgicas (= dotadas de potencial de eficácia) sobre a crescente diminuição das desigualdades sociais, em programa juridicamente obrigatório para todos os governos, com planejamento econômico a girar em função da distribuição social (em curto prazo, a prazo médio e em longo prazo). De modo que, com as liberdades fundamentais (físicas e psíquicas) e os procedimentos democráticos de voto para eleição dos governantes e de controle popular da atuação deles (democracia clássica mais “democracia participativa”), os tempos atuais do capitalismo avançado e da revolução industrial moderna pedem uma nova ordem “revolucionária”. Dolorosa de começo, essa matanóia prática é indispensável ao mínimo de conservação das tradições liberais e democráticas. Urge desbastar as desigualdades sociais, com ação político-administrativa na qual estejam jurídico-constitucionalmente fixados os fins precisos do Estado moderno: a realização, em ritmo gradual mas inequivocamente crescente, de cinco novos direitos do indivíduo (dotados de ação contra o Estado, para obter-lhes a satisfação): 1) direito ao emprego produtivo; 2) direito à complementação do mínimo bio-psicológico para a sobrevivência; 3) direito à assistência (médico, remédio, dentista, hospital); 4) direito à educação gratuita (em proporção com os recursos e com a capacidade intelectual do educando); 5) direito ao “ideal” — acesso aos meios sociais de expansão da consciência individual, do “eu” profundo — lazer, realização artística, criatividade ético-religiosa, descargas emocionais e imaginárias —, para diminuição das tensões intra e interindividuais e inter-grupais . 4) A passagem da teoria sociológica à prática político-jurídica é tanto mais fecunda quando mais se puder afastar a influência das ideologias. Estas são tão inerradicáveis como os conflitos. Porém, assim como é físico-socialmente possível diminuir o impacto dos conflitos (e portanto das crises) , e manter-se o mínimo de identidade histórica dos sistemas, é igualmente possível — e imperativo — aparar as arestas frustrantes da relatividade do conhecimento sociológico . A via adequada são os métodos científicos aplicados à análise das relações sociais. Uma postura teórica mais objetiva será mais opulenta em indicativos de soluções menos dúbias e obscuras. Dubiedade e obscuridade são tanto mais fortes e menos aproveitáveis, na política jurídica, quanto mais são geradas pela subjetividade dos “papéis” e das “coletividades”. Andam ambos empenhados em luta constante por interesses contrapostos, ou aparentemente contrapostos. Ver um pouco mais claramente (“theorein” = ver) é pressuposto de agir um pouco mais acertadamente. À universidade incumbe o dever moral de aliar-se à sociedade e aos políticos, de tal modo que possa provocar conscientemente mudanças que a estrutura social está a exigir. A fenomenologia das diferenciações do sistema e da explosão do conflito , pode alcançar nível mais alto de racionalidade, errando menos contra a “natura rerum”. 5) Neo-funcionalismo e neo-maxista não são propriamente interpretações opostas mas sim leituras complementares do mesmo ser — a realidade social. Sua polaridade e implicação, com afirmação e retificação: este pensar e repensar — constitui dialética natural. O feixe relacional, lá de fora, atinge assim a consciência, cá dentro. É um “fora” em que se move o “dentro”, este empenhado em adaptar-se àquele no drama perpétuo do conhecimento e do interesse, da razão e da paixão — obras da Natureza. Cfr. SCHLUCHTER, W. The rise os western rationalism. Berkeley: Univ. of Calif. Press., 1981, p. 136, esquema XX. J.E.C. de O. Faria, notas em aula no curso “Direito e mudança social”. São Paulo: USP, 2º semestre/85, doutorado. PONTES DE MIRANDA. Introdução à sociologia geral. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 103-108 e 126-128; PONTES DE MIRANDA. Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Garnier, 1924, p. 75-107. Cfr. GOULDNER, Alvin. El anti-minotauro: el mito de uns sociologia no-valorativa. Madrid: Alianza, 1979; BENDIX, R. Social science and the image of man. New York: Oxford Univ. Press, 1970. Cfr. KNELLER, G.G. A ciência como atividade humana. Rio de Janeiro : Zahar, 1980, p. 275-285. Cfr. KRONMAN, Anthony. Max Weber. Stanford: Stanford Univ. Press, 1983, p. 112-117. Cfr. CROZIER, M. The crisis of democracy. New York: N. Y. Univ. Press, 1973, cap. II. Cfr. JAGUARIBE, H. O pensamento nacionalista. In: Cadernos de Nosso Tempo. Brasília: S. Schwartzman, p. 131-152; BOBBIO, N. The future of democracy. In: Telos. S. Louis, nº61, 1984; HIRSCH, J. Observações teóricas sobre o estado burguês e sua crise. In: POULANTZAS, N. (org.) A crise do Estado. Lisboa: Moraes, 1978; CARDOSO, F. H. A questão do Estado no Brasil. In: Autoritarismo e democratização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975; FARIA, José E. C. de O. Retórica política e ideologia democrática. Rio de Janeiro: Graal, 1983; FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 4ª ed. s.l.: 1984, p. 277 ss. Toda a parte I deste trabalho funda-se sobretudo em PARSONS, T. Una teoría funcional del cambio. In: Los Cambios Sociales: Fuentes, Tipos e Consecuencias. México: Fondo de Cult. Econ., 1974, p. 83-94. Parece-nos não ter Parsons aprofundado as raízes científico-positivas, isto é, buscadas às ciências particulares (física, biologia e antropologia) dessa integração e dilatação crescente dos círculos sociais. Ver pesquisa a respeito em PONTES DE MIRANDA. Introdução à política científica, nota 3, supra e Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, Tomo I, cap. IV. Sobre o princípio físico-social da simetria cfr. PONTES DE MIRANDA. Introdução à sociologia geral. nota 3, supra, p. 82 seg. Cfr. OFFE, K. A ingovernabilidade: sobre o renascimento das teorias conservadoras da crise. In: Problemas Estruturais do Estado Capitalista. Rio de Janeiro: Templo Brasileiro, 1984; idem, ibid. A democracia partidária competitiva e o Welfare State Keynesiano: fatores de estabilidade e desorganização e ainda id., ibid. Partido competitivo e identidade política. Sobre o princípio da inércia em sociologia, em pesquisa nas ciências exatas, cfr. PONTES DE MIRANDA. Introdução à sociologia geral, nº 3, supra, p. 109-112. Ver CAPRA, Fritjof. The hidden connections: integrating the biological, cognitive, and social dimensions of life into a science of sustainability. New York: Doubleday, 2002, p. 135-136. Dificuldade grande há, tanto nas teorias funcionalistas como também nas explicações científico-positivas, em se prever e controlar (será possível calculá-la?) a passagem da teoria para a prática, em matéria de mudanças, quando se trata de períodos de grande mobilidade social, nos países em desenvolvimento agitados pelas crises políticas e econômicas. Assim é: tanto a conservação como a variabilidade são leis da natureza, reveladas pelas ciências particulares. Não se pode furtar a elas a sociologia. O problema está em não se infringir nem uma nem outra, para não aumentarem disfunções e rejeições. De outro lado as paixões humanas, com ideologias inafastáveis, procuram precisamente extremar uma da outra, em movimentos políticos refertos de ações concretas e contrárias. Está aí outra versão da discussão “funcionalismo x marxismo”, passando do nível do impasse para o do conflito, do pensar para o agir. Sobre a indispensabilidade do progresso social, em termos de igualdade crescente, cfr. PONTES DE MIRANDA. Democracia, liberdade, igualdade. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 517 seg. Sobre o importante conceito de “cálculo do dissenso” (em que entram os conceitos de “taxa de acumulação” e “taxa de injustiça”), ver SANTOS, W. G. dos. A política social como cálculo do dissenso. In: Cidadania e Justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979, p. 125-138. Sobre “conservantismo”, cfr. FERNANDES, F. Atitudes e motivações desfavoráveis ao desenvolvimento. In: Mudanças Sociais no Brasil. São Paulo: Difel, 1960, p. 37-49. O assunto do crescimento em igualdades é vasto. Imensa a bibliografia acumulada em âmbito transnacional (... direitos econômicos e culturais); o que seja Direito das Gentes nesses “acordos internacionais” está acima da própria Constituição Brasileira — é supra-estatal. Embora de baixa efetividade, são em verdade regras jurídicas; infração delas é ato ilícito de Direito das Gentes. No Brasil temos, por acréscimo, o art. 5º §2º da Constituição Federal. O art. 6º, até com o recente direito a moradia, nem está no cerne rígido (“cláusula pétrea”) nem é munido de ação material contra o Estado, nem há econômico planejada... A respeito da capacitação do Estado como instrumento social para dar resposta às crises com processos integrativos e técnicas constitucionais, parece-nos oportuno resgatar a obra de PONTES DE MIRANDA. Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932, especialmente p. 221 seg. No item II deste trabalho servimo-nos fundamentalmente do trabalho de DAHRENDORFF, Ralf. Elementos para una teoria del conflicto social. In: Sociedad y libertad. Madrid: Tecnos, 1971, p. 133-155. Sobre o assunto, cfr: OLIVEIRA, Mozar Costa de. A gnosiologia estudada com dados das outras ciências. Santos: Leopoldianum (Cad. posgrad), 2001. 68 p. Ver Pontes de Miranda, Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, 1983. FARIA, J. E. C. de O. Nota 2, acima. São ainda pouco divulgadas as pesquisas de Pontes de Miranda sobre o conceito de “processo social de adaptação”, fundamental em todas as suas obras — filosóficas, sociológicas e jurídicas. Por cálculo de lógica simbólica mede os quanta de estabilidade e de dominação, em cada um deles. Ora, partindo do zero em ambas as variáveis no processo científico de conhecimento (Ciência), temos: a) estabilidade (= resistência à mudança nas regras de conduta) — Religião 6, Moral 5, Artes 4, Direito 3, Política 2, Economia 1; b) potencial de dominação (= grau de violência ao se impor socialmente): Política 6, Economia 5, Religião 4, Direito 3, Moral 2, Artes 1. Interessante observar como as instâncias de formação social (“processo social de adaptação”) mais instáveis e mais dominadores são precisamente aquelas cujo critério de troca social são as ações sociais de poder (Política) e as de utilidades materiais (Economia). No outro extremo, as mais duradouras espécies de valor social são os processos mais intensamente penetrantes na escala de interioridade da consciência: o critério transcendental (Religião — com a metafísica) e o de dignidade-bondade (Moral). Posição intermediária, em ambas as dimensões, ocupa-a o Direito. Talvez por isso paixões e ideologias se sirvem instrumentalmente do Direito para se equilibrarem, e para se imporem socialmente. Muitas outras conclusões daí se podem tirar, que os fatos confirmam, de interesse para as ciências sociais, inclusive para a teoria geral do direito e para a política científica. R. Dahrendorff chega ao ápice da generalização ideológica ao dizer que “Toda a vida social é conflito, porque é mudança. Não há na sociedade humana algo estável porque nada há certo. No conflito, portanto, acham-se o núcleo criador de toda a sociedade e a oportunidade da liberdade, mas, ao mesmo tempo, o desafio para resolver racionalmente e controlar os problemas sociais” (op. cit., p. 154). Lembra o velho Heráclito: o princípio originário do ser é o fogo (mola propulsora da mudança). Concórdia e paz conduzem à incandescência e esta à luta e à guerra, que determina toda mudança, física e social. Nada é fixo, tudo flui (“panta rêi”); o esforço de Homero para desarraigar o conflito é vão porque a guerra (supremo conflito) é o pai e o rei de todas as coisas. Tudo porém se processa segundo uma medida racional — de extinção e de re-aparição (Cfr. ÜBERWEG, F. Grundriss der Geschichte der Philosophie. Tomo I Basel: B. Schwabe, 1953, p. 53-60). Sobre isso cumpre recordar a idéia gramsciana de “conscientização”. Em crítica a Weber, ver MARCUSE, Herbert . Industrialization and Capitalism. In: Max Weber and Sociology Today. New York: Harper and Row, 1971, p. 133-151. Sobre conflito sindicato-empresas metalúrgicas na década de 80, no Brasil, com perda econômica mas ganho em cidadania, ver Renner, C. O., p. 45-47, sobre as conquistas da combatividade quanto ao desemprego, id, ibidem, p. 66-75. Sobre o comprometimento do Estado com a Sociedade, ao enfrentar os conflitos, ver CROZIER, M. The crisis of democracy. (n. 7, acima); OFFE, Klaus (n. 12, acima). Sobre os desencantos da técnica regulatória na perspectiva da independência sindical, ver Renner, C. O., p. 251-256. Cfr. LUHMANN, N. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Universidade Brasília, 1980, p. 85-89. Sobre a trilogia indispensável de liberdades fundamentais e crescimento em igualdades (fundo), com procedimentos democráticos específicos (forma), que precisam formar a vivência Sociedade-Estado no mundo contemporâneo, ver PONTES DE MIRANDA, Democracia, liberdade, igualdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 1979. Há relatórios que dão conta do clima de espionagem reinante em empresas econômicas da antiga URSS; a falta de amizade e o fingimento faziam a sua parte na criação de tensão social conflituosa, “resolvida”. Cfr. MACPHERSON, C. B. A democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, passim; FARIA, J. E. C. de O. Retórica política e ideologia democrática. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 84-122. Para uma análise minuciosa e conexão entre teoria e práxis político-jurídica, cfr. PONTES DE MIRANDA. Democracia, liberdade, igualdade, acima, p. 409 seg.; PONTES DE MIRANDA. Os novos direitos do homem. Rio de Janeiro: Alba, 1933; PONTES DE MIRANDA. Anarquismo, comunismo, socialismo. Rio de Janeiro: Adersen, 1933. É vasta a literatura sobre crise; cfr., por exemplo, de vários autores, POULANTZAS, N. (org.) A crise do Estado. Lisboa: Moraes, 1978. Cfr. SANTOS, Boaventura dos. Da sociologia da ciência à política científica. In: Biblos. Coimbra: 1977; SCHWARTZMAN, Simon. Os mitos da ciência. In: Ciência, Universidade e ideologia: a Política do Conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1981; WARAT, L. A.; CUNHA, Rosa M. Cardoso da. Ensino e saber jurídico. Rio de Janeiro: Eldorado, 1977, p. 21-41. Cfr. FARIA, J. E. C. de O. Eficácia jurídica e violência simbólica, tese de titularidade, mimeogr., São Paulo: USP, 1984, 345 seg. Sobre esse dualismo essencial do animal-homem-na-natureza, em cunhagem poética, sem refugir aos dados límpidos da positividade, cfr. PONTES DE MIRANDA. Epiküre der Weisheit. 2ª ed. München: Griff, 1973, p. 169-200. Ver também nosso Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo). Tese de doutorado. São Paulo: Universidade Católica de Santos, 1994, 239 p.

“Soberania” — à busca de um conceito jurídico

“Soberania” — à busca de um conceito jurídico

(Prof. Dr. Mozar Costa de Oliveira)

[Publicado in DERANI, Cristiane, COSTA, José Augusto Fontoura (coord.). Globalização & soberania. Curitiba: Juruá, 2004, p. 75-102.]

I — Introdução (pressupostos gnosiológicos e de método)

Partimos do princípio de que o mais seguro modo de conhecer as realidades é obterem-se conceitos a partir dos resultados das ciências particulares. Neste trabalho será dada atenção especial à biologia e à sociologia. É o que se verá quando se expuserem sobretudo as questões relativas à incidência da regra jurídica, à formação da vida individual (com o direito de liberdade) e à formação da vida social (com o direito de soberania).

Pensamos que o método mais confiável para a pesquisa é, ao menos atualmente, o método indutivo-experimental. Inicia-se por exame de dados fornecidos pelas realidades, formam-se daí conceitos e proposições. Tomam-se os devidos cuidados com a terminologia: a mais precisa e fielmente descritiva possível. Tudo conferir, continuadamente, com as realidades. É o processo da ciência. Como processo, que ela é, será um andar para frente, aliando-se cautela e confiança.

II — Conceitos diversos de soberania

Veremos aqui os conceitos mais usuais de soberania, em autores variados, de tendências por vezes opostas entre si. Poucas serão as críticas. Divergências, quando as haja, ver-se-ão no decorrer da nossa exposição e na definição mesma do nosso conceito, a final.

1. Como conteúdo político, ligado aos serviços públicos[1]

É a concepção de L. Duguit. Realça antes os conceitos que entende equivocados. E, vejamos. A) O que não é. Não se explica pela solução metafísica de se manejarem os conceitos de direito subjetivo onde estão os poderes da vontade, com as características de ser: a) poder de mando (“pouvoir de volonté commandante”), que se imponha ad intra sobre todos — circunstância que dificulta a racionalidade de deveres do Estado com os seus cidadãos; b) poder de vontade independente, de autodeterminação., sem outro poder superior a ela; c) seria uma e indivisível mas, como há os Estados federados, já se vê: soberania “est un pur concept de l’esprit” ; d) seria inalienável e inextinguível (= “imprescriptible”) coisa a encontrar, contra si, os fatos. B) O que é — o mesmo que serviço público. Eis o que se acha nos fatos, na experiência (=“solution réaliste”). Logo, é o poder mantido pelo governante sobre a nação, resultante de “différenciation politique”, historicamente explicável pela necessidades humanas múltiplas. Ora, o poder do governante não surge senão apoiado em movimento político de conseqüência majoritária, e não se mantém quando deixe de atender às necessidades sociais para prestação dos “serviços públicos”, trabalhando para “la réalisation de la solidarité sociale”.

Os serviços públicos fundamentais para a mantença do poder (= soberania) são os de defesa externa, de segurança interna e de justiça (“services de guerre, de police et de justice”. Mas, prossegue, eles “deviennent de plus en plus nombreux”. De modo que soberania é conceito que se tornou substituível pelo de serviço público, já que este pressupõe o exercício do poder, ao qual dá legitimidade e confirmação prática.[2]

2. Como independência em relação a outros Estados.[3]

Soberania é “existência livre e independente do Estado”. É uma autoridade ou poder. Daí que a intervenção de um Estado em outro constitui ilícito praticado contra a soberania de outro, salvo o caso de ilícito deste contra os “direitos humanos” dos cidadãos. Corresponde ao direito à liberdade. É contudo imprescindível à definição de Estado, de que se apresenta como elemento essencial. De início a concepção é de soberania absoluta ou ilimitada (Bodin, Hobber, Spinoza, Hegel). Tal conceito contudo negaria a vigência do direito internacional público (Maritain, Korovicz). Há quem prefira o conceito de independência (Rousseau, Kelsen), outros o de autonomia (J. Maritain). Mas todos esses termos têm as suas limitações lingüísticas. Mais acertado será pois conservar-se o termo “soberania”. Leva em seu bojo a conceito de poder supremo quando se trata das relações internas, como sustenta Delos. Tem-se aí a soberania como autonomia: os três poderes atuantes no interior do seu território. Soberania externa é a independência. Mas, limitada pelo “direito internacional público” e se ramifica em direito à igualdade, e ao respeito.

3. Como realização dos direitos humanos [4]

Os direitos humanos são, no ver de Trindade, tão antigos como a história da civilização. Assim é com os valores de dignidade, não-exclusão, anti-despotismo, participação comunitária, legitimidade. Antecedem os dias dos Estados. É o novo ethos do nosso tempo. Necessitamos de da sua garantia e salvaguarda. Eles são um surto inalienável exigido pela justiça. Somente com essa segurança é que se pode manter o conceito soberania, realizando-se a “justiciabilidade”. São indissociáveis as realidades da democracia e de direitos humanos. Inafastável a imperatividade de regras jurídicas sobre direitos humanos. Exigem-nas o sofrimento, a consciência de necessidade de defesa dos direitos humanos. Realizá-los nos dias atuais é passo definitivo de progresso. Essa consciência leva à verificação de que os direitos humanos têm que ser resguardados por regras jurídicas inderrogáveis, eficazes erga omnes, ou seja, regras jurídicas pertencentes ao domínio do “jus cogens”, e com o conceito de “ordem pública” a se inserir no Direito das Gentes.

4. Como resultado de conquista prática.[5]

O único método válido para se obter o conceito de soberania tem de consistir não apenas em dedução (teórico) e de indução (prático), senão que há de passar por uma terceira via, que o autor chama mista ou eclética. Dá o exemplo da vontade política para um Povo de território pequeno tentar entrar na ONU. Haverá de argumentar com os seus potenciais efetivos atuais.

5. Como poder sobre recursos naturais e de autodeterminação.[6]

Há que se levar em conta o conceito de forças transnacionais). São elas as seguintes: a) política internacional, b) as centrais sindicais internacionais, c) as religiosas e d) as internacionais privadas. Exsurge o perito da globalização econômica. Soberania é o “direito” de ter poder exclusivo sobre recursos naturais. Este poder, com mais a não-intervenção, mais o poder de “dispor de si próprio” (autodeterminação) são elementos do “princípio da independência” A soberania é atingida nas integrações. Tal o caso do MCE, da CE, com fins de fortalecimento das relações econômicas e políticas, passando-se essas a lhe sejam comuns. Em verdade exige-se para tanto a unificação de regras jurídicas, antes plurais (exemplo: moeda, única, trabalho livre, unificação de alfândega). Assiste também às expressões do Estado-espetáculo. Tal o papel da entidade internacional que se exibe para obter a adesão da opinião pública e abalar a confiança ainda depositada nos adversários. Mediante o adestramento do “discurso eficaz” (= “palavra eficaz”): porque as massas têm hoje força política. Portanto o desenvolvimento da retórica como eficácia de persuasão é de aperfeiçoar-se. Bem assim as técnicas de comunicação, e de linguagem, e de lógica, e de hermenêutica e de antropologia. Constituem-se em instrumentos científicos e psicológicos importantes na criação de expectativas. Estimula-se a expectativa de lealdade e, do lado contrário, o temor de agressividade. Tal se dá hoje também nas relações internacionais.

6. Como grau de independência[7]

Soberania é a própria independência. Ambos os termos usados têm carga emotiva. No fundo é o poder de determinar-se internamente e de relacionar-se com outros Estados, embora limitado tanto ad intra quanto ad extra. Não se lhe colhe a definição sem exame de graus. Vão se diluindo os seus velhos ares, próprios do totalitarismo antigo. Governo efetivo e soberania são realidades interdependentes. O grau dessa depende daquela. Quando haja revolução, o reconhecimento espera pela vitória cabal de um dos lados, em geral: e não importa a sua tendência ideológica, se vitorioso certo grupo. Reconhecimento de Estado é ato de força declarativa e não constitutiva. O Estado já é estado, quando outro ou todos lhe conferem o reconhecimento. Aliás, mesmo no direito escrito o reconhecimento aparece tribunal como ato constitutivo. É o caso da Alemanha Oriental em 1973. O Tratado de Montevidéu, de 1933, foi expresso no artigo 12 quando disse que a “existência política” de um Estado independe de reconhecimento; pode ele defender a sua soberania. Há nele forte núcleo político de parte do Executivo do Estado reconhecente, que o Poder Judiciário sói acompanhar. Nem sempre, contudo, como ocorre majoritariamente na Alemanha e Suíça. Também constitutivo foi o caso de Biafra (1967-70), estando a Nigéria a manter ainda o poder sobre ela. Autodeterminação é poder de escolha de status e de tipo de desenvolvimento econômico, social, cultural. Exemplo: uma ex-colônia vincula-se ao Estado A, ou B, ou a nenhum. O autor cita o artigo 1º das duas Convenções – de direitos civis e de direitos sociais, ambas em vigor desde 1976. Há aí alusão a “right” de autodeterminação (By virtue of that right “... e... “realization of the right of – self-determination”).

7. Como qualidade do Estado, se há território, comunidade humana e governo próprio.[8]

Estado há quando, além de território e comunidade humana nele estabelecida, o aparece também um terceiro elemento: a “forma de governo não subordinado a qualquer autoridade exterior”, ou seja, competência interna (legislativo, executivo e judiciário), sem intervenção. A diminuição dessa competência corrói a soberania. Soberania é conceito jurídico a figurar na Carta da ONU, artigo 2o §1º, e na OEA 3 f. e 12. É a competência interna, limitada pelo Direito das Gentes, mas sem outra ordem de competência superior a respeito de matéria delimitada. É atributo do governo. Força declarativa e não constitutiva, tem-se no reconhecimento — que não faz o Estado ser (OEA, 12). O reconhecimento de Estado não implica a do seu governo, e pode havê-lo só tácito (exemplo: negociar com ele sem haver representação diplomática). Dadas essas limitações, vêem-se Estados hipossuficientes: os micro-estados (como Andorra e Nauru) têm soberania tão restrita que são sujeitos de Direito das Gentes sob proteção de uma espécie de curador. São por isso hipossuficientes.

8. Como poder limitado pelo Direito das Gentes.[9]

O autor define soberania como poder, não como um direito (?). E sustenta que esse poder é limitável pelo Direito das Gentes.

9. Como independência nacional[10]

Soberania é uma qualidade do Estado e o seu conteúdo é fixado pelo direito internacional público. Tal o estabelecido na Carta da ONU, 7, OEA, 3º, b); Helsinki, I. Demais, a assim chamada cooperação internacional prejudica a soberania e diminuem-na a internacionalização econômica, a social e a cultural. Soberania é sinônimo de “independência nacional”. A “ingerência humanitária”, em prol dos “direitos humanos” (negativos) ou de vítimas de catástrofes, é prática que até pode acarretar limitação da soberania — em verdade um ato ilícito. No tocante à autodeterminação, esta diz respeito ao Povo, com a comunidade, mesmo a não personalizada e reconhecida (artigo 1º nº 1 e 2 do Pacto de Direitos Econômicos e Sociais). É regra jurídica de Direito das Gentes, que tutela agrupamento humano, não personificado nem reconhecido como Estado. A não-intervenção é dever jurídico em relação à soberania (Estado) e à autodeterminação (de Povos ainda não reconhecidos como Estado — Carta da ONU, 2º, 7).

10. Soberania, conceito relativo[11]

A globalização desequilibra os Povos.[12] Estado sem soberania pode haver, se ele tem outros três elementos. Já a soberano é pleno.[13] Só há soberania plena quando surgem os três dados: população, território, e governo com mínimo de eficácia. Mas pode bem dar-se o aniquilamento da soberania. Uma das formas desse processo de aniquilamento é a “ajuda externa”, que aumenta a dependência econômica. Tal ajuda é para manter cliente, comprador de mercadoria (sobretudo dos EUA), ganhando com isso as multinacionais. Em verdade, na experiência econômica, a figura efetiva é aí a de um autêntico financiamento, e não assistência. Politicamente, com o apoio a Governos militares pro - EUA, torna-se um instrumento pelo qual baixa em muito a efetividade da independência externa. Quadra, todavia frisar: independência completa, mesmo os ricos não a têm. De notar-se ainda, já que é pelo reconhecimento que os Estados se tornam mais visíveis, reinar nessa matéria bastante confusão, verdadeira balbúrdia. Em 1995 havia 191 Estados. Mas povos soberanos existem que não podem ainda ser Estados. E há também Estado agonizante. A efetividade da soberania tem aí papel relevante, definitivo. Sobretudo por isso que “independência” é algo de larga relatividade conceitual. Há Estados “vassalos”, semi-soberano, que são os protetorados. Há Estados exíguos (caso de Mônaco). Há Estados “clientes”, “associados”. Há ainda Estado de soberania especial, reduzida no seu conteúdo; tal o caso da Alemanha depois do Tratado de Moscou (12.09.90). De outro lado Povos há, com aceitação na ONU, que não são Estados.

11. Como competência de poderes, recebida do Direito das Gentes.[14]

Soberania é a independência ou a liberdade externa: em relação aos demais Estados. Seu conteúdo é o do exercício interior dos poderes que entender, mais o domínio eminente do território e o poder exterior de ser tratado como sujeito de direito na comunidade dos Estados. Recebe competência do Direito das Gentes; competência de poderes, que ele internamente pode devolver (repassar) a órgãos internos, ou a pessoa de direito público interno. Recebe depois do reconhecimento. Portanto o reconhecimento declara-o como sujeito de direito, e constitui-lhe, dá-lhe, atribui-lhe, competência. Uma delas é a soberania. Enquanto tem personalidade, ou seja, aptidão de ser pessoa (= sujeito de direito), é proto-estado. Como tal assiste-lhe já um direito por regra jurídica de Direito das Gentes: o direito formativo gerador de ser sujeito de Direito das Gentes com reconhecimento e, com ele, a soberania. De modo que soberania é direito subjetivo de atuar independente, livre, internamente, e o direito de entrar em relação jurídica com os demais Estados e ser tratado como tal: igualdade, respeito, defesa, conservação, desenvolvimento. Também essa liberdade interna é limitada pelo Direito das Gentes. Pode sofrer restrições no excesso, mediante intervenção nos casos graves (defesa, proteção dos direitos humanos, interesses dos nacionais fora do seu território). Há algumas limitações de competência, como por exemplo, servidões (guarnição militar, porto, ilha, passagem para rio ou canal, interdição de edificar fortificação em certa zona de passagem), aproveitamento de águas, mar territorial, plataforma continental, passagem aérea inocente.

13. Como notável poder de controle interior[15]

A soberania desponta por dilatação do Direito das Gentes – há vários fatores (físicos e sociológicos) que exigem essa expansão do Direito das Gentes. Aliás, o autor faz alusão a ius cogens (pág. 96-98 e 665), mas não define o conceito, apesar de ser interior à teoria geral do direito. Acentua a existência de entidades territoriais especiais.[16] Quanto ao reconhecimento: quanto mais Estados reconhecem um novo Estado, menos técnica (segundo o direito) é a aceitação do reconhecido. Nesses casos leva-se muito em conta a força política que o apóia, e menos o valor interno dos pressupostos ordinariamente examinados. Entre tais pressupostos, figuram notadamente os seguintes pontos: (1) consistência de unidade política interior e (2) grande autodeterminação (= soberania) em relação a outros Estados. Exemplo típico é o da Lituânia em 1990. De qualquer maneira, a independência: é um direito fundamental dos Estados. Soberania só ocorre, porém quando a coletividade mantém controle continuado e pacífico sobre as ocorrências do seu território. Esse controle é relativizado pelas condições físicas e locais, e por forças políticas mundiais, e pelo próprio Direito das Gentes. Tem-se no reconhecimento um ato declaratório de situação fática. O reconhecente percebe que o Povo A, do território x, mantém grau y de independência (=soberania) e está com os pressupostos preenchidos para manter relações jurídicas com outrem. Ocorrem também efeitos constitutivos em quem reconhece: por exemplo, de regra, a coletividade reconhecida pode figurar em pólo de relação jurídica processual perante o reconhecente. Isso tanto internamente como nas cortes internacionais. Portanto a força do ato de reconhecimento é declaratória, mas há efeito constitutivo. Também se vê mais claramente a eficácia constitutiva do reconhecimento, quando se examina a retroeficácia jurídica interna de um reconhecimento de Governo.[17]

14. Concepção marxista-lenista: a função primordial do partido único.[18]

A soberania é uma propriedade do Estado como sujeito do Direito das Gentes. Conta com poder soberano exclusivo sobre o seu território e seu sistema jurídico, de modo que é uma coletividade independente para a formação da sua sociedade, do aparelho estatal, do seu poder constituinte e do conjunto da sua política interna e externa. Essa independência abrange não só a matéria econômica como também social e cultural. Subordina-se ao Direito das Gentes. A soberania contém sempre a estrutura de classe, determinada pelas relações internas de poder: burguesia ou trabalhadores (com seus aliados de classe e de extratos sociais). Pela Carta da ONU (art. 2º, 1) e pela 25º Assembléia Geral, de 24-10-70, os Estados são iguais, todos membros da comunidade internacional (“Der internationalen Gemeinschaft”). Sendo assim, tem de haver entre os Estados: a) igualdade jurídica; b) poder exclusivo sobre o direito interno; c) dever de tratar os outros Estados como sujeito de Direito das Gentes; d) integridade territorial e independência política; e) liberdade de escolher e desenvolver os seus sistemas político, social, econômico e cultural; f) cumprir com boa-fé (“Treu und Glaube”) os seus deveres com os demais Estados e viver em paz com todos eles. No mesmo sentido manifestaram-se os Povos na Conferência sobre segurança e trabalho-em-comum na Europa: Helsinki, 1975. Para a paz mundial é indispensável que todos respeitem o direito de autodeterminação de cada Povo. Aliás, toda concepção de soberania, para os Estados socialistas, leva o selo internacionalista da ditadura do proletariado. A autodeterminação dos povos (“Sebstbstimmungsrecht der Völker”) consiste, em síntese, nos seguintes pontos: a) cada qual define a sua ordem interna; b) exige-se a extinção das colônias, que se têm de converter em novos Estados; c) é indispensável o fim das intervenções de um Estado no poder do outro; d) garantia de tutela desse direito supra-estatal. Mas há ainda a própria soberania da população (“Volkssouverenität”). A soberania popular só se realiza com a tomada do poder pelos trabalhadores e por outras classes antiimperialistas, de tal jeito que a classe trabalhadora governe, liderada pelo partido marxista-leninista. A classe trabalhadora (“Arbeiterklasse”) é a mais revolucionária das classes em toda a história da humanidade. Constitui a principal força da época atual, quando se está fazendo a transição do capitalismo para o socialismo, e deste para o comunismo, mediante a extinção pura e simples do Estado de classes. Vale-se a classe trabalhadora da política de aliança (“Bündnispolitik”). Com essa aliança surgem outros tipos de atividade econômica não-produtiva, diversa do modo de produção capitalista. Tende-se ao surgimento de associações de trabalho produtivo (“Produktionsgenossenschaften”), em vez do trabalho espoliado. Institui-se destarte, e desenvolve-se, o sistema de relações próprias do socialismo de produção. Em resumo: não há possibilidade de se manter a independência dos Povos, a autodeterminação, a soberania, sem o desenvolvimento socialista e sem o partido único. O partido marxista-leninista é a forma elevada de organização da classe trabalhadora de cunho internacional, sendo parte integrante do movimento comunista internacional. É linha de frente consciente e organizada, na luta pela internacionalização do proletariado. O partido é definido, pois, como indispensável instrumento de independência. Para tal fim é de mister a técnica do “centralismo democrático”: hierarquia interna rígida, firme unidade de direção, bem como de planejamento e de ativa colaboração com todos os membros.[19]

III — A soberania no interior da teoria geral do direito

A finalidade deste item é definir “soberania” levando em conta a teoria geral do direito. Parte-se portanto da análise do direito como fato social, como um dos processos sociais de adaptação, uma das classes de energia, no sentido radical: capacidade de produzir trabalho ou alteração no mundo. Todas as noções serão expostas de maneira sintética e simplificada, para que se adaptem à própria brevidade deste trabalho.

1) Direito

As relações sociais, com as suas especificidades, são processos. Ocorre em cada um deles uma série de acontecimentos, com sentido certo, com critério diverso, uns dos outros. Donde termos os sete principais: Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Estão aqui em ordem de estabilidade, afora a Ciência, a mais neutra. Política e Economia são os menos estáveis, os mais desestabilizadores. O Direito ocupa posição intermediária. Todos eles se influenciam mutuamente. Política e Economia levam turbulências às ordens jurídicas estabelecidas. O poder econômico tem força para influir na política e no estabelecimento e na prática do direito em certo círculo social, ou em muitos deles.[20]

Há autores que chamam “instâncias de formação social” aos processos sociais de adaptação. Correspondem ao mundo dos “valores”, como se expressaria o pensador culturalista. Em leitura adequada da ciência moderna temos aí relações sociais ou interações grupais, de que as sete ditas são as principais. Estão aí os suportes fáticos que ultrapassam em conteúdo os espaços reais da lógica, da matemática, da física e da biologia. Aqueles têm todos estes na sua estrutura. Por natureza — por sua própria estrutura — o Direito contém todos esses elementos relacionais feitos de jetos mais finos, de essências menos densas. Neste exato sentido temos de dizer que o direito é natural: um fato da Natureza (sem confusão com a doutrina de direito natural de origem metafísica), susceptível de ser experienciado e confirmado o seu conhecimento pela experimentação. $

a) Suporte fático

Os suportes fáticos são os acontecimentos da Natureza, aos quais as regras jurídicas podem aludir. São geralmente as qüididades (essências,) mais ricas de conteúdo relacional, as realidades de jetos mais espessos: mundo físico, mundo biológico, e sobretudo, o mundo social, vale dizer, as relações dos processos sociais de adaptação. Há suportes fáticos em si muito simples e também os há muito complexos. “Homem” é fato jurídico que tem suporte fático simples. Estado já o tem muito complexo, mais rico de elementos.

b) Regra jurídica — fases da sua vida; função; classificação

A regra jurídica surge, pelo costume (regra jurídica implícita ou não-escrita), ou pela legislação grafada (expressa). Ambas são feitas pelo Homem, na Natureza. O Homem não se desfaz dos seus componentes físicos, biológicos etc., quando gera a regra jurídica costumeira ou quando elabora e grava a escrita. Tudo é natural. Sem tomada de consciência pode existir a regra jurídica, por força do instinto. Mas não ocorre a sua incidência se ausente a tomada de consciência: não haveria quem, suficientemente, lhe percebesse nem sequer a mera correspondência lógica com os fatos das relações humanas. Incidência é a eficácia própria da regra: dar ao fato direção nova, que ainda não tivera, antes de a regra ser jurídica. Sem grau alto de consciência (=tomada) não haveria sujeito capaz de causar a incidência, consciência apta a fazer a regra pousar e “bater as asas” sobre o suporte fático. Ainda que esse bater de asas, ou colorir o suporte fático, seja apenas um perceber (na percepção há a tomada de consciência). Antes da percepção há a consciência a atuar, mas sem a si mesma se “ver”. De outro lado, aplicação é a atividade pela qual se põe a regra jurídica sobre o suporte fático, fazendo com que ele siga a direção indicada por ela. Pode haver aplicação instintiva, sem tomada de consciência. Existe a aplicação do querer mecânico, automático, instintivo. Tal ocorre quando é perfeita (=mais perfeita) a adaptação jurídica em certo tempo e lugar da História: o direito realiza-se sem esforço. Órgão judicante seria supérfluo para tais casos. A aplicação por órgão judicante será de mister se sobrevier uma de duas: a) inobservância, ou b) surgimento de obstáculo que os interessados não podem afastar por si próprios, ainda que quisessem fazê-lo. Na regra jurídica mesma não há “vontade”, mas na aplicação dela sim.

As regras jurídicas têm funções eficaciais diversas entre si. Conhecemo-las de modo mais preciso se lhes definimos as funções naturais lógicas — de sobredireiro versus direito substancial, de direito material versus direito processual, de direito público versus direito privado, de Direito das Gentes versus direito interno etc.

b1) Irrelevância exegética do precedente político da regra jurídica (elaboração).

O processo social de adaptação política tem por jeto (=definição “essencial”) o poder: este é da sua “qüididade”. Fazer uma regra jurídica é exercício de poder, de impor um modo de ser no tocante a ação ou ações exteriores. Exerce-o a coletividade quando a edicta pelo costume, ou por suas assembléias, postas com a incumbência específica de assim procederem. Posta, qualquer que seja a sua fonte, a regra jurídica tem função própria. Já não é a de exercer poder. É outro o seu papel social — dar orientação aos suportes fáticos por ela colhidos, de jeito que se caracterizem, por o seu conteúdo (significado prático), ser o que indicam as proposições e os fatos correspondentes a elas. Isso, ainda que discordem os membros da coletividade, incluídos os mesmos que porventura a tenham feito, ou colaboraram para sua edicção. Quer isso dizer que a regra jurídica, uma vez posta no mundo, se desliga do processo social (o político), que a gerou. Algo assim como a nuvem que se formou a partir do mar, e depois cai sobre o mar ou sobre a terra. A origem foi o mar, a chuva não é mar. A origem do direito é a política, mas direito não é política. O direito há de ser analisado por seu conteúdo, que não por sua origem na política: aqui, nessa origem política, o interesse é histórico. Será pesquisa de cunho psico-social: os jogos de força, a conveniência ou não da regra jurídica naquele momento, e depois, para o grupo nos seus demais valores de vida. Todavia o valor exegético dessa pesquisa é nenhum, e pode ser muito prejudicial para se ler o conteúdo da regra, tal como ela vige ou vigeu, e como tem de ser aplicada — vista em si e no conjunto amplo do sistema jurídico. Daí por que, para o jurista, é de afastar-se o voluntarismo (“vontade do legislador”) e o animismo (“espírito da lei” – não se confunda com finis legis).[21] Nem lhe é dado, sem a sanção do erro, buscar sentido à regra com a volta à sua origem naturalmente despótica, de imposição, de mando, de intuito, de vontade de seres sobre seres. Não. Ela entra na cultura com a sua função própria, e é nessa cultura que se lhe tem de ver o sentido e orientação de regra: indica comportamentos e a conseqüência de desvio deles.[22]

b2) A vida própria da regra jurídica: existência, vigência, validade, eficácia (incidência), aplicação, efetividade.

Na vida da regra jurídica temos de atender ao seguinte: a) existência, b) vigência, c) validade, d) eficácia (ou incidência), e) aplicação e f) efetividade.

Existência: a regra jurídica escrita é, existe, desde que publicada. Antes é preparação, a passar ela por estágios de gestação. Lei não publicada não é ainda lei. A não-escrita desde que, gestada, entra a ser percebida na sua existência. Acontecendo o suporte fático, a percepção dela, na correspondência com ele (tomada de consciência), gera a incidência.

Vigência (vis, vigor, energia) ocorre quando, por causa de outra regra (de sobredireito=regra sobre regra), que lhe estabelece tempos e lugares como requisitos para dar significado aos fatos, esses requisitos fáticos se apresentam. Aí então, ela, com a energia própria de mostrar a direção a ser seguida pelos comportamentos (sentido), está in potentia para incidir. Nem sempre a regra jurídica indica a sanção correspondente à não-observância. Temos o exemplo das remissivas.

Validade diz respeito ao fato de ela ter ou não defeito. As causas de invalidade podem ser múltiplas. Uma delas: ser contrária a outra de grau (taxionomia) superior. Regra jurídica de lei contrária à Constituição é, mas não vale. Incide com defeito e, se aplicada, será aplicação que causa lesão ao sistema jurídico embora possa não causá-la a outro, ou outros processos sociais de adaptação. Os critérios com que estes dirigem os fatos pela Vida são marcadamente diferentes.

Regra jurídica de Direito das Gentes é superior à do direito interno de cada Povo, por ser supra-estatal. Incide sobre os Povos — mesmo que essa supra-estatalidade seja por aceitação apenas da maioria, que não de todos. Raras, se existirem, são as regras jurídicas de aceitação geral (também no direito interno). Também estará a incidir, provavelmente, sobre coletividades não-estatais. Aliás, a expressão clássica “Direito das Gentes” diz mais que direito supra-estatal. E, claro, é mais exata que “direito internacional público”; pode haver sistema jurídico entre dois ou mais Povos, que não tenha incidência sobre todos os Povos. E Povos há que ainda não são Estados. Cláusulas de tratados evidentemente não são regras jurídicas, e sim determinações inexas de negócio jurídico interestatal. Têm de ser cumpridas, isto sim, mas por incidência de regra jurídica não-escrita de Direito das Gentes (pacta sunt servanda).

Incidência, dissemos, é a correspondência lógica da regra jurídica com o suporte fático, a partir do momento em que ocorre a tomada de consciência desse componente lógico. De modo que o incidir da regra jurídica é a sua eficácia típica. É o que ela faz. Lei que não incide em “caso concreto” (suporte fático) é sem eficácia nesse “caso concreto” (suporte fático). Quando uma norma cai pelo desuso, perdeu a sua eficácia, já não incide no suporte fático, que lhe correspondia. Está na mesma situação prática da lei revogada (retirada do mundo jurídico). Não perdeu a existência, nem a validade (se foi edictada sem defeito). Mas perdeu a eficácia. Por já não incidir, não pode, sem erro, ser aplicada aos suportes fáticos a que logicamente corresponde. Existe, vige, vale, mas não incide. Falta-lhe efeito de norma de direito.

Aplicação é realidade a que já fizemos referência linhas acima. Consiste na atividade pela qual alguém dobra (plica, ad+plica) a regra jurídica sobre o suporte fático, fazendo com que ele siga a direção indicada por ela. Mais que um sentir ou um entender ou um ato mirar, é, antes, um ato de realizar, uma entrada no mundo pela práxis.

Pode haver aplicação instintiva, dizíamos, sem tomada de consciência, porque existe a aplicação mecânica, automática. O mais comum na vida jurídica é a aplicação espontânea. Mais observância há, no mundo, que ilicitude. Assim é tanto por ato contrário a direito, praticado pelo figurante de relação jurídica, quanto por erro, involuntário ou não, cometido pelo aplicador “oficial”.

Efetividade é a freqüência de aplicação da regra, indicadora do grau da sua aceitação. Trata-se portanto do grau de observância da regra jurídica. Será ela de alta ou baixa efetividade, conforme seja ela muito ou pouco observada. De modo que efetividade é observância, cumprimento, aplicação. Efetividade zero, quando ocorra, acarreta a não-incidência. De tal modo a regra deixa de ser observada que já não se leva em consideração. Ainda que seja pouco a pouco, vai ela em verdade (=efetivamente) apagando-se das memórias. Instaura-se o processo de cessação da tomada de consciência da sua correspondência com o suporte fático. Existe, vige, vale, incidiu por certo tempo, a taxa de efetividade baixou a zero, já não tem aplicação, perdeu a incidência.[23]

2) Os fatos jurídicos: classificação; planos em que têm de ser estudados

Em esquema simplificado pode dizer-se que se o suporte fático acontece, e a regra jurídica incide, o fato passa a ser jurídico. Bem, seria bem pouco dizer-se que surgiu no mundo um “fenômeno jurídico”. Porque os há de estruturas muito diversas entre si, circunstância da maior importância assim teórica como prática. Toda confusão aí, como em tudo nas ciências, levará a erros. Pesquisadores levaram anos de incansável trabalho para lograrem traçar sua classificação: não se encontrou ainda fato jurídico que fugisse a alguma dessas cinco classes: negócio jurídico, ato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico, fato jurídico em sentido estrito e ato ilícito. Resumidamente, tem-se essa nota característica em cada um deles: 1) se há vinculação básica entre os figurantes, negócio jurídico (exemplo: o protocolo, o tratado etc.); 2) se há apenas manifestação de ato psíquico, ato jurídico stricto sensu (exemplo: reconhecimento de uma coletividade como Estado); 3) se ato é praticado, mas tal que a natureza humana é levada a tratá-lo como simples fato, eis então o ato-fato jurídico, como se dá por exemplo quando uma coletividade se apossa de uma terra, de que antes não tinha posse; 4) um simples acontecimento da Natureza, sob a incidência de regra jurídica, traça o fato jurídico em sentido estrito (exemplo: o nascimento ou o desaparecimento de um Estado); 5) por fim, se alguém atua contra o conteúdo de regra jurídica, pratica o ato ilícito (exemplo: um Estado pratica em outro intervenção não permitida pelo Direito das Gentes etc).

Um estudo exaustivo (em quanto ser possa!) dos fatos jurídicos, para se poder entendê-los e para se trabalhar adequadamente com eles – com rigor, precisão e exatidão –, leva-nos necessariamente a vê-los em três diferentes planos: (a) indagar se verdadeiramente existe ou é apenas aparência, e qual é, dentre os cinco, o que se tem em mãos; (b) em participando do suporte fático deles o psiquismo humano de modo relevante — caso só do negócio jurídico e do ato jurídico stricto sensu — examinar se entrou no mundo com defeito ou sem ele; (c) pesquisar quê efeitos terá produzido no mundo jurídico. Logo, temos: (a) plano da existência-inexistência, (b) plano da validade-invalidade, (c) plano da eficácia-ineficácia.

3) Direito das Gentes, Estado, direito interno.

Vamos pois às realidades de Direito das Gentes e de direito interno e Estado.[24] Desde cedo o Homem fez uniões acima do par andrógino (família, clã, tribo etc.), e reuniões ou assembléias. Estas o moldaram para chegar à reflexão. Dividiu-se também em grupos, em coletividades várias (clãs, tribos etc.). Estas são a semente do Estado. Se vizinhas, tinham de conviver dividindo espaço para conviverem os seus membros, e se multiplicarem, e caçarem e colherem etc. Algo as acomunava. Tinham semelhanças fundamentais, digamos.[25] Necessitavam do mesmo, ou quase do mesmo, de que modernamente precisamos, com variações de intensidade no espaço e no tempo. Aproximadamente o que está no artigo 1 da Carta de ONU.[26]

Onde houvesse dois Homens, já lá estava o processo social de adaptação jurídica a funcionar: posto que de modo confuso, incidiam as suas regras — independentemente da vontade daquele ao qual dita regra (a jurídica) se dirigia. A confusão estava na proximidade, maior que hoje, entre elas (as jurídicas) e as regras de religião e de moral.[27]

Havia as internas das coletividades (por exemplo, as de família), e também as que se formaram para “valerem” (=incidirem!) sobre essas coletividades (como de não-agressão, de cooperação etc.). Havia ainda as que eram comuns no interior e no exterior das coletividades. Temos por exemplo as de certo grau de opção individual: a de caçar o javali ou colher mel, a de comer agora ou depois, comer mais agora e pouco mais tarde ou vice-versa, a de copular ou não, de deambular por aqui ou por ali. Regras jurídicas específicas incidiam sobre essas coletividades. Eram supra-coletivas: para serem observadas pelas unidades coletivas, digamos, de território próximo. Necessitava-se de alguma segurança extrínseca — para as ações exteriores e independentes das vontades dos grupos mesmos, como tais.

Ora bem, essas regras são em verdade regras jurídicas supra-grupais. Incidem sobre ações dos grupos, não apenas sobre indivíduos desses grupos isoladamente tomados. Postas em proposições, teremos nelas precisamente proposições jurídicas acima das coletividades. Ainda que lhes desconheçamos por ora o tempo aproximado em que surgiram, é inegável terem surgido na história. Deram início ao atual Direito das Gentes — ainda tiradas as diferenças culturais, o fato ou fenômeno é essencialmente o mesmo.

4) Coletividades supra-estatais e Estado segundo o Direito

O conceito de Estado é dado pela ciência do direito. Pode haver pessoa de Direito das Gentes que não seja Estado. Mas, desde que reunidos determinados elementos, que só aos poucos se formam, surge perante outros Povos (Estados ou não), uma circunscrição, determinada espacialmente, certa e definida. Nela há gente que escolhe seu sistema jurídico, ou o recolhe de outro grupo. É juridicamente “autônomo” (), tem o seu direito. E reúne poder de, a si próprio, se gerir, movendo internamente (e em parte também ad extra) recursos materiais e humanos para satisfazer as necessidades básicas dos seus membros. Estes, quando encontram obstáculos jurídicos contam com membros do próprio grupo para dizer o direito. Governa-se essa gente, em território físico dela. Não se subordina a outra “Potência”. Fez-se Estado.

Outra “Potência”, ou mais de uma, passa a contá-la como capaz dos direitos próprios das demais. Registra-lhe a presença, outra a mais, no conjunto dos Estados. Fica reconhecida como titular de direitos estatais, ou seja, direitos específicos de mais uma unidade circunscricional, com poderes e faculdades abertos à participação das competências que, expressa ou implicitamente, são distribuídas por outras unidades assemelhadas pelo mundo afora.[28]

Uma coletividade compõe-se de entes, dos quais a grande maioria são pessoas. Pode organizar as suas relações internas (estrutura), e evoluir internamente de tal maneira que adquira, por conquista da sua evolução, os requisitos havidos numa certa época da história como necessários e suficientes para ser tratada pelas outras, ela própria como sujeito de direito. Eis como adquire a autoridade própria — o poder ser aceita como pólo de regra jurídica, pelo menos com um direito. Nem importa a implicitude, e sim a configuração nova: a ex-sistência, o ex-surgir, o novo estar-no-mundo social. Deste jeito é que se lhe vê a situação fática de ter “valor” — para ser titular de ao menos um direito perante os demais. Chegando a isso, não tem apenas possibilidade de ser sujeito de direito. A só possibilidade corresponde a uma fase da evolução para ser pessoa. Sua conversão final em realidade traz a flux posição de ser titular de direito (=pessoa). Quem era personalizável transforma-se em personalidade, pessoa (=é titular de direito).[29]

De modo que o caminho para se chegar ao conceito de Estado é o da ciência do direito, especificamente do Direito das Gentes. São as gentes, as pessoas de certa coletividade, que formam unidades de estrutura tal, que outras, por incidência de regras jurídicas superiores a todas, se vêem na necessidade de tratá-las como sujeito de direito. E dizemos verem-se elas nessa necessidade porque o exercício exterior de poderes ou faculdades, postas em atividade, é havido, é recebido, de um sistema de normas que a todos se impõe. Todos precisam de segurança extrínseca, de serem independentes de vontades dos alii para que a regra incida. Ora bem, o suporte fático sobre que cai a regra jurídica (incidência) continua de ser o que sociologicamente já é, mas com acréscimo sociológico novo. É o elemento sociológico, ainda não jurídico, que agora também se faz jurídico.

A coletividade B trata com a coletividade C de providências para se entenderem em matéria de caça em certos limites. Não incide regra jurídica. No momento porém em que os estudos preparatórios se convertem em vontade de se vincularem a esse respeito, já não depende das vontades a incidência da norma. O negócio é negócio jurídico: ocorreu a vinculação básica de vontades, que um não pode desfazer isolado. E só é assim porque a regra jurídica de direito (norma) incidiu. Se uma coletividade reconhece em outra a situação jurídica de ser sujeito de direito (=pessoa), pratica um ato jurídico stricto sensu de força declarativa. Há outros quatro efeitos, mas são de carga menor. Se o reconhecimento é por vê-la como Estado, a declaração é mais complexa que a anterior, por ser mais complexo o objeto do reconhecimento. Nem por isso foi alterada a estrutura do fato jurídico, que persistiu de ser ato jurídico stricto sensu. Não houvesse regra jurídica de Direito das Gentes e o reconhecimento não existiria. Não teria existência no processo social de adaptação jurídica. Mas a regra existe. Não podem as coletividades prescindir dela, em matéria de comportamento exterior. Seria por demais dificultoso o convívio dessas coletividades se não houvesse efeitos de persistência, que outrem não pode extinguir a seu alvedrio, ou seja, efeitos que surtem, queira ou não o alter. Se há essa dependência de parte de todos os alteri, a adaptação ocorrida terá sido somente a do processo religioso, ou moral.

Voltando ao caso do reconhecimento, ou do pacta sunt servanda: é impossível admitir existência de reconhecimento seguro sem norma superior ao reconhecente e ao reconhecido, que entra no mundo com independência do alter. Como em verdade ocorre essa subsistência, independente de vontade do alter, não há senão admitir: aí incidiu regra jurídica e não veleidade moral. Esta não dá sentido a ações exteriores com a eficácia de segurança contra as vontades dos alteri. Falta às demais normas (de religião, de moral, de estética) a energia de imprimir ao fato, sobre que incidiu, independência ou autoridade própria: introduzir no mundo comportamental algo de segurança extrínseca. Eis aí a maior característica do processo jurídico de adaptação social.

De modo semelhante incide a regra jurídica em Direito das Gentes. Um tratado há que ser cumprido como é o conteúdo das suas cláusulas, termos etc. Não fora assim, falharia a necessária segurança das relações internacionais, ou interestatais, ou inter-coletivos. Donde a produção altamente generalizada, mais ou menos consciente, dessa norma. Não depende dos figurantes a observância ou não-observância. Essa norma está acima deles. Se infringirem, poderão sobrevir conseqüências, também independentemente das suas vontades.

É por isso supra-coletiva. Se entre Estados o negócio jurídico é digamos, um tratado, a regra que indica a necessidade de cumpri-lo é supra-estatal. Não só inter-estatal ou internacional: existe ela, e vale, e vige, e incide, acima da vontade de todos. É supra neste sentido: provém de todos, ou da maioria, e sobre todos incide, queira qualquer deles ou não. No reconhecimento (ato jurídico stricto sensu), antes de a regra jurídica supra-estatal incidir, há reunião de elementos de ciência, talvez de moral, quiçá de cunho econômico, ou político. Não há presença contudo, ainda, de elemento jurídico. Diversamente acontece após a incidência. Assim com o negócio jurídico de tratado. Até ao seu encerramento, atos físicos, atos biológicos (psicológicos), intuito econômico etc. Agora, postos todos os elementos do suporte fático, incide a norma supra-estatal do pacta sunt servanda.[30]

Assim, antes da incidência o reconhecimento, e o tratado, eram fatos do mundo, com os conteúdos correspondentes à sua estrutura. Depois, acrescentou-se-lhe o elemento novo — o jurídico.

5) Formação biológico-social da liberdade e da soberania

O direito distingue-se dos demais processos sociais de adaptação a) porque as suas regras (ou normas) incidem para regular comportamento exterior, b) elas incidem independentemente da vontade daqueles aos quais elas se dirigem. Coincide com os demais (Religião, Moral, Artes, Política, Economia e Ciência), entre outros pontos, no ponto central de serem postos na Natureza (no mundo, nas realidades) por força de uma necessidade do ser vivo quando está com o alter. No direito é pela necessidade de segurança extrínseca. Quer isso dizer que esta não é mantida apenas pelas normas de religião e de moral, que estabilizam as relações humanas por controlarem sentimentos, pensamentos, vontade e alguns instintos — tudo no interior dos indivíduos e coletividades. O direito surge quando se tem consciência de o comportamento exterior ter de ser assegurado por algo mais: pelas regras com as características de a) e de b).

Incidência, dissemos, não se dá sem tomada de consciência da correspondência lógica entre os termos da regra jurídica e os elementos do suporte fático. Há nela pois algo de mais denso que a só lógica. O jeto é dos mais denso – psicossociológico. O fato jurídico de que se irradia direito à liberdade é fato jurídico em sentido estrito. E, como o nascimento da pessoa física faz irradiar-se-lhe o direito à liberdade, assim é com o nascimento de uma coletividade apta a entrar como pessoa (titular de ao menos um direito) perante as outras, estatais ou não-estatais. Há analogia muito aperfeiçoada entre a formação da coletividade e a da pessoa humana. Em ambas, um longo processo. Na segunda mais biológica (mas também sociológica), na primeira mais sociológica (mas também, é claro, biológica). Ou seja, em ambas presente está o elemento biológico, e neste o físico, e o matemático, e o lógico. É ponto importante. Nota-se grande proximidade entre a formação biológica da liberdade no indivíduo, e a da soberania numa coletividade.

a) Direito de liberdade e exercício do direito de liberdade

O direito é eficácia de fato jurídico pela qual há alguém é atribuído um bem de vida (material ou psíquico ou misto). Esse bem de vida é o objeto da dita atribuição. Exerce-se um direito quando se realiza (quando se põe em prática) um dos poderes do seu conteúdo. Esse poder é a “faculdade”.[31] É possível alguém ter certo direito e não exercê-lo, ou exercê-lo em pouca intensidade ou exercê-lo raramente. Quando surgem óbices poderosos contra o exercício, restringe-se o conteúdo. Quando o conteúdo chega perto de zero, o direito é apenas formal (película, fio). Se de todo se aniquila a faculdade, então a relação eficacial “direito-dever” desaparece. Dá-se o mesmo com as outras três relações eficaciais: pretensão-obrigação (exigibilidade), ação-sujeição (sujeitabilidade) e exceção-abstenção (paralisação da exigibilidade, ou da sujeitabilidade, ou de ambas). Voltando ao aniquilamento do direito, não importa se é direito subjetivo ou não-subjetivo (= subjetivado em alguém ou num grupo, ou difuso). É só com o surgimento do dado que se dá o surgimento da incidência sobre os fatos (fato jurídico). Com este, uma eficácia jurídica, ou até todas as quatro. Não há resposta a priori. A pesquisa do espectro eficacial (perfeitamente possível) é que dará a resposta precisa.

b) Liberdade, mais igualdade e democracia

Liberdade e igualdade (esta é a abertura de possibilidades efetivas aos bens econômicos e sociais) são valores de fundo, em qualquer dos processos sociais de adaptação. Quer isso dizer que são caminhos em termos de fruição de bens da vida. Já democracia é forma, é instrumento: método de co-decisão. Liberdade é poder fazer o que é para o Homem necessário que se faça, segundo as exigências da natureza. Estas exigências são reveladas pelas pesquisas de dados das várias ciências particulares.[32] Portanto três são os caminhos para a vida do Homem em sociedade. Esses três caminhos implicam-se uns nos outros. Só há liberdade mais plena com a concomitante plenitude maior em igualdade. Ambas porém sofrem detrimento se o sistema de governo não tem raízes no Povo.[33]

Quanto às liberdades absolutas, temo-las as referentes ao exercício do pensamento, e as correspondentes à liberdade física.[34] Todo tipo de liberdade é limitada pela própria natureza. A liberdade de um ou alguns nasce limitada pela dos outros. Importante acentuar como de qualquer maneira a liberdade está sempre se fazendo. Ocorre ela no interior de todos os processos sociais de adaptação (Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência).

Essa liberdade começa com o começo da pessoa. Daí dizer-se inata. E assim é por haver consciência suficientemente forte de a liberdade ser uma necessidade fundamental do Homem. Essa tomada de consciência, da maioria numérica, ou da maioria qualitativa dos Povos, a respeito da necessidade de se conceder liberdade à pessoa, constitui a existência e a incidência de regra jurídica de Direito das Gentes. O conceito jurídico de liberdade leva em conta dois fatores: a) liberdade material — poder realizar, física e psiquicamente, com crescimento constante em acesso a bens econômicos e culturais, tudo quanto a natureza humana exige, considerada ela na maioria dos Povos mais cultos; b) liberdade formal — é a película que encobre o conteúdo da liberdade material. Faltante a liberdade material, resta apenas o direito formal: a persistência do direito à liberdade pende por um fio tênue. A conseqüência para o ser humano é gravíssima. Está exposto à perda de um complexo de faculdades (conteúdo do direito de liberdade), que são da maior importância para que subsista como tal — como ser humano.[35]

A liberdade material, como dizíamos linhas atrás, exige crescimento nos direitos fundamentais do Homem em matéria de economia e cultura. A liberdade será tanto maior quanto mais crescerem os indivíduos na segurança jurídica pela qual sejam atendidos, com pretensão e ação contra o Estado, no provimento de: subsistência, exercer trabalho produtivo, receber educação segundo os seus dotes naturais, haver assistência (médica, hospitalar, dentária, psicológica etc.), haver os meios indispensáveis à nutrição do seu imaginário normal (“sonho” —tendências artísticas etc.). Para tanto se requer economia planejada, com projetos anuais e plurianuais de atendimento a essa necessidades fundamentais. Todas elas são tecnicamente redutíveis aos cinco novos direitos do Homem.[36]

6) A soberania: a sua formação psicossocial específica

A soberania é conjunto de faculdades ou poderes relativamente a outras coletividades, assemelhado aos poderes da liberdade. Algo se realiza no Espaço-Tempo real: pessoas, em grupo, vão a pouco e pouco conseguindo forma nova de se estruturar. As suas relações tomam alinhamento e fundações de outra natureza, diversa da que vivia em tempo anterior. Tais relações tomam certa direção, provavelmente com mais adesões. Isso tanto pode ocorrer nas relações de religião, como de moral, como de estética, e de direito e política e economia. Simultaneamente ou não; com alguns processos avançando quiçá mais rapidamente que outros. Ou seja, aquele grupo de entes humanos passa a ter vida conjunta própria . Move-se por si, como conjunto, como todo. Outras coletividades percebem esse novo dado, anotam-no, afirmam o seu surgimento. Nasce nova unidade estrutural de relações, não num indivíduo, mas num grupo. Grupo numeroso, de regra. Foi, assim, nascendo, e por fim nasceu, uma coletividade capaz de afirmar-se como sujeito de direito, apta a entrar no tráfico ordinário das relações inter-coletivas (sujeitas todas a normas superiores a cada uma delas). Ora, quando esse dado novo surge, ainda mesmo antes do reconhecimento, já se iniciou a soberania. Exige a maioria dos seres humanos, por necessidade da convivência entre grupos ou coletividades (quiçá alguns deles sejam Estado), que se respeite esse grau de liberdade coletiva transindividual a que dito novo agrupamento humano, com feição própria, chegou. Reconhece-o como novo “colega”, novo sujeito (capaz de direito-deveres etc), um novo “igual” perante a ordem comum a todos eles. Respeita-o como tal para se evitarem conflitos inúteis, contrários à necessidade de se não gastarem energias em vão. Logo se vê que a liberdade ad extra do grupo (=soberania) veio com ele ao concerto dos grupos pelo fato de os demais terem tomado consciência de ser mister respeitar essa soberania. Não apenas como algo conveniente, mas sim como necessário. Em conseqüência, que sejam correspondentemente pautados os comportamentos exteriores — das outras coletividades com ele, e dele com as restantes. Essa convicção de os comportamentos terem de ser assim — queiram ou não quaisquer das coletividades —, isso é tomada de consciência: a norma, de todos existe, e ela incide (dá novo sentido ao dado). Percebe-se haver algo de normativo a pairar sobre todos. Uma indicação de comportamento, de cujo descumprimento pode advir conseqüência independente (provavelmente desconfortável). Impõe-se modo de conviver supra-subjetivo e supra-coletivo, a indicar como indispensáveis novos rumos para ações exteriores em relação ao novo membro das coletividades. É que está posta no mundo a dita norma, e há consciência de que ela rege a espécie nova, acabada de surgir. Por outra: as gentes têm formada a norma (=norma posta), e consciência de ela incidir. Uma subjetividade coletiva, ou várias delas, acaba de dar, ao dado novo, um novo rumo no Espaço-Tempo. Ou seja, a soberania nasce com a própria formação estrutural de nova pessoa. E nasce como posição jurídica pela qual a essa nova coletividade de gentes fica reconhecido que tem um ao menos um bem de vida, a ela atribuído no nascedouro — a soberania. Tal não se daria não fosse a dita regra geral, que a todos se impõe como necessidade social, como requisito para a segurança geral. Temos aí portanto a soberania como direito absoluto (=exercitável erga omnes), que lhe é inato.

As coletividades são pluralidades de seres humanos. É evidente a efetiva analogia que há na vida de um indivíduo e na vida de uma coletividade. Sem dúvida esta é mais complexa que aquela. Se no indivíduo há relações internas, provenientes da assembléia e mantidas no seu inconsciente, sub-consciente e consciente,[37] quadra notar que na coletividade há múltiplas individualidades. Mais: na coletividade surgem novas relações, mais densas e mais explícitas, oriundas dos sete principais processos sociais de adaptação: “valores” de religião, moral, artes, direito, política, economia e ciência. Temos assim de definir uma coletividade (entre elas o Estado) como complexo de relações. Escusado insistir que essas relações não são apenas as da lógica, nem da matemática, nem da física, nem da biologia. São as que, contendo tudo isso, são ainda mais densas: “valores” de concepção supra-sensível, dignidade, harmonia, segurança extrínseca, controle do poder, controle dos bens materiais e conhecimento (mais) rigoroso do mundo. Nas coletividades algo no interior de um círculo de Homens, já pessoas, já sujeitos de direito. São mutações biológicas impulsionadas por pressões sociológicas (todos os processos sociais de adaptação são energia transformadora).

De modo que a soberania é direito subjetivo público supra-estatal. Irradia-se da incidência de regra jurídica de Direito das Gentes sobre suporte fático unitário: uma coletividade com o traço sociológico de, com o seu território, ter formado em si os requisito de ser livre perante as demais[38]. A regra jurídica do Direito das Gentes é formulável assim: “havendo em certa coletividade de seres humanos os elementos território e estabilidade política, é-lhe atribuída um bem de vida — a soberania”. O suporte fático é o dado: nova coletividade com os requisitos que vimos indicando.

7) Definição jurídica de soberania: direito subjetivo irradiado de fato jurídico em sentido estrito – nascimento da pessoa de Direito das Gentes

Posto o suporte fático e incidindo a regra jurídica (uma ou várias), está posto no mundo o fato jurídico.[39] Sendo jurídico certo fato (fato jurídico), tem-se-lhe de explorar o conteúdo, pesquisando-o em três planos distintos, que são a existência-inexistência (o que efetivamente entrou no mundo jurídico), a validade-invalidade (defeitos que possam ter tido ou o ato jurídico stricto sensu ou o negócio jurídico) e por fim a eficácia-ineficácia, que é a questão da produção de efeitos e de quais são eles. Cumpre pesquisar se a relação eficacial surgida é direito-dever e quais são estes; se já se irradiou exigibilidade, ou seja, pretensão-obrigação, e de que natureza; se já surgiu no mundo outro poder a mais – ação-sujeição –, e qual a força e quais são os demais efeitos dela, e em que ordem de intensidade estão eles. Ainda: se porventura se irradiou alguma exceção – qual delas se irradiou?[40]

Ora, os poderes ou faculdades, conteúdo do direito de soberania, variando embora no Espaço-Tempo, têm jetos próprios (traços essenciais marcados e definidos). Ausente algum deles, já falha o suporte fático para que a regra jurídica supra-estatal incida, e se irradie do fato jurídico “pessoa” o direito inato de soberania. Dos tratadistas alinhados acima, tiram-se os seguintes requisitos elementares para a existência do fato jurídico (=pessoa): a) ser coletividade estruturada internamente como Estado; b) que em certo território haja população com grau de valor intrínseco tal que outros Estados o tenham como pessoa; c) pessoa há, se presente o elemento de auto-suficiência nas funções jurisferante, gestora e decisória no interior do seu território quanto a bens e pessoas; d) os membros da população, uma de duas: ou construíram para eles certa estabilidade jurídica nas suas relações, ou aceitaram-na, imposta a eles, por líder ou déspota; e) capacidade de relacionar-se com outras pessoas do Direito das Gentes em pé de igualdade formal mínima (segundo a concepção jurídica supra-estatal de cada tempo); f) essa capacidade mostra-se na consistência das relações sociais ali estabelecidas – é relativa portanto ao “valor” dos seus membros, ou à eficácia dominadora dos seus líderes, ou líder; g) tal capacidade define-se também pelo poder de influir em outras coletividades, dada a respeitabilidade da sua gente em matéria de quaisquer dos processos sociais de adaptação (Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência) — é Povo que se impõe, que se tornou respeitável pelos outros (“Potência”); h) que guarde tolerável observância das regras jurídicas supra-estatais (tolerabilidade para a maioria, histórica, dos demais Povos), segundo a cultura de cada pedaço de Espaço-Tempo. Tal o conteúdo do suporte fático (dado) sobre que incide a regra de Direito das Gentes. Essa incidência faz aparecer novo fato jurídico – “pessoa jurídica” perante outras iguais (em verdade apenas quase iguais), segundo o Direito das Gentes em vigor em certo tempo. Desse fato jurídico irradia-se a relação eficacial de direito subjetivo absoluto supra-estatal de soberania, ou direito subjetivo supra-estatal à soberania, exercitável erga omnes.

8) “Direito natural” e Direito das Gentes

É lugar comum ler-se que a liberdade é de direito natural. Alguns, coerentemente, dizem o mesmo da soberania.[41] Pensamos haver aí impropriedade de linguagem capaz por si de levar a ambigüidades. Direito natural seria, do ponto de vista do direito subjetivo, um bem de vida atribuído a alguém não por incidência de regra jurídica de direito posto por atividade humana. Seria direito por regra jurídica, oriunda da racionalidade do Homem (?). A regra jurídica mesma não criaria tal classe de direito, o direito natural. A origem dele seria a racionalidade da vida no seu evolver (?), sendo supérflua toda alusão a regra jurídica humana. Nem mesmo a criada, talvez inconscientemente, pelos outros seres humanos. Nem por eles quiçá criada de alguma outra maneira, seja pelo costume seja pela gravação (em pedra, bronze, madeira, pergaminho, papel). Aludem outros à sua origem divina. É sabido ter o jus naturale tido aí a sua origem.[42] Todo existir, verdade seja, está como que instalado na Natureza, e nela evolve (Universo curvo de Einstein). Assim o Homem, com todos os processos sociais de adaptação. Inclui-se, é claro, o direito e, nele, o Direito das Gentes. Não nos é dado dizer nada, afirmando ou negando, sobre o “dado” não-pesquisável. A proposição insusceptível de sujeitar-se a testes de verificabilidade é desprovida de sentido para o conhecimento humano. Todo direito, que não passe pelo Homem, não o podemos alcançar com os instrumentos dos saberes humanos. Se se trata de direito referente aos homens, referente a gentes ­– individual ou coletivamente ­–, só podemos ter dele algum conhecimento, estudando as sociedades humanas, colhendo aí o dado. E sem recursos “cognitivos” (em verdade passionais) de instância metafísica, ou religiosa, ou ética, ou estética, ou econômica, ou política. Sim, todo conhecer humano está inçado de irracionalidade. Mas tanto mais eficazmente lhe diminuímos a passionalidade quanto mais nos ativermos ao método das ciências, ao método indutivo-experimental. Acha-se neste o Homem com grau menor de apriorismo. Nele tem como testar mais rigorosamente as generalizações feitas, com os testes de experimentação de toda ordem.

Tal o que percebemos quando prestamos atenção à necessidade humana de segurança nas relações entre Gentes. Vemos-lhes uma tomada de consciência. É a tomada de consciência de uma proposição indicativa de certo comportamento exterior, havido por indispensável: dita proposição não pode ser deixada, sem risco, ao líbito das vontades de quem quer que seja. A não-observância dela pode acarretar conseqüências transpessoais. A necessidade é, sim, ditada pela Natureza. Mas a formulação da regra, posto venha como necessidade natural, é da Natureza-humana. Natural, sim, o direito humano, desde que tenha passado pelo Homem na radicalidade da sua própria existência. Esta só é, na Natureza. Não há falar-se todavia, sem grave equivocidade, em “direito natural”, como se a sua existência (formal, digamos) — a sua radical positividade (o ser posta no mundo) —, estivesse porventura fora da atuação dos seres humanos.[43] A soberania, pois, sem recurso à entidade metafísico-religiosa (direito natural), é direito subjetivo (supra-estatal) por incidência de norma humana. Humana: é regra jurídica posta pelo Homem, através do instinto ou da inteligência ou de um e de outra. Entrou no Direito das Gentes, evolutivamente, durante o longo curso da história da Humanidade.

9) A baixa efetividade de grande parte do sistema jurídico supra-estatal (Direito das Gentes)

Inobservância de regra jurídica conduz, se continuada e muito generalizada, à baixa efetividade dela. A despeito da existência, validade, vigência e incidência, os resultados da incidência passam a não corresponder à aplicação. Se a efetividade chega ao grau zero por muito tempo (a “quantidade” de tempo varia segundo as coletividades, e o espaço terráqueo de cada uma delas), a incidência vai a pouco e pouco se tornando inoperante. Até ao ponto de se perder a tomada de consciência dela, quando então deixa de ser. Já não estando a incidir (posto não esteja revogada), não rege os fatos, e cai-lhe a aplicação. A efetividade da regra então é nenhuma.

Tal o que ocorre na violência e nas turbulências próprias da Política e da Economia, dados os seus elevados graus de instabilidade (6 e 7) e de despotismo (7 e 6), respectivamente, em relação aos outros cinco processos sociais de adaptação. Os tempos atuais, de intensa expansão mundial da Economia (“globalização”), deixam patentes os influxos deletérios tanto da Economia como da Política de outros Povos: dos mas ricos sobre os ma débeis.[44] Com isso as regras jurídicas de Direito das Gentes, notadamente a que ora mais nos interessa, sofre detrimento. O direito de soberania diminui no seu âmago material: no exercício das faculdades ou poderes, que lhe constituem o conteúdo. Também, claro está, no direito interno, ainda mesmo o constitucional. Vai sendo corroído o sistema jurídico na observância interna, a que são impelidos os próprios nacionais por força das vantagens econômicas e políticas. Nova política leva à edicção de regras jurídicas novas, pelas quais se ressalve o interesse de empresas multinacionais, ou transnacionais, ou trans-estatais. Diminui o exercício da faculdade de realizar o sobredireito interno (=edictar regra sobre regra, ambas próprias). Passa-se quase o mesmo fenômeno no tocante à administração. Há reflexos ideológicos no seio do poder judiciário.

V – Resumo; sugestões de jure condendo

1) Conclusões

Têm ficado impunes inúmeras lesões ao direito subjetivo supra-estatal de soberania. Tal é o caso de: igualdade de tratamento nos negócio jurídico, opções de legislar segundo os seus interesses legítimos (=sem prejuízo de outrem), usar das faculdades de aplicar verbas da sua própria arrecadação para os projetos de criação de emprego (direito fundamental ao trabalho), renda mínima (direito fundamental à subsistência), maciça verba para criação de escolas, e de bolsas significativas para as pessoas de baixa renda, e de verbas para a educação de negros e índios, de pagamento condigno a professores (direito fundamental à educação), de todos haverem tanto hospitais, como médicos, e enfermeiros, e remédios, e aposentadoria de acordo com necessidades vitais etc (direito fundamental à assistência), de haver do Estado meios mínimos de atendimento ao imaginário e ao fundo psicanalítico criativo (direito fundamental ao ideal). São direitos fundamentais que não podem ficar eternamente apenas metidos em regras jurídicas programáticas.[45] Os programas hão por força de surgir, de modo que tais regras não percam por sua vez a eficácia típica, que é a de incidir. Quanto mais falhar, maior será o perigo de o Povo se enfraquecer em civilização; diminuindo o seu valor perante outros Povos, decresce o exercício do direito de soberania. Passa a correr risco, por falta de aplicação, a própria incidência da regra jurídica sobre aquela. O direito à soberania pode esvair-se de todo.

Para salvaguarda desse direito, este é um dos três caminhos: o de desbastar as desigualdades, criando mais igualdades. Para a vida de qualquer Povo todos os três caminhos hão de ser necessariamente percorridos: Democracia (eleições e controle do poder), Liberdade (direitos civis e políticos) e Igualdades (direitos econômicos e culturais). Bem, pois afora as lesões de que acabamos de falar (caminho das Igualdades), em outros casos as lesões ao direito subjetivo supra-estatal de soberania ocorrem por diminuírem os valores dos cidadãos no caminho dos próprios direitos civis e políticos: diminuição das eleições livres, ou de controle popular do poder — caminho inelidível da democracia. E ainda no estreitamento do caminho das liberdades fundamentais.[46] Outros Povos reconhecem outrem, singularizado, como titular do direito fundamental de soberania (Estado), quando essoutra coletividade, por seus membros, chega a nível mais alto valor de civilização (=avanço nos três caminhos). Se todavia as gentes passam, no seu conjunto, a valer menos, vai a respectiva Gente (coletividade) perdendo as características de Povo livre e forte. Chegara a ser pessoa, sim; mas, a partir daí a incidência das regras jurídicas de Direito das Gentes (como as respeitantes ao direito à soberania) corre risco.

2) Algo pode ser melhorado no processo social de adaptação jurídica (plano do Direito das Gentes)

Quanto aos novos direitos humanos, é preciso constituírem-se explicitamente como fins precisos do Estado. Mais — metidos no plano supra-estatal, a fim de serem obrigação jurídica de todos os Estados o ter de inseri-los como meta final e, dar-lhes contornos exatos como técnica de sua realização.[47] Regras jurídicas programáticas têm de ser mais precisas, com planos para a sua realização. Os direitos fundamentais – os novos cinco direitos do Homem – têm de ser direitos munidos da ação correspondente perante o Estado, e perante a ONU. Hoje não passam de direitos mutilados, por isso que não há ação de direito material para fazer com que as regras jurídicas programáticas tenham plano definido para se efetivarem ao menos progressivamente, à medida que a Economia avança. Tudo há de ser com os remédios jurídicos processuais correspondentes (tarefa bem mais simples que a de munirem-se de ação de direito material os direitos previstos nas regras jurídicas programáticas). Cumpre que se promova uma “ONU de fins precisos”. Resguardados os direitos fundamentais relativos à Liberdade e à Democracia, definirem-se com exatidão os conteúdos dos cinco novos direitos do Homem, com verbas proporcionais aos diversos PIB’s, para a elevação do nível de civilização de todas as gentes. Pesquisarem-se sanções, as penais e as premiais, para tornar mais efetiva eventual condenação. Podem elas ser tanto de cunho econômico como diplomático, sem se afastarem a priori as de reforço militar para cumprimento compulsório dos julgados.

Tarefa por certo gigantesca. Ao jurista disciplinadamente técnico, e armado de conhecimentos sociológicos, cabe a tarefa de sugerir a transformação dos indicativos da ciência em regras jurídicas, apuradas no conteúdo e afinadas com a teoria geral do direito. Novas funções se esperam, claro está, dos tribunais “internacionais”. E nova organização. O tempo, a energia, que se gastarem nessas tarefas ingentes, por certo trarão resultados no futuro. Se não está ele ainda à vista das atuais gerações, podemos depositar neles confiança. A mesma que merecem dos Povos a Ciência, e a Moral, e a Religião, e a Estética. Bens econômicos são para o Homem. Política é ação, porque o poder é o seu objeto. Como a liberdade individual é precária no âmbito do direito interno, se desacompanhada de democracia e de mais igualdades, assim é também a soberania no vasto plano do Direito das Gentes. De todos os Povos se requer, para uma existência digna (com soberania), andar pelos três caminhos — democracia, liberdade e igualdades crescentes.

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[1] Duguit, 1926, pp. 116 a 120, 142 e 149 a 152.

[2] Pensa que a única relação ad extra de um Estado é a de guerra. 2) Nega a soberania segundo o Direito das Gentes e a devolução de competências (= repasse), após a distribuição delas pelo Direito das Gentes. 3) Define-a apenas como oriunda da dominação política interna, mesmo que seja a dominação pelo voto. 4) Falta-lhe a noção precisa de direito subjetivo.

[3] Accioly, 1956, pp. 113, 208 a 211, 214 a 215 e 220 a 238.

[4] Trindade, 1995, pp. 17 a 30, 327, 209 a 220, 242 a 247 e 412 a 420.

[5] Mattos, 1996, pp. 13 a 15.

[6] Moreira, 1997, pp. 149 a 151, 375 a 388, 478 a 480, 496 a 498, 497 e nota 362.

[7] Malanczuk, 1997, pp. 17 a 19, 78 a 79, 83 a 86 e 326-327.

[8] Rezek, 1998, pp. 160 a 161 e 226 a 247.

[9] Arnaud, 1999, pp. 741 a 742.

[10] Mello, 2000, pp. 30, 131 e 134 a 138.

[11] Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 12ª ed. rev. aum. 2 v. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Nesta obra o autor mostra a alta relatividade do direito à soberania, no seu conteúdo e no seu exercício, dentro das alterações do Espaço-Tempo. Ver pp. 56 a 57, 339, 350 a 354, 357 a 358, 364, 367 a 370 e 376 (nota 9D).

[12] São apresentados dados numéricos dos mais terríveis.

[13] Após o trecho um tanto obscuro da p. 348, o autor diz que o conceito de soberania não está ainda bem definido (p. 350).

[14] Silva, 2000, pp. 103 a 110, 116 a 118 e 254 a 291.

[15] Shaw, 2000, pp. 35 a 38, 96 a 98, 144 a 147, 149 a 152, 154 a 176, 316 a 318 e 665.

[16] “Personalidade”: dada a grande relatividade de conteúdo do conceito de personalidade perante o de Direito das Gentes, o autor deixa de conceituá-la, e trabalha mais com dados empíricos, para uma tentativa de aproximação. (pp. 137 a 139).

[17] Na página 353 o autor fala não em retroeficácia, mas sim em validade – “could validate” – terminologia “livre”, cuja ambivalência gera ambigüidade, confusão conceitual. Ver também pp. 319 a 325.

[18] Böhme, 1989, pp. 62 a 66, 154, 179 a 180, 316 a 318, 518 a 523, 605 a 607, 856 a 858 e 1053.

[19] “... bewusster und organisierter Vortrupp und höchste Form der Klassenorganisation der Arbeiterklasse. Theoretische Grundlage der m. P. ist der Marxismus-Leninismus. Ihrem Wesen nach ist sie eine Klassenpartei und internationalistisch; sie ist Teil der internationalen kommunistischen Bewegung, der weltweit wirkenden, ausserordentlich einflussreichen ideologischen und politischen Bewegung revolutionärer Parteien in unserer Epoche des Übergangs vom Kapitalismus zum Sozialismus.” .....”Zur Erfüllung seiner historischen Mission bedarf das Proletariat einer selbständigen politischen Partei, die seinem Kampf durch die Einsicht in die Entwicklungsgesetze der menschlichen Gesellschaft wissenschaftlich begründet Ziel und Richtung gibt”.

[20] Entre outras obras do autor, ver Pontes de Miranda, 1970, pp. 29 e ss.

[21] Pontes de Miranda, 1921, pp. 522 a 543.

[22] Classificação das regras jurídicas, incluídas as não-cogentes: ver Pontes de Miranda, 1954, pp. pp. 81 e ss., 153 a 156.

[23] Cumpre traçar aqui linha divisória clara, para muitos uma linha de escândalo. O que consta em Kelsen, 1974, pp. 22-31, 35, 36, 56-69, 167-170, 192-198, 243, 234-235, 236, 283, 290-292, 299 e outras, e mais em Kelsen, 1986, pp. 23, 27, 46-48, 98-105, 119, 123, 146-148, 153-155, 183, 200, 290, 297, 328 etc. é o quase todo o avesso da nossa exposição. Esta é, em boa parte, a da teoria geral do direito reinante na grande maioria dos grandes juristas da Europa a partir do meio do século XIX, retificada entre nós em muitos pontos pelo brasileiro Pontes de Miranda. As duas posições são tão inconciliáveis que a do festejado H. Kelsen soa, diante dela, como imensamente imprecisa, confusa e contraditória.

[24] Pontes de Miranda, 1970, pp. 45 e ss.

[25] Há linguagem mitológica, que dificulta a compreensão do passado. Inobstante, a algo se pode chegar, nas origens. Há mesmo fatos universais da natureza (Barthes, 1995, pp. 100 a 102). Nenhum caminho melhor que o da biologia e os poucos mas preciosos sinais das raízes da linguagem. Ver Pontes de Miranda, 1953, passim e Pinto Ferreira,1986, pp. 85 a 91.

[26] “1. Manter a paz e a segurança ....: ... evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz .....2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio ....de autodeterminação dos povos....; 3. Conseguir .... cooperação.... para resolver os problemas .... de caráter econômico, social, .... respeito aos direitos .... e às liberdades .... para todos.....”

[27] Ver Keesing, 1981, pp . 316 a 328.

[28] Pontes de Miranda, 1970, pp. 50 e ss.

[29] Pontes de Miranda, 1954, pp. 153 a 156.

[30] Sobre a necessidade, como fundamento do pacta sunt servanda, ver Mello, op. cit., p. 259 (nota 20). A “necessidade” provém de surto da Natureza. É fundamento pré-jurídico. O jurídico segue-se a ela. Não tem sentido em falar-se em direito natural, no âmbito da ciência, como brevemente se exporá abaixo.

[31] Não tem sentido falar-se em direito de exercer uma faculdade; ter-se-ia um progressus in infinitum. A faculdade é um facere, um realizar. Um sair do entendimento e da intenção. É conteúdo de direito (subjetivo ou difuso).

[32] Já se vê a importância imensa das ciências particulares, sem pré-exclusão de nenhuma, na ciência do direito. Do mesmo modo a inanidade daninha de uma ciência “pura” do direito.

[33] História da liberdade (Pontes de Miranda, 1979, pp. 259 a 284). Há as liberdades absolutas, ou seja, em relação a todos e também ante a autoridade pública. Há também as relativas, como a lei as organize; podem estas últimas ser individuais e corporativas (Pontes de Miranda, 1979, pp. 285 a 291). Ver também mesmo autor, 1932, pp. 369 a 392.

[34] Pontes de Miranda, 1979, pp. 294 a 296.

[35] Pontes de Miranda, 1979, pág. 302. Discorrendo sobre a liberdade a seu modo (semi-metafísico e semi-romântico), vê-se em Heidegger, 1997, pp. 15 a 19, a tentativa filosófica de colheita do dado da liberdade. Para o método da ciência, este é um esforço sem resultados notáveis. Sem rigor nessa colheita é difícil obter-se o dado de proveito para a melhoria da vida pessoa e social.

[36] Ver Pontes de Miranda, 1979, pp. 409 a 552.

[37] Pontes de Miranda, 1953, pp. 100 a 124.

[38] Sobre o conceito, ver Forsthoff, 1961, pp. 170 e ss. e 424 e ss., onde o direito subjetivo público é analisado como poder frente ao Estado. Inclui-se aí a própria liberdade. Cuida-se porém de uma limitação conceitual do autor. A liberdade não é somente em relação ao Estado, mas é em relação a todos: direito absoluto, exercitável erga omnes. Não se confunda com direito de exercício “ilimitado”; este não parece possa existir. Pensamos contudo estar correto o autor quando alerta para a necessária analogia entre o que se passa no direito privado e o direito público no tocante ao conceito de pessoa, a saber, sujeito de direito. Ora, dizemos nós, nenhum direito é mais público que o Direito das Gentes.

[39] O filósofo em geral prefere a expressão “fenômeno jurídico”: porventura lhe parece positivística a terminologia “fato jurídico”. Mas sem razão, por isso que é proveitosa, e por isso desejável, a unificação da terminologia, a das ciências particulares mais exatas e a das de jetos mais espessos (onde a exatidão é possível e mais difícil). Tomadas as devidas cautelas, ganham estas em precisão sem perder a sua complexidade. Antes, a complexidade torna-se mais inteligível.

[40] Sobre tudo isso, longamente (com estudo de muitas centenas de obras, mormente de autores alemães e do direito luso-brasileiro), ver Pontes de Miranda, 1954, tomo I, pp. 3 a 35, 74 a 77, e 153 e ss.; tomo V, p. 3 e ss..

[41] Recente, entre nós, Mello, op. cit., v. I, pp. 144 (que menciona vários outros autores).

[42] A posição tomista (com influência suareziana) podemos encontrá-la desenvolvida por Gemmel, “Recht”, in Brugger, pp. 282 a 283. Objeto do direito são coisa e prestações de que o composto humano precisa. Em parte esses objetos são dados pela ordem essencial dos Homem, das coisas e, em parte, originam-se da criação do direito posto pelo Homem, ao amparo da suas exigências do ordem moral. O mesmo autor escreve sobre o direito natural (“Naturrecht”), sustentando a tese clássica. É a Natureza a fonte e medida da atividade. Em conseqüência o direito natural é o direito essencial ao Homem, que lhe ilumina a consciência e que a todos é dado possuir, sem distinção. Mantém-se essencialmente o mesmo, sem perda possível (pp. 231 a 232).

[43] Não nos é dado negar que possam estar radicados em Deus assim o direito como a justiça. Tudo, para os que temos fé, provém de Deus, e Deus em tudo está. Pela ciência contudo não temos como afirmá-lo (como não pode o cientista, sem arrogância, negá-lo). Sobre a matéria, com elevada piedade mística e realismo antropológico, a que se junta estética notável, discorrendo sobre o amor como a liberdade completa, que a tudo supera, seja a lei sejam os ditames da moral —, ver GUARDINI, Romano. Der Herr (Betrachtungen über die Person und das Leben Jesu Christi. Zweite durchgesehene Auflage. Würzburg: Werkbund-Verlag, 1938 (762 págs.), pp. 100-114, 214-224 e 348-353.

[44] É muita, e competente, a literatura já reunida acerca do tema. Além dos autores já mencionados no correr desta exposição, leiam-se entre muitíssimos outros (além de artigos abundantes em numerosas revistas): Faria, 1999, pp. 59-110; Kato, In: Faria, 1989, pp. 167 a 184; Retórica política e ideologia democrática: a legitimação do discurso jurídico liberal, 1984, pp. 36 a 60; Sociologia jurídica: crise do direito e práxis política, 1984, pp. 69 a 140; Creifelds, 1996, p. 1415; Leal, 1999, pp. 79 a 246; Mitterrand, 1998, pp. 157 a 183; Kurz, 1991, pp. 77 a 257.

[45] Nesta matéria v., além da Carta da ONU, 1948, as Conferências Mundiais de Direitos Humanos, como a de Teerã, 1968, e a de Viena, 1993.

[46] As fundamentais são no campo psíquico e no campo físico: 1) de pensar, de emitir o pensamento, de ciência e pesquisa, de religião, de não emitir o pensamento, de ensino, de cultos, de arte, de ensino artístico, de ensino por atos; 2) de ir-vir-ficar, de fazer e de não-fazer, inviolabilidade da casa, de reunião, de associação, de coalizão.

[47] O “Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” traz a previsão dos cinco novos direitos do Homem, até mesmo com a mesma terminologia usada desde 1933, no Brasil, por Pontes de Miranda (subsistência, trabalho, educação, assistência). Apenas o direito ao ideal vem com o nome de direito ao lazer (ver artigo 7o, II, “e”).