quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

ALGUNS PONTOS DA METAFÍSICA TOMISTA E OS REPAROS DA FILOSOFIA CIENTÍFICA. Segunda parte (aprofundamentos)

 Dissertação de Mestrado sob orientação do professor Miguel Reale. São Paulo USP, 1982 (2a edição, revista e atualizada).
São Paulo USP, 1982 (2a edição, revista e atualizada).
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CAPÍTULO IV — ALGUNS PONTOS DA METAFÍSICA TOMISTA E OS REPAROS DA FILOSOFIA CIENTÍFICA.
Segunda parte (aprofundamentos).
Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo).
O "pôr entre parênteses o sub (de Pontes de Miranda) é o retirar de si, em parte, mas ao máximo possível, esses movimentos da subjetividade. Esta operação mental tem por objetivo minimizar o lançar-se do sujeito (subjectum) para diante do quadro de visão, que ele próprio quer clarear.
O ímpeto religioso poderoso é, por ser um critério de adaptação, também social, pelo qual o homem é exigido no tocante a uma afirmação do que ainda não sabe (não cinde, não dissolve) e, mesmo assim, forçando, impõe aos outros uma afirmação, ou uma negação. Há lógica nesta operação: vem a ser uma lógica de formas, coerência de espécies eidéticas[1]. A consciência de sistema, a visão de conjunto, poderá ser formidável, arrebatadora. Não é irracional. Ao contrário, tanto mais racional quanto mais lógica. Na sua sensibilidade diante da "coisa real", que são as "interações sociais", também um poeta brasileiro percebe isto em artigo para jornal.[2]
Quem, como eu, admite que a vida é inventada e que a arte é um dos instrumentos dessa invenção terá do fenômeno artístico, obrigatoriamente, uma visão especial.
Não é só através da arte que o homem se inventa e inventa o mundo em que vive: a ciência, a filosofia, a religião também participam dessa invenção, sendo que cada uma delas o faz de maneira diferente, razão por que, creio, foram inventadas.
Se a filosofia inventasse a vida do mesmo modo que a ciência ou a religião o faz, não haveria por que a filosofia existir.
A conclusão inevitável é que todas elas são necessárias, ainda que cada uma a seu modo e sem a mesma importância para as diferentes pessoas. E o curioso -para não dizer maravilhoso- é que, de uma maneira ou de outra, a maioria das pessoas, senão todas, usufrui, ainda que desigualmente, de cada uma delas.
[...]
É que somos seres culturais, e não apenas porque nos apoiamos em valores éticos, estéticos, religiosos, filosóficos, científicos -mas porque eles são constitutivos dessa galáxia inventada que é o mundo humano.
Como numa galáxia cósmica, a diversidade da matéria e as relações de espaço e tempo, de presente, passado e futuro, fazem com que, de algum modo, tudo ali seja atual, já que qualquer um de nós pode encontrar numa frase de Sócrates, num verso de Fernando Pessoa, numa imagem pintada por Rembrandt, a verdade ou a inspiração que nos reconciliará com a vida. [...] a invenção do novo não implica a negação do que já foi feito, mas a sua superação dialética.
Todo artista sabe que a arte não nasceu com ele e que um dos sentidos essenciais de sua obra é incorporar-se a essa galáxia cultural que constitui a nossa própria existência.
[...] é perfeitamente natural que alguns artistas de hoje busquem expressar-se sem se valer das linguagens artísticas e, sim, antes, repelindo-as, para inventar um modo jamais utilizado por artistas do passado.
[...] há os que simplesmente negam a arte e outros que pretendem criar arte valendo-se de elementos antiartísticos ou não artísticos.
[...]
Não resta dúvida de que quem opta por uma atitude tão radical merece atenção e crédito, por seu inconformismo e por sua coragem, mas isso, por si só, não basta.
É preciso que dessa opção radical e corajosa resulte alguma coisa que nos comova e se some a esse mundo imaginário [...]
Nada me alegra mais do que me deparar com uma criação artística inovadora, [...] é imprescindível que a obra inusitada efetivamente transcenda a banalidade e a sacação apenas cerebral ou extravagante.
O que todos nós queremos é a maravilha, venha de onde vier, surja de onde surgir.
[...] a arte existe porque a vida não basta.
Nela está implícito que não é função da arte retratar a realidade, mas reinventá-la. [...]
A função social da ciência é algo como um "retratar". Cumpre-lhe dar ao social humano o chegar a degustar o sabor (mesmo étimo de saber...) revelando, descobrindo "aquilo que a coisa é", extrair do objeto o jeto (a nota mais característica do material ob-servado), com o mínimo de complicação para a mente dos seres humanos. Quer isto dizer que busca ela o elemento mental mais correspondente aos fatos. Isto de maneira tal que se assenhoreie da travação das formas, isto é, a mais completa possível. Pelo conhecimento científico o problema a solver e resolver é de definição. O problema é de jeto: ter mais segurança cognitiva sobre o material extraído e recolhido — se corresponde ou não àquilo "que a coisa é" e, com base nele, formar algumas proposições verdadeiras, positivas ou negativas. O conjunto dessas proposições é o "modesto", mas seguro, edifício das ciências [3].
De modo algum está provado que a proposição é geneticamente precedida do conceito, como quereriam Aristóteles e Tomás de Aquino — a lógica hodierna desmanchou esta ilusão, entre muitas outras, da lógica e da gnosiologia clássicas. E o conceito é algo que logicamente vem depois da sequencia: excitação, irritação, sensação, apreensão; ou então desta: excitação, irritação, intelecção, apreensão [4].
4. Metafísica, religião e religiosidade (=experiência de Deus). São três experiências diferentes entre si. A metafísica traduz uma classe de mentalidade na área da gnosiologia. Nela há lógica das formas, mas as formas são resultado de metodologia racionalista: a razão adianta-se aos fatos e não os tem como base de todo conhecimento seguro. Com tais formas, muito ocas, a maneira de pensar é diminuta e apoucada para legitimar o raciocínio: os universais (jetos) são extraídos prematuramente — ainda estando o sub-jeto sobrecarregado das suas próprias vivências, e estando o ob-jeto misturado a grande número de jatos atirados do mundo e ao mundo. Da pressa inconsciente resulta a alta produção de pseudo-jetos, isto é, formas mentais que funcionam como cápsulas dentro das quais cabem inúmeras parcelas de jatos entre si diferentes.
Bem, pois, voltando à metafísica temos de afirmar ser ela parenta próxima da Religião, processo social de adaptação diferente da Ciência. O homem admite como verdadeiras algumas realidades que lhe são trazidas pela necessidade existencial de crer sem ter de tudo demonstrar. Submete-se a fenômenos físicos, ou psíquicos, como a poderes do destino, incompreensíveis, transcendentes. O que passar do mundo sensível, já seria misterioso sinal de alguma força influente, superior à humana. De modo que a admissão de objetos ultrassensíveis não resulta de extração de jeto e da sua aplicação a nossos fenômenos (a jatos da existência); provém, antes, de uma aceitação instintiva, ou passional.
Terceira experiência é a degustação de Deus, que adequadamente se deve chamar religiosidade. No fundo constitui grau superior de evolução da Religião. Difere da Ciência porque forma jetos (exemplo: Deus) sem poder abarcá-lo todo na experienciação e porque a experienciação, mais que cognitiva, é de presença afetiva, suave e totalizante — de alguém ilimitado em bondade e doação. A ambiência de experimentação e de experienciação dá-se como que em clima ditoso de eternidade e de união pessoal sem reserva. Respira-se alto grau de liberdade e de imensa felicidade mística, interior [5], com percepção das realidades interiores e circundantes.
Verifica-se que o jeto da experiência de Deus (= religiosidade) é a essência de uma “realidade”, a que se alude sempre por metáfora e que se “sabe” ser maior que o conceito correspondente ao dito jeto. São exemplos: Deus, Senhor Supremo, Amor. Infinito, Pai Eterno. Esse jeto é experienciado como “presença”, “presença” de algo grande ou “pessoa”, algo grande, “pessoa” que é “envolvimento” de Amor inexprimível”, mas que, nesse mistério suave e forte, aparece como real.
Aí, neste cum-gnoscere, aparece uma relação de presença mística; configura-se um con-tato complexo de ser-a-SER. A funcionalidade sub-jeto, simultânea com ob-jeto, ocorre, mas a retirada do sub corresponde a um esvaziamento do "eu", a pouco e pouco como que mergulhado atrativamente, sem jeto conceituável; uma realidade inefável destituído de signo linguístico, que a descreva. Mesmo assim a experienciação ocorre, sim, mas com estrutura psíquica inteiramente diversa da experimentação científica. O “jeto” é recebido e afirmado como suprema afetividade personificada, sempre indescritível na sua ilimitada ação vivificante e salvífica [6].
5. Os processos sociais de adaptação no próprio conhecimento. A submissão do sub perante o jetar-se do jato, do ser, já agora como ser (=jeto) alimpa a estrada para a externação da "coisa" ou "aquilo que a coisa é", livre das escórias da sua objetivação, com a qual o espírito se firmou em posição de observador, em face de um obstáculo. A mesma operação libertadora dá-se com o safar-se a si mesmo, das suas próprias peias, dos seus próprios movimentos e resquícios.
Descoberta moderna é a proposição pela qual se tem de afirmar que esses movimentos são oriundos de cargas sociais. Grande dificuldade tem o metafísico (tomista ou não) em aceitar tal enunciado. Essas cargas sociais são de sete classes principais (o metafísico diria "qualidades"): religião, moral, arte, ciência, direito, política e economia. O movimento da religião caracteriza-se pelo critério de passar além do mundo sensível. É o "trans-sabível", o “meta”-“físico”, o "ultra-sensível", o "supra"-científico. Agora outro "trejeito": temos o "trejeito" do sub chamado moral, que tem por distintivo o critério de afirmar, firmando-se, o bom, o digno, o louvável, o aprovável pela maioria dos seres humanos[7].
Esses movimentos inflamam o sub, como o faz também o critério do "belo", "harmônico", que é o guia do processo adaptativo pela estética (arte). Afora a ciência, o mais neutro modo das interações humanas, há ainda outros 3 principais processos sociais de adaptação. São eles: o critério da solução imediata e indiscutível — direta, justa (direito); o critério do útil material (economia) e o critério do poder no grupo (política). Ou seja, ainda mesmo sob a impetuosa energia das paixões, conseguimos com o emprego da ciência a vantagem de sermos quase neutros nas relações humanas gerais de convivência ou interações. Não é único o caminho percorrido pela própria ciência: todos movimentamos o espírito em meio às outras cargas sociais que nos estruturam historicamente. Ora, em todos há alteridade. Em todos ocorre troca de energias: dar-receber-passar e no problema gnosiológico esta questão é fundamental: tem o espírito de libertar-se, ao máximo possível, dessas cargas para que elas não turvem muito o que se vai conhecer, "aquilo que a coisa é". Figurativamente é como não tremer a mão, nem a atenção, nem movimentar a água em cujo interior está o peixe, que se vai colher: é cuidado indispensável para colhê-lo como ele está, como ele é hic et nunc [8]. Se o sub é posto de lado, entre parênteses, o espírito já quase está inteiramente livre: (sub)-jeto, (ob)-jeto. Falta apenas tirar a própria ideia ou reminiscência de que o restante (-jeto) se liga a algo mais. Cumpre tirar essa "ligação", essa ideia de vínculo que se aponta como o "hífen" encontrado em "-jeto".
6. Extração do jeto (+-"essência" ou "universal"). Alimpada a ideia, mesmo de relação do jeto com "outro", fica o jeto — o ser captado com apenas um mínimo de "eu" e mínimo também de confusão de uma "coisa" com outra "coisa": fica, isto sim, colhida "aquilo que cada coisa é". E já se pode, sem maior perigo de erro, deixar ver-se a relação original, anterior ao posicionar-se, ao artefato operacional do espírito, ele (sub), diante do outro (ob). É a relação jeto-jeto. Esse jeito é a species, é a "ideia". O seu conteúdo, mentado, é quase sempre universal [9]. Real ele também é porque extraído mesmo da coisa. Mas sem "realismo", porque resultou, também, de operação do espírito [10].
Fica mais clara a vantagem da gnosiologia científica de Pontes de Miranda sobre a gnosiologia racionalista de Santo Tomás de Aquino.
Mas, mesmo assim essa conquista não autoriza a repor esse jeto como se ele estivesse precisamente como está, lá no interior da coisa. Lá, na coisa, ele está sem a anterior inflexão de ob com que, agora, estou focalizando a coisa. Jeto não é o objeto, mas sim o extrato do objeto, que entrou em mim porque abri as comportas, desaferrolhando o ob e baixando a impetuosidade do sub. Mas, ele é real, sem necessidade nem possibilidade de o eu substituir o ob (obstáculo) pelo hypo, pelo ultra, pelo trans, pelo meta. Essa necessidade de hipostasiar, de pôr, de criar, é minha, vital. E uso dela constantemente. Preciso dela para viver, mesmo para obter muito do que não obteria só com o scire, com o saber, com o assimilari quieti. Para viver precisamos dos demais impulsos: "bom", "maravilhoso", "justo", "útil", "poder" etc. Não são operações irracionais. Estão em nós como está o scire . Não se contrapõem ao "verdadeiro". Apenas, enquanto tais, o que construo com a inserção subtil e inconsciente desses impulsos, se não tiver passado pela experimentação (fatos), se não for verificável (fatos), se não for sabível, então não é científico. É extra-científico, fora da ciência. O que é supra-científico, ultra-científico, trans-científico, sub-científico é, porém, extra-científico: é parte do viver (troca de energia sociológica) que se executa num "canal" diverso do canal "scire"— numa outra via, numa outra dimensão, num outro espaço.
São aliás dimensões transformadoras, espaços mais ou menos, rígidos, mais ou menos difíceis de se desfazerem. A resistência dá-se nesta ordem de energia decrescente: religião, moral, arte, direito, política e economia — a mesma ordem decrescente de poder de estabilidade social[11]. Cumpre notar como todos os processos sociais de adaptação coabitam com alguma lógica, porque todos convivem ao menos um pouco com o scire, com a ciência positiva[12]. Acoimá-los de alógicos ou ilógicos, inteiramente, é abstrair do homem histórico. Filosofar fora do sociológico, psicológico, físico, e matemático (ficando só com o jeto lógico) é correr o risco de se construir sem o real, isto é, de se errar no erguimento de sistemas conturbados pelo empuxe multifário de energias sociais: ideologia religiosa, moral, etc., na unilateralidade do pan-logismo matematizante, sem correspondência no físico, biológico e sociológico — que são o Real.
Esse fenômeno ocorreu em grande parte — parece-nos — com a metafísica tomista, em decorrência de não ter resolvido satisfatoriamente o problema fundamental do conhecimento. A metafísica é vizinha parede-e-meia da Religião, como processus: no racionalismo metafísico, porém, sem a explicitude do sagrado. Lá se acha o sagrado sem este nome, o inexprimível em forma difusa e impessoal, presente e "amorosa", quase sempre subtil.
5. O tema principal deste capítulo: a metafísica não é cognitivamente segura. Concordam todos que o aristotelismo tomista é sistema, e que tem larga e arraigada influência no pensamento ocidental. É ponto pacífico, como se diz [13].
a) Diálogos.
Sempre houve, evidentemente, movimentos filosóficos contrários ao tomismo. já mesmo ao tempo de Santo Tomás, como os franciscanos ingleses da universidade de Oxford, Robert Grossetête e Robert Bacon. Vencendo em prestígio, prosseguiu. Decaiu a Escolástica no seu tanto. Mas sempre influiu, inclusive em seus métodos de estudo, mormente nas faculdades de filosofia, humanidades e direito, como é sabido. E o problema fundamental do conhecimento permaneceu sempre a desempenhar no fundo o seu papel de esfinge — saberá mais e melhor quem o decifrar. Cavalo de batalha sobre o qual, porém — pensamos — o tomismo perigosamente, a bem dizer, descansou. Não o domou. Deu-o como morto. Ora, a lógica deste século retomou a batalha. E o fez vigorosamente[14]. A "possibilidade da metafísica" — como ciência em sentido estrito, entendamo-nos, é que, para a lógica do século XX, diz com um marco do passado. Mas o tomismo continua atuante com quase as mesmas convicções de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, introduzidas algumas correções (por sinal, graves) por John Duns Scotus (também franciscano) e Francisco Suárez (jesuíta) além de outros. Houve e há tentativas de diálogos com Kant, Fichte, Hegel, Husserl, Heidegger e muitos mais filósofos. "Diálogo entre metafísicos", sorriem os investigadores da filosofia científica.
b) Ciência positiva.
De outro lado, pensamos, não se pode ignorar a obra jurídica de um matemático, físico, biólogo, sociólogo, e filósofo científico do porte de Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda. Sua produção, por vezes ridicularizada até nos meios jurídicos (em que é mais conhecido), é a de pensador que parece começar no extremo oposto do aristotelismo [15]. A ciência jurídica positiva, Pontes de Miranda como que a fundou [16]. Foi um sistematizador de não menor porte que Santo Tomás entendemos nós (para o sorriso de apressados). O problema existe, pois.
Inútil bater em retirada ou, à falta de argumentos melhores, urdir o que Djacyr Menezes chama de "boicote do silêncio". Usa-se ainda a arma bem pouco nobre da ridicularização contra o pensador pátrio, compreensível em quem está a dever argumentos a esse sábio ainda insuficientemente estudado [17].
Cumpre pois traçar aqui alguns argumentos desse sistematizador tão pouco aristotélico [18], que é Pontes de Miranda. São reflexões merecedoras de toda atenção, a despeito da quase nenhuma disposição da mentalidade metafísica para rever posições. A metafísica pertence ao processo religioso de adaptação social, fortemente frenador, com grau 6 (o máximo dos vários processos sociais de adaptação) de estabilidade, isto é, vem a ser um dos mais arraigados no espírito, de grande inércia (no sentido da física), de difícil mudança.
Além disso, Religião é processo social de adaptação fortemente despótico [19]. É o terceiro em despotismo, depois da política e da economia [20]. A matéria merece algumas linhas. Pretendemos com elas insinuar, por contraste, as diferenças entre a juridicidade tomista e a da ciência positiva, a ponteana — uma tensão entre ideias que não desserve à chamada "filosofia do direito". As raízes estão na metafísica, entalada na estreita garganta por onde passa tudo de quanto nos nutrimos cognoscitivamente — a gnosiologia. Esta é a tese, aliás, que está implícita neste nosso trabalho [21].
c) O conhecimento.
Porque o homem pôde conhecer também o seu conhecimento, chegou a cum-gnoscere, ao passo que o animal apenas consegue gnoscere. Com a fé não estamos a conhecer. Ao crermos, pomos algo não-"conhecido" como suporte lógico ôntico daquilo que sabemos, provamos e experienciamos. Por isso, exsurgindo aí uma complementação do experiencial, do "sapere", do verificável em exigência não contestada pela lógica formal, não se pode dizer "irracional" nem o ato de religiosidade nem o de hipostasiação metafísica. Não seria acertado afirmar que na experiência religiosa não haveria a empiria pois é bem ao contrário — prevalece a experiência sobre a abstração.
Há algo de comum, na origem, entre sujeito e objeto, entre o "eu" e a "coisa", sendo que o espírito é capaz de, a si mesmo, se pôr como objeto de si próprio. Nessa articulação sub-ob está uma relação entre seres, a que chamamos conhecimento. De modo que é indispensável, para bem se ver esse fenômeno, desarticular a flexão sub-ob sem romantismos. Como trabalha o fisiólogo, assim terá de operar o gnosiólogo interessado em não comprometer desde logo o seu pensar [22]. Um dos problemas da metafísica é este: nela se desconhece essa notável técnica do espírito.
"Téchne" (τέχνη) é destreza com a mão; lembra garra, mão e dedo, que foram e parecem continuar sendo uma evolução de habilidades do sub, do ser cognoscente[23]. Quando a lógica clássica e a metafísica aludem ao dualismo "sujeito-objeto" como se fosse o início do ato de pensar, já começam a pensar sem ter resolvido o problema primordial — como é que o pensamento acontece? E então é de se esperar que as ideias e correntes entrem em disputa como em gangorra, procurando o equilíbrio entre os dois extremos da relação. Aproximam-se pouco do gonzo mesmo, sem maior interesse por descobrir como tão formidável dobradiça funciona. E quando o fazem, ainda é porque se seguraram a uma das extremidades: sub-jeto, ob-jeto [24].
Aos lógicos muito se deve, a partir do século XX, na investigação subtil e séria desse notável fenômeno que é o conhecimento: modera-se o açodamento imperial de sistematizar. O substancialismo tomista resulta também de falta de resposta ao cerne da gnosiologia a despeito do muito que nesse campo — como em muitos outros — acertou o gênio aquinatense. As categorias de Aristóteles, quando acolhidas por Santo Tomás de Aquino sem crítica mais subtil, põem "graus de ser" no que são apenas relações entre seres [25]. E essas categorias cerram as próprias frinchas desse artificialismo mediante o emprego dos tampões exigidos pela lógica formal, de modo que não deixassem brechas no sistema — elas o poriam em crise...
Também o sentimento de simetria, que redunda da finura e beleza da Arte, colabora por que o sistema se construa, suprindo com "hipo", "trans", "ultra", "substância", a falta de dados. É como se tivesse de existir como tal o que a razão raciocinante, aqui encurvada pela estética, pede como existente [26]. Ora, esse pedido da “razão estética” acarreta a exigência lógico-formal do "não-dado", do "ultra-experienciado". Infiltra-se aí a hipostasiação, fenômeno idêntico na crença e na ascensão metafísica, por isto que em ambas há esse salto para a transcendência. Essa transcendência, se autorizada pela inteligência, é a própria "possibilidade da metafísica" postulada pelos tomistas convictos de que, sem essa fundamentação, não haveria qualquer esperança de racionalidade da fé. Seria o fim do pensador cristão, o seu dies irae, e por via de consequência chegariam ao caos a teologia e o imediato — a pastoral, a evangelização, o apostolado amplo e abrangente, tudo missão compreensível das Igrejas ou religiões.
É bem por isto que o cientista concorda que a revisão científica do problema dos universais acarretará mudanças na própria adaptação religiosa das pessoas ao mundo. Não por extirpação dessa vivência e sim por sua depuração. Vale dizer, serve a uma mais segura fundação das experiências religiosas — o que pensamos ser degrau desejável ou degraus ambicionáveis a mais na subida do espírito humano para além de si próprio.
Quanto ao Direito, os benefícios não são menores. Basta atentar-se na exatidão, clareza e segurança que à prática forense confere a experiência da ciência positiva do direito: fazer com que coincidam aplicação e incidência. Conseguir que o processo adaptativo jurídico funcione com ele é, independentemente das convicções do intérprete [27]. É, aliás, como cumpre ser, o sicut oportet, visto tão claramente por Santo Tomás.
d) Avanço no conhecimento científico.
A sociologia tem explicações para a sede sistematizadora de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino. No gênio grego, o elemento preponderante foi a "ordem", ditada sobretudo pela estética e pela moral, pelos valores belo e bom (καλὸς κἀγαθός). No Santo o que mais pesou foi a profunda religiosidade, somada à necessidade de disciplinar os espíritos (“ordem”) em meio a debates em que o conteúdo da fé cristã correria risco de desvios e transtornos [28]. São atitudes. A atitude é movimento do sub determinada em grande parte — no caso — pelo critério religioso, pela "tendência" de ir para além do conhecido, do experienciado, do apreendido nos caminhos típicos da ciência positiva, da "coisa posta" (também a ciência é um processo social de adaptação). Conhecer vem a ser o mesmo que adaptar-se à coisa, ao ser. Mas a coisa, o ser, só é, no mundo. Este é um ilimitado complexo relacional, ser-ser, em expansão — não há a "coisa" isolada em si própria, solipsisticamente pensada. A coisa só é no social, e o mundo existe sempre em alteridade, desde o físico [29]. O ser biológico continua a alteridade (ou socialidade!) em mais degraus.
E o sociológico é ainda mais complexo [30]. Mas a alteridade, ora mais profunda ora mais externada, (Religião, Moral, Direito), está presente sempre [31]. Assim ocorre com todo processo adaptativo do homem, único animal capaz de indicar. E indica porque assim o fez a Assembleia, isto é, na alteridade. O indivíduo é o que é porque a Assembleia (ou grupo ou círculo social) o moldou por dentro e por fora. Eis aí, pois, o dado, colhido com segurança pela Ciência. Nenhum perigo há aí para qualquer religião, por exemplo, para a Religião Cristã. Ao contrário, são proposições que servem à hermenêutica das "Escrituras", cuja comunicação linguística a cada dia vai se debulhando. Depura-se no acompanhamento dos saberes crescentes trazidos pelas ciências particulares e pela sociologia científica[32]. Esta adaptação da Religião aos saberes constantemente atualizados colabora. por exemplo, com a compreensão da missão de Jesus Cristo e da sua obra histórica (=igreja cristãs). Não é verdadeiro dizer que a Ciência é incompatível com a Religião, ou vice-versa. O pesar[33] a fundo o mundo vai demonstrando o contrário, e só deveria gerar confiança em qualquer pensador que se mova com livre disponibilidade de espírito.
Ao filosofar com o intuito de acertar não pode alguém levar consigo nada que imponha convicção. Na ciência não cabe imposição. Ocupa-se esta de indicação. Com a raiz da mesma palavra indicação está o mesmo étimo de digitus (dedo), e vieram-nos δικα´ια, in-dicar, dicere, dizer e só passou depois ao sentido de "julgar". O ato de indicar vem de muito longe na história humana; foi o próprio começo do Homem ao separar-se do bruto. A notável diferenciadora indicação não se inicia com o homem culto nas pretensas “alturas transcendentais do seu ápice de consciência”. O início do pensamento com o ato de indicar longe está de ocorrer na interioridade da consciência como se fora o campo ótimo da experiência cognoscitiva. Isto é já um chegar, não um começar. É, antes, um aportar, um aportar, aliás, com a embarcação um tanto desequilibrada pelo excessivo peso do sub, mui solipsisticamente individualizado em excesso.
O começo está muito longe: foi lá quando a Assembleia provocou o levantar do dedo indicador (este indicador que já tinha sido só "garra" e depois a singela "mão") para diferenciar "algo" de "algo". Aí — ao que parece — já houve a conjugação do ir-e-vir desse posicionamento sub-ob, funcionando o conhecimento — primitivo sem dúvida — mas conhecimento: cum-gnoscere. Já é o Homem.
e) Discurso metafísico e análise científica.
Como se vê, a Lógica da Ciência surge do extremo oposto em relação àqueloutra da filosofia clássica e de qualquer discurso metafísico. A metafísica, sistematizando maravilhosamente, "abarca o Ser". É totalizante. Ama a visão global, mundivisional, a inabluível "Weltanschaung" [34]. Há nela uma convicção de poder intelectual, de domínio adâmico (conceptualista) sobre o Universo. É o tempo do "Homem > Saber", uma espécie de "eu sei tudo". O progredir da Ciência (hoje, por exemplo, com a microfísica e com a relatividade) inverteu a inequação: Homem < Saber, uma espécie de "tenho muito a aprender". Hipostasiar, para abranger um sistema totalizante, não é sobretudo um saber. É principalmente um pôr-se acima. Contudo, para dominar, sabendo, o homem não se põe, mas ao contrário, tira-se: o pensador desmonta a engrenagem-arte da dupla "sub-ob" para deixar transparecer o jeto. Se se põe, será visto no sistema o que pusemos — o sistema será um "construído", um arcabouço lógico. Resta apurar se esse "construído"corresponde ao "mundo", se o mundo efetivamente cabe nesse "construído". A questão é grave e difícil, já se vê.
Agora, se o pensador constrói com o jeto ("ser"), temos um jato a mais de realidades: o pensamento começa sem trajeto, munido de consistência formal e material. Terá obtido proposições verdadeiras ordenadas e não as verdades-seres ordenadoras. Quando o sistema arranca das ciências e dos seus resultados, a filosofia conseguida suporta provas; vale mais. Este mais está aí para significar que provavelmente toda construção científica conta com o ter de corrigir-se incessantemente. A ciência não comporta sistematização absoluta, embora ela tenha mais fundamento para confiar no seu "construído", feito com os informes do "dado", com jeto, com "ser". Está aí mais uma grande diferença entre metafísica (filosofia clássica) e ciência (filosofia científica).
Uma sistemática em que, com tal construção, figure a definição de lei, é de insondável proveito para a vida. Estará mais acertadamente explicado o individual e também o social. E com muito maior segurança cognoscitiva, que é valiosa conquista teórica e praticamente [35]. O filosofar científico, por isto mesmo que o é, renuncia a qualquer pré-excludência. Nada exclui nem inclui a priori. Acolhe o que for provado, isto é, o que passou bem pelos testes de verificabilidade. Entram aí todas as vivências, todas as energias sociais, todas as maneira de se efetuarem trocas de necessidades ou energias humanas. Mas tais energias não as "tece" a Ciência isolada, nem é possível que ela se converta dos demais processos sociais de adaptação. O que sim é missão natural sua é enxergar por dentro e por fora, o que
— parecendo embora pouco — é muitíssimo, pela eficácia do seu critério vital: os conteúdos desses outros processos vitais de "permuta de valores sociais" produzidos pela sociedade, pelos variados sociais da terra. Se esses conteúdos gerarem convicção cognitiva de serem fiéis à realidade humana, serão eles jetos carregados de "bem e belo — do homem". Ora, esta conquista é a chegada a uma partícula do conjunto humano dos saberes, de ciência. Terá sido, pois, o verdadeiro, o provado, o seguro, o real visto. Não o "real" sotoposto, a trans-entidade, o supra-real, o "ôntico lá de trás", o meta-físico.
f) Texto ponteano.
Leiamos, precisas e concisas, as palavras do próprio PONTES DE MIRANDA em "O problema fundamental do conhecimento", 2ª edição:
Amor da sabedoria — como é, no étimo — por certo que a Filosofia a amou muito, mas sem se ocupar de chegar até ela. Admirar e contemplar o cimo da montanha não eqüivale a subi-la até lá. Tudo, no entanto, estava em subir" (pág. 37).
[...]
A filosofia científica, abolindo a distinção radical físico, espiritual, lógico, matemático, e outras separações, que criam abismos entre os objetos das ciências, fala do mundo como é dado aos sentidos, em muito corrigido pelo conhecimento posterior não-integrado nos órgãos dos sentidos —…— e pelo que nos dão o objeto lógico, o matemático, o físico, o biológico, o psíquico (pág. 41).
[...]
Libertando-se da subordinação à filosofia clássica, que, por exemplo, assentava e assenta na afirmação de uma variável de tempo universal e única, a ciência contemporânea pôs a filosofia em atraso, e ela ou a) se desmonta, se destroniza, renunciando ao prestígio de indagação supra-científica, para ser à altura da Ciência e a ligação mesma entra a ciência do dia, a meditação dos seus propósitos e programas a Teoria do Conhecimento até aqui, ou b) será o fóssil de uma atitude mental do tempo em que o saber era aquém do homem. Não se tem prestado suficiente atenção às consequências intelectuais e morais, tampouco às consequências religiosas, de tal inversão de valores: Homem>Saber, Homem<Saber. Evidentemente são enormes (pág. 41–42).
Ora, dizemos nós, para chegar a ser fonte confiável de conhecimento (valor cognitivo), a filosofia tem que atender ao conhecimento científico, analisá-lo, procurar a coerência possível entre as regiões dele. Não deve turvar, nem perturbar. Deve clarear, esclarecer. É preciso que não desmonte ou monte a obra tranquila da ciência. Que continue de ser "conhecimento", e não passe ao plano da imaginação, de arte, ao plano logicamente incompleto do crer, ao nível dos imperativos da Economia e da Política. Sem a prudência e a neutralidade da Ciência, os outros seis modos determinantes da convivência formam as ideologias. Distantes da Ciência da Humanidade os seres humanos debatemo-nos no meio mais tempestuoso das ideologias.
No conhecer, ao contrário, há um tomar que se aquieta, que não avança nem regride tanto, que não pende com insuportável intensidade nem para um lado nem para outro. A indicatividade traduz-se nisso e isso traduz a livre disponibilidade do espírito, que se requinta no conhecimento científico. Onde há imperativo, há tendência, movimento. A figura de Tomás de Aquino bem viu no ato de conhecer um ato e um repouso, ato e constância: assimilatur quieti.
No conhecer há sem dúvida o máximo equilíbrio: a maior coexistência do ser com o ser, porque é a coexistência que o capta, sem o alterar, que o duplifica no plano das relações.
7. Filosofia científica.
Por certo que a filosofia pretende ter por objeto mais que o objeto das ciências especiais. Todavia, se o seu objeto é novo e heterogêneo, não é filosofia científica, repleta que andará de sentimento estético e de esperança metafísica. Não pode ela supor nova função por parte do espírito, mas nova aplicação, total ou mais geral, da mesma função, e pouco ou quase nada pode descobrir sobre a natura rerum — natureza das coisas. Acresce que não supõe diversidade nem no sentido subjetivo nem no objetivo porque o seu método, método medieval, é sempre diferente do método científico e mais próximo da inspiração religiosa.
Não lhe é permitido, todavia, admitir dados contrários à ciência, nem pretender ser mais que uma projeção intelectual um tanto romântica dos edifícios que as diferentes ciências especiais construíram. Diferente vem a ser o edifício central da Ciência mesma, sempre provisório e susceptível de reconstrução, no seu estado em cada momento típico. Esse termo geral "Ciência" sem qualquer perigo de erro cognoscitivo, parece estar em "filosofia científica", e este vocábulo naquele — como o mármore anda contido na estátua e a estátua no mármore.
Se a Filosofia é definida como conhecimento da totalidade das coisas, algo essencialmente distinto do objeto da Ciência, então a filosofia se diferencia da ciência no sentido objetivo e no subjetivo (porque é outra função do sujeito): a filosofia parece-se a um parente próximo da religião e da moral com muito de arte, e quase sempre desaparece quando o filósofo submete tais depósitos invisíveis à mensuração, porque, sendo ideias quase sem conteúdo algum, eles estão situados fora do mundo real[36]. As três, religião, moral e arte, figuram no rol dos processos sociais de adaptação imperativos, à direita da ciência (indicativo), de modo que são processos mais estabilizadores, mais frenadores, que o simples ato de conhecer. A filosofia tem conteúdos variados porque assume sobretudo "valores" da religião, da moral e da arte. De todo modo a filosofia se diferencia da religião (fé), mas sempre devido à preponderância de outros elementos (éticos, artísticos, econômicos).
A filosofia materialista, à Plekhánov, é um exemplo de esvaziamento "teológico" e enchimento "econômico". Em relação à arte, ela é mais pensamento e menos sentimento, no que aquela lhe leva a vantagem de poder criar percepções com maior número de elementos espirituais. Mesmo assim o mundo das artes inspira-se em objetos individuais, e não em totalidade do objeto, como a Filosofia. Nos nossos tempos, a filosofia clássica continua de ser a atividade que dá a mão à religião e à ciência, ou à moral e à ciência, porém quase sempre a uma só ciência.
Do que dissemos, facilmente se tira que a filosofia científica já se separou da filosofia clássica, já constitui, no sistema da nossa cultura, a atividade de pensamento que fiscaliza os edifícios que as ciências executaram e executam. Se a ciência dá a mão a algum outro processo social de adaptação, o pensador, o homem reflexivo, se sente mais firme do que na filosofia clássica: na ciência as mentes ocupam-se mais de fatos que de abstrações vazias. A filosofia, ao contrário, é interior ou a uma fé, ou a um sistema ético, ou a uma convicção estética, ou econômica. Por assumir nesse ou naquele momento um "valor" de tais sistemas, a filosofia torna-se incapaz de vê-los. No pensamento de Pontes de Miranda, é mediante a sua independência diante desses "valores" que a filosofia científica consegue libertar-se do dogmatismo, da concepção imodificável do universo. Mais que isto, ela admite a sua própria mudança, o que seria incompatível com a velha metafísica, o capítulo final da filosofia clássica. Por outro lado, a teoria dos valores, que era o segundo capítulo, já hoje lhe vem da Sociologia e pouco lhe terá ela de acrescentar. A teoria da ciência, seu primeiro capítulo, constitui o objeto da Teoria do Conhecimento, que é ciência, e reproduz o fato a que aludimos a respeito da teoria dos valores. Portanto, à medida que se construíram a Sociologia e a Epistemologia, a filosofia clássica perdeu dois capítulos, tornou-se científica a filosofia e a era galileana obtém nos nossos dias — os dias da ciência superior ao homem — a atividade filosófica da concepção científica do Universo.
Vejamos mais sobre a crítica do filósofo científico brasileiro.
Alguns filósofos, escreve ele, ainda entendem que deve ser tal a proposição filosófica que não possa ser provada, nem refutada, por argumentos de experiência: os fatos especiais e acidentais são sem relação com ela; e não se compreende que as obras filosóficas arrolem invocações históricas ou dados sobre circunvoluções cerebrais. Wolf, Bertrand Russell e outros pensam assim. Mas, há um pouco mais de Leibniz em tudo isso. A filosofia da "inteligência pura" cai no mais inflexível dos intelectualismos e remergulha no tipo clássico por um caminho oposto ao percorrido pelos idealistas. Nada podemos dizer sobre a finura do jeto filosófico, porque não há tal jeto. A Filosofia trabalha com os resultados das ciências, ela não tem jeto próprio. Por isso não passa de frase vazia a proposição que se refere à Filosofia como se fosse a ciência do possível, a ciência do a priori. Já a filosofia científica é coexaustiva, mas assim é sem haurir nada fora da ciência. Dentro do espaço que as ciências configuram, posto que precisando o que é conhecimento e o que é valor não cognoscitivo, a filosofia científica aponta e colhe o que é científico no momento de filosofar. A sua função é, portanto, enorme, se bem que não seja mais a função indefinida da filosofia clássica.
A enormidade da função da filosofia científica está, portanto, prossegue Pontes, em que se atém à Ciência, mas exaure-lhe o âmbito, no sentido de dar conta de toda ela e de, com ela, preencher o que pode ser preenchido sem erros, sem excessos.
Ainda aqui se notam submissão e esforço — o segredo da vitória cognitiva do homem.[37]
8. Conclusões a tirar das considerações feitas.
Das considerações acima feitas havemos de afirmar o seguinte, segundo as exposições de Pontes de Miranda:
a) Toda filosofia científica deve ver as proposições se faz o conhecimento, e a verdade é apenas a qualidade das proposições verdadeiras (a "lógica de dois + infinitos valores", de que falaremos, mostra que entre a verdade de uma proposição e a sua falsidade há todo o infinito das probabilidades de 1 a 0, porém que isso não exclui, isto é, não subsume nos infinitos valores de 1 a 0 os dois valores da lógica clássica).
b) A Teoria do Conhecimento, pela natureza do seu objeto, só se pode preocupar com o conhecimento até aqui, e não tem missão supracientífica: também é ciência, e não filosofia.
c) O realista, o idealista, o pragmatista, o fenomenalista, o existencialista, sacam sobre o futuro — uns, positivamente, outros, negativamente.
d) A função da filosofia é compreensiva, e não extensiva. "Filosofar cientificamente" é co-exaurir. A função da filosofia científica é uma exaustão [38]. A filosofia científica explicita-se no ligar o conhecimento científico à hora que passa (na vida do espírito humano) e, portanto, na revelação da coerência dos resultados científicos e da interpretação construtiva que o momento aponta como a melhor.
e) Nesse "melhor" há um pouco de altura, se nos considerarmos no cume (subjetivo, portanto, o "melhor"); mas nada obsta a que só levemos em conta a altura da Ciência mesma.
f) A vocação do nosso tempo para a filosofa científica provém da realidade social do "Homem < Saber". Os que insistem em atribuir à filosofia a velha função semi-poética, semiliterária, são espíritos de outros tempos que vivem entre nós, sem serem, intelectualmente, nossos contemporâneos".
9. Realismo, idealismo.
Vale muito a exposição do próprio gênio moderna das ciências, como abaixo vai.
A separação "realismo, idealismo" não cabe em ciência. Há um realismo à base dela, mas implícito. O tomismo, pré-crítico, desconheceu-a; a filosofia científica conhece-a e repele-a, aí, a outro terreno. A ciência não pode arquitetar uma crítica de conhecimento. O que dela sai é uma teoria, uma ciência do conhecimento. Os filósofos neo-escolásticos que levantam o problema crítico e lhe dão resposta vestem roupa de Kant; os filósofos científicos, que o fazem, deixam, por um momento, de ser cientistas: são filósofos, à maneira clássica. Aqueles abandonam, sem razão, a ontologia ingênua, que corresponde à psicologia infantil; esses, também sem razão, recuam ao criticismo. Ora, a filosofia científica continua a era infantil — é o pensamento filosófico da idade madura. O espírito crítico quis restabelecer o contato entre o pensamento e a experiência. A filosofia clássica tinha de passar pelo realismo ingênuo e pelo criticismo. A filosofia científica, não. A ciência assentou, assegurou aquele contato entre o pensamento e a experiência. A filosofia científica já não precisa — no plano do conhecimento — de restabelecer o contato, pois já o encontra. A crítica, que lhe coube fazer, não atinge o conhecimento, — já se exerce noutro plano: no interior da ciência. Aí a discussão entre realistas e idealistas já é tardia, fora de espaço e de tempo: travou-se antes e alhures, isto é, antes da ciência e fora da ciência. Ficou, portanto, atrás e noutro domínio: na ironia socrática, nos cépticos gregos, em Agostinho, em Descartes, e em Kant. A crítica dentro da ciência é outra questão: quase define a filosofia científica. [...]
A seguir, do mesmo autor temos:
10. Depurações.
Quando as ciências, já podem dizer a sua palavra sobre os seus problemas, a filosofia acientífica é tentativa reacionária, fora do sentido da vida. Cheira a seda velha ou a móveis novos de meio estilo antigo. O que nos importa, agora, é corrigir o que pensávamos com o fluxo do que sabemos. O nosso Universo destoa dos mais próximos mecanismos da nossa existência diária; a nossa ambiência prática ultrapassou o nosso pensar teórico; a nossa ciência superou-nos, e superou a nossa visão do mundo. Homem < Saber. Tropeçamos, a cada momento, em conceitos de entidades ônticas, quando já não cuidamos mais, nas pesquisas, de consistências que as exigissem. Quando muito, alguns filósofos, querendo escapar ao ontologismo (idealista ou realista), retombam nele por outros caminhos. Ora, as ciências — em seu conjunto — podem servir-nos a uma filosofia que fuja à ontologia, sem mergulhar no "demasiado formal", no secamento lógico, do criticismo, nem se pôr a ferros no intuicionismo, que é reação àquele. Nem lhe faltara atenção ao imediato, ao experiencial, nem o estudo do lado formal do conhecimento, nem a afirmação de independência, que torna escusada a velha questão ontológica [39].
Sem dúvida, pelos caminhos que nos abrem, hoje em dia, as investigações lógicas e matemáticas, a Biologia e a Teoria do Conhecimento, a pesquisa e a construção científicas ganharam em segurança. Esse rigor, essa solidez, esse poder de verificação e coerência dos diferentes ramos da ciência (coerência crescente, por força de leis mais gerais, que a cada passo se descobrem) servem à filosofia científica, no seu propósito de não sair da Ciência e no seu mister de exaurir. Em toda filosofia científica há uma contemplação que é fecunda; em toda filosofia clássica, um destino e, pois, o trágico de todo destino. É uma biografia” [40].
11. Invariante funcional. De como talvez se tenha de acrescentar algo mais ao pensamento de Pontes de Miranda.
Se nos voltamos aos dados da ciência atual, incluída a mecânica celeste, parece que a todo rigor tenhamos de dar razão em parte, arte mínima, verdade seja, aos velhos nominalistas medievais, que negavam a possibilidade dos conceitos universais (nominales): não seriam eles mais que meros nomes (nomina). parece mesmo que temos de dizer porque o universal puro A, em tudo igual a outro A, não é nem existe senão por ficção. Assemelha-se a sua criação lógica ao “conceito” de “infinito”. É e ex-siste fora da criação artificiosa só o ato de biológico de extrapolação. Mas para dizer-se ex-sistente o infinito é de mister que ele encontre o jato correspondente no Universo; tal não se dá por ser finito o Universo, posto seja ilimitado. E o conceito de “ilimitado” é negativo: falta de obstáculo. Não-ob é nada. Nada não é. De modo que “infinito”, nos dados do Universo, dado não é. Não passa de palavra, de nome. A inteligência lhe monta aparência conceptual e lhe confere signo de expressividade. Pode ela tecer raciocínio com base em jetos (corretamente extraído ou incorretamente extraído), e juntá-los livremente sem consultar a natureza (experiência com os seus dados). A aceitação da construção depende dos testes feitos pela contactação com os jatos do Universo (experiência). Ora bem, pois “infinito existe”, ou há o universal puro, são proposições não-falseáveis, inexperimentáveis.
a) Espaço-tempo-energia
A totalidade dos jorros ou jatos de matéria-energia forma a totalidade de Espaço-Tempo, a que indissoluvelmente se liga a Energia, conversível esta em matéria. O Homem de modo algum é um ser, um jato, um jorro, estranho ao interior do Universo[41]. O assunto, escusa dizer, é por demais versado entre os especialistas. Já se ocupa também do tema grande número de pessoas não especialistas.
b) A energia social é de jeto muito assemelhado ao jeto da física
Aliás, há algo mais, e de grande relevância, sobre a teoria da relatividade geral. É que Energia (=trabalho ou deslocamento de força [42]) não é somente a energia física. Energias, também as há sociais: cada um dos processos sociais de adaptação causa alteração, assim no interior do Homem como também no mundo físico em que vivemos, nos movemos e somos. Isso se dá incessantemente, em meio a processos sociais de critérios diferentes entre si (energias típicas), distintos entre si — Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Por outra: somos interior e exteriormente determinados em alto grau na seletividade dos próprios jatos injetados em nós. Tanto no mundo físico como no social (portanto ainda nas relações lógicas, matemáticas e biológicas), em todos esses verdadeiros “pedaços” de espaço-tempo-energia temos de falar em espaço-tempo-energia (e não somente no mundo físico). Em toda essa experiência humana, não há negar: encontramo-nos entre jatos de energia, da qual o Homem é parte integrante. Ou seja, a relatividade geral [43] é ainda mais geral do que cogitara A. Einstein [44]. Ainda: cada ser humano é um jato, humano sim, mas jato na Natureza.
Bem, pois aquela relatividade geral é, em verdade, "generalíssima". As alterações incessantes do Universo em expansão também se passam no Homem, ou seja, fora da consciência e dentro dela; os neurônios são incessantemente movimentados. De modo que é assim também dentro do cérebro, instrumento indispensável do ato de pensar.[45] Esse particular e específico jato move-se no Universo em expansão, recebendo e emitindo energia de toda ordem[46]. Compõe-se de células, átomos, quarks[47].
Não se acaba de enxergar como o cérebro possa ser escapo às leis físicas, segundo as quais há partículas que, umas se somam, outras se anulam, algumas têm a correspondente antipartícula, várias são virtuais, e os antiquarks se movem à velocidade da luz[48]. A mecânica quântica com os trabalhos de Heisenberg, Schrödinger e Paul Dirac, mostra (ao menos por ora) que das partículas não sabemos mais que estados quânticos (combinação de posição e velocidade). De jeito que o nosso conhecimento é, a rigor, todo ele apenas... estatístico. Não é mais que jato minúsculo do redemoinho cósmico[49]. A Terra mesmo, onde estamos em redemoinho, já abrigou cerca de 50 bilhões de espécies — somos uma delas.[50] Nosso Sol gira em torno da Via Lactea, gastando muito da sua energia (4 milhões de toneladas por segundo) parte da qual nos atinge e parte não. Nosso corpo (com o cérebro) forma-se de vários elementos mais pesados que o He, oriundos de estrelas que morreram antes de o Sol ser. Quer isso dizer que todos os ingredientes do nosso corpo foram confeccionados dentro daquela imaginável fornalha “...were all fashioned in that unimaginable furnace[51]. Assim, a extração primeva de jetos aconteceu na própria sensação; trata-se de ato dos mais complexos do ser vivo (do Homem). Ocorre, porém, antes, o jato da gravação duradoura ou engrama (species impressa). Ocorre, dizíamos, antes da tomada de consciência (apreensão ou percepção). Esse ato de gravação muito tem de simples fato — algo ligado a eventos estranhos à atuação humana. Dão-se aí jorros de energias. Está-se diante de jogo altamente multifário, numa como dança complicadíssima para o nosso entendimento atual[52]. Tem-se portanto um jato entre outros jatos, cuja precisão, inicial e posterior, não passa de aproximação. Nem se nos esqueça que sobre determinado “ente” (por exemplo, sobre um elétron), é nenhuma a precisão quantitativa individual, por número fechado si. Só sabemos algo das partículas, que nos formam — a nós, sub, consciência – por ondas de probabilidades[53]. Sim, muitíssimos são os “elementos circunstanciais” (jorros ou jatos) que nos modelam o sistema nervoso central, e cujos graus de densidade ainda lhes desconhecemos a mensuração de energia. Tal o caso dos neutrinos, dos raios cósmicos etc.; são radiações em campos, sobretudo nos eletromagnéticos, talvez policromáticos[54]. Ainda que de radiação muito tênue, não é de bom alvitre ignorar alguma eficácia aos neutrinos, que nos atravessam o cérebro a cada instante.
Um próton contém cerca de 10 bilhões de neutrinos, por sua vez 100 mil vezes menores que o elétron. Nosso corpo mesmo os produz 20 milhões por hora. De outro lado, eles invadem o nosso corpo – 100 bilhões a cada segundo. Provêm das usinas nucleares do Universo. O Sol os produz, em direção à Terra, aos trilhões por dia e destes apenas 35% nos alcançam. Atravessada a Terra, metade se perde depois, sendo de notar-se que também os R-x atravessam a matéria com grande diferença dos neutrinos: por poucos metros (aqueles por completo). Espera-se, em tecnologia, que venham a baratear a prospecção do petróleo.[55] Ora, acrescem as alterações efetivamente sofridas pelo sistema nervoso central do Homem em decorrência das influências nos diversos espaços sociais (Energia é produção de trabalho ou mudança). Como visto, além do sereno processo da Ciência (mais sereno), temos outros de que os seis principais são Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia. Todos estão a provocar alterações na atuação interior e na ação exterior do Homem.
Diante desses fatos ficamos autorizados a admitir que o ato de conhecimento iniciado com a percepção ou tomada de consciência[56], mesmo quando extraímos algum jeto mais fino (como o lógico, ou o matemático), considerado num momento A, e logo exercitado no instante seguinte B, não é rigorosa e precisamente o mesmo jeto. O jato em nós injetado, do qual extraímos o jeto, sofre alterações incessantes. Também as sofremos nós próprios (nós, os sub's), com o cérebro repleto de jorros de alteração interna.
Nem o jeto “livro”, ou o jeto “homem”, ou o jeto “mortal” etc. é o mesmo de um átimo de tempo atrás, no momento em que acabei de escrevê-los neste computador. O próprio jato já está em novo status posicional do Universo. Significa isto que o jeto (universal, essência) nunca pode ser, rigorosamente, o mesmo num e noutro momento da história do Homem no Universo.
c) Imensa semelhança entre jetos não é, rigorosamente, identidade de jetos.
Toda mudança de expansão (continuada expansão) do Universo implica em alterações em nós, em mudança nossa. Logo, um jeto liberto agora (extraído neste instante, neste átimo de tempo), quando o reencontro segundos depois, e é reconhecido pelo cérebro, já não é idêntico na sua estrutura. Ainda que praticamente desprezível para a “objetividade” cotidiana do nosso conhecimento, por certo que alteração houve no mesmo cérebro, extrator do mesmo jeto.[57] Dois jatos não são idênticos, por mais que se assemelhem[58]. Do mesmo modo o cérebro: não é o mesmo de antes, quando colheu o mesmo jeto (ex: verde, soberania, homem). Passou por alterações químicas e físicas entre um e outro átimo de tempo. O resultado da extração, posto seja da mais absoluta irrelevância prática (para os fins gerais da vida), essa mínima diferença entre um e outro resultado da extração decerto marca alguma diferença (o jeto verde agora, e o jeto verde em novo agora).
A conclusão é no sentido de a ciência também, quando se infiltra em qualquer outro processo social de adaptação, ser só aproximativa, sempre. Não poderia constituir exceção, portanto, o pensamento metafísico (esta espécie de Religião nascida fora de lugar). Ao menos por ora é-nos estranho o pensamento não relacional. Também a precisão perfeita é impossível de ocorrer. Nossas construções não esgotam os seres (jorros, jatos). Todo tentame de ir ao trans-jeto é um filosofar cognitivamente inútil. Obtém-se por esse meio um considerar, um admirar, um saborear, um contemplar, um introduzir criações artísticas na estrutura lógica do pensamento, um cultivar o ser (substancializado sem precisa autorização da Natureza), um entregar-se quase-romântico à consolatio animae (ou inversamente ao sentimento trágico da existência). No tocante aos elementos aí inseridos, porventura de cunho assemelhado ao conhecimento, a segurança é quase nula. Falta-lhes a possibilidade de submeter a testes as proposições formuladas. Portanto, são um pensar insusceptível de acareação com as realidades (acareação analítica e crítica).
Os universais, os conceitos, os juízos, as proposições enfim assim formadas refogem ao teste de falseamento, não passam por ele, não podem ser conferidas por comprovação; não nos dão certeza sobre se dizem mesmo "aquilo que a coisa é". São produtos da filosofia, não da ciência. Para o plano da ciência (=do conhecer ancorado em realidades), aquelas ideia soltas subsistem por si, isto é, no mundo que o sub as instituiu com a sua arte ou a sua religiosidade. Mas, isto é sem sentido no mundo real experimentável da φυσις. Não são proposições verdadeiras (a menos que por mera coincidência casual).
Aquelas proposições contêm pois “universais”, “essências”, “jetos” que, ainda quando corretamente extraídos de início, se deixaram mesclar de objetos insuficientemente examinados, ou de escórias conscienciais levadas de roldão, sem crítica bastante da sua estrutura. Principalmente: injetaram-se nos respectivos conceitos (ou juízos) sub-posições, trans-posições, jorros sub-stantes, jatos hypo-stasiantes. Nessa operação plástica de ali se meterem criativamente esses sub-, trans-, hypo- consiste o absurdo — aquilo que sai fora da Natureza, que extrapola fictamente do Universo, que se situa imaginariamente para além do mundo-aí-posto, que se afasta das realidades altamente extra-subjetivas do redemoinho geral do cosmos real[59]— é o mundo meio artístico e meio religioso. Também ele é característico do se humano da φυσις; sim, mas não na atuação humana em momento de ciência.
d) “Quod requiritur et sufficit”(o indispensável e o bastante para a ciência)
De altíssima, ineliminável serventia, é o jeto corretamente descoberto; aí decerto se obtém o “universal”, a “essência” captada; por exemplo o que é lei. A rigor, contudo, a sua imperfeita invariância é apenas funcional: vele na prática cotidiana. A sua “identidade”, igualdade, ilimitada similitude para efeitos da vida do Homem na Terra, presta um serviço indispensável à vida comum, correspondente à posição dele no mundo.[60] O homem pode, contudo, ir além, progredindo na vida científica.
No conjunto das complexas relações componentes do redemoinho universal onde vivemos, nos movemos e somos [61], aí no cosmic whirlwind, repetimos, os nossos jetos são suficientes para a vida humana prosseguir na senda de sua história, cientificamente ainda bastante humilde. Balouçados embora, é porém como se firmes estivéssemos. Numa perspectiva de segurança plena, de exatidão total e de inteira precisão, aí nós só obtemos uma falsa identidade. O maravilhoso na atividade cognitiva é que esta pseudoidentidade de um jeto, em relação a outros jetos, possibilita à interação humana um conhecimento tão notavelmente benéfico das nossas realidades, que esses jetos podem ser tratados (tomadas as precauções de experienciação inicial e de experimental posterior), como se fossem a priori abstratos de indiscutível igualdade[62]. Requer-se, isso sim, enorme cautela do Homem na extração do jeto. A correta indução é indispensável. E tudo isto apenas como um "como se" (als ob); a rigor, pois, uma ficção útil e indispensável à vida humana.
Ou seja, a despeito de um jeto não ser senão muitíssimo semelhante a outro "igual" idêntico a ele, isto passa a ser despiciendo para a vida prática no cotidiano, em qualquer dos seus processos sociais de adaptação. É-o também para a atividade imperfeita da ciência. Entanto, atente-se, nenhum conhecimento é capaz de ser absolutamente preciso. Nem tal é de mister para o Homem sentir-se suportavelmente feliz.[63] Basta-lhe para tanto a ciência humana, cujo avanço aliás tem de comum com o Universo a nota de ser sem limites certos. Nada sabemos e pois nada nos é lícito afirmar sobre os conhecimentos humanos dentro de quinhentos anos, ou em dois milhões de anos. Daí por que seria arrojado, por falta de bases, o cientista que afirmasse que jamais teremos conhecimento sobre o absoluto, ou que é impossível exista a substância da filosofia clássica.[64]
Algumas conclusões.
O conceito de lei no Direito tem de ser formado com "aquilo que a coisa é", isto é, a partir de ideia precisa, exata e segura extraída dos fatos da vida. Embeber esse conceito de vivências de ordem religiosa, ou moral, ou estética, ou política, ou econômica, sempre distantes dos dados da ciência, é perder tempo e construir pontes perigosas, desautorizadas pela natureza humana quando busca o conhecimento preciso, seguro e exato do mundo real, o mundo onde se procura "aquilo que a coisa é".
Para o acerto em matéria jurídica não se podem aceitar ou acolher as vivências do racionalismo em que se forjou a filosofia clássica, como a de Aristóteles e de Santo Tomás de Aquino. A adaptação geral da natureza humana na Terra logrou apoderar-se da extração de muitas "essências" dos seres (jetos corretamente extraídos dos jatos do mundo real ou extramental). O material foi sendo organizado com técnica de subtilezas que se podem explicar de maneira simples, resumida nos seguintes tópicos:
1.1 A classificação dos fatos jurídicos.
1.2 O método indutivo-experimental na formação dos conceitos jurídicos.
1.3 Os três planos onde aparecem os fatos jurídicos.
1.4 O fato jurídico em geral.
1.5 Início de classificação.
1.6 O fato jurídico em espécie (1- negócio jurídico, 2- ato jurídico stricto sensu, 3- ato-fato jurídico, 4-ato ilícito).
1.7 Os três planos de percepção do fato jurídico (se entrou no mundo jurídico ou não; entrado, se vale ou não vale segundo o direito vigente; se surtiu efeitos e quais são eles.
1.7.1 Existência-inexistência (qualquer fato jurídico só é efetivamente matéria do mundo jurídico se concorrem simultaneamente um acontecimento do mundo — suporte fático — e norma (alguma regra jurídica correspondente, ou mais de uma, a incidir sobre ele.
1.7.2 Invalidades (nulidades e anulabilidade). Cuida-se de descobrir se certo negócio jurídico, ou algum ato jurídico stricto sensu, vale ou não vale, e se essa eventual invalidade é mais grave (nulidade) ou mais leve (anulabilidade) de acordo com o sistema jurídico vigente em algum lugar da terra.
1.7.3 As questões de eficácia-ineficácia. Trata-se aí de descobrir que efeito ou efeitos foi ou foram determinados pelo fato jurídico examinado; há quatro tipos ou relações de eficácia jurídica: (a) direito-dever, (b) pretensão-obrigação, (c) ação-sujeição, (d) exceção-abstenção.[65]
Terminando. Temos pois de dizer serem insuficientes para o conhecimento do Direito, e nele, para o conhecimento do que seja "lei", insuficientes e inadequadas, as belas aglutinações formalmente bem travadas pela lógica clássica em onde se manuseiam mentalmente as ideias produzidas pela experiência religiosa, ou moral, ou ética, ou estética, ou intrajurídicas, ou política ou econômica etc. Tem o ser humano de fiar-se da segurança cognitiva da ciência positiva, ciência dos fatos postos pela natureza.
Há de se estar atento às realidades extramentais, no começo (empiria), no desenvolver-se (generalizações permitidas pelos fatos observados) e no final do processo (experienciação). É como se afastam ao máximo possível em cada tempo e lugar o apriorismo e o ufanismo mental.
O gênio de Santo Tomás de Aquino não viveu nos tempos dessa ciência positiva, que Pontes de Miranda dominou bem. Especulação parece que haverá sempre, mas a crítica pode neutralizá-la em grande parte para opulentar-se o conhecimento científico do processo jurídico de adaptação, em meio aos redemoinhos de outras infindáveis interações humanas [66].
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[1] Entende R. C. Czerna que a fórmula clássica "suum cuique tribuere" é, em si, vazia. Tem de encher-se com elementos reais e históricos (religiosos e éticos, por exemplo). A mais importante fonte desse conteúdo foi justamente o cristianismo (A justiça como história, em Ensaios de Filosofia do Direito, p. 55-61).
[2] FERREIRA GULLAR, Um novo realismo: Folha de São Paulo (Ilustrada), São Paulo, 27.11.2011.
[3] PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento, p. 34.
[4] Ver um balanço feito da lógica moderna, da física-matemática e das contribuições do Círculo de Viena, em PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento, p.107-136).
[5] Como exemplos, v. ROHDEN, Huberto. A metafísica do cristianismo. 3ª ed.São Paulo: Alvorada, s.d., p. 119-140; MELLO, Anthony de. Sadhana, a way to God. 9 ª ed. Anand (Índia): G. S. Prakash, 1980, Exercícios de n. 10, 13, 22, 36, 44 e 47; ARMSTRONG, Karen. A history of God. London: Mandarin, 1996, p. 242-295; LACROIX, Xavier. Le corps et l’esprit. 2ª ed. rev. e aum. Paris: Vie Chrétienne, 1996, p. 62-67 e 77-82; CHARDIN, Pierre Teilhard de. Le milieu divin. Paris: Du Seuil, 1957, p. 134-146; BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização e espiritualidade: a emergência de um novo paradigma. 2ª ed. São Paulo: Ed. Ática, 1996, p. 50-54, 77-80, 144-155 e 164-170.
[6] Bem por isso sustenta Pontes de Miranda, “Para que filosofar”, ... p. 495, sobre experiência religiosa: “O que se tem chamado “experiência religiosa” pode ser interpretação de percepções, intuição cognoscitiva ou não, sentimento, pensamento; não é porém, por si só, conhecimento. Há conhecimento, aproveitado pelas religiões, porém religião não é conhecimento”.
[7] Aprovam-se os atos e as condutas e os hábitos cujo conteúdo se forma no senso de dignidade humana — só os seres humanos têm capacidade de se portar com raciocínio e com dedicação quase total a outrem, sem buscar nessas ações a satisfação do ego. Desenvolvemos este tema na obra As raízes da corrupção, livro no prelo para publicação em abril de 2012; parte dele acha-se no http://mozarcostadeoliveira.blogspot.com, sob o título Esforços contra a corrupção no Brasil, capítulo 1, itens de 1.2.9 até 1.2.11.
[8] Mais um ponto de contato entre Pontes de Miranda e Heidegger: o cuidado ("Sorge") em não se perguntar o jeto, com os impertinentes movimentos do sub-jeto ou com o grifar do oposicional do ob-jeto. Leia-se MAC-DOWELL, op. cit., p. 131, segundo o qual para Heidegger "ser é o aparecer do que aparece. Compreendê-lo é simplesmente deixá-lo aparecer", sendo a verdade uma "manisfestação do ente no compreender". Ver ainda páginas 185 (o eidos como universal) e 220-222 (a "Sorge" como o ser do homem segundo a sua essência, com o “importar-se com ser, pro-curar ser”). O que o conhecimento científico busca é o máximo de quietude, sabendo-se porém que a quies tomista não se completa de todo — é sempre imperfeita em decorrência da expansão constante do universo: algo se modifica nesse universo a cada instante. "Trilhões de neutrinos vindos do coração do Sol atravessam nossos corpos a cada segundo" — GLEISER, Marcelo. O cérebro determina o que é real? São Paulo: Folha de São Paulo, Caderno Ciência, 13.11.2011].
[9] Jetos há que são necessariamente singulares; exemplo: “o Universo curvo de Einstein”, “Corcovado”, “Pão de Açúcar”, “Manaus”, “Constituição Brasileira de 1988”, Rembrandt, Fulano de Tal etc.
[10] É semelhante ao que corretamente a Escolástica atribui ao "universal": ens rationis cum fundamento in re. Veja-se SALCEDO, L. Critica, p. 433-440, In: Philosophiae Scholasticae Summa, p. 201-482. O começo da solução do problema é contudo bem outro, e a própria solução diferente da solução aristotélico-tomista (v. PONTES DE MIRANDA. O problema fundamental do conhecimento, p. II, c. IV. n. 16).
[11] No entender de Aloysio Ferraz Pereira, o direito precisa ser constante e sistematicamente invadido pele sociologia (em sentido amplo) – O direito como ciência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 81. Aí mesmo sublinha o autor que o aparente imobilismo jurídico (as exposições lógico-sistemáticas fabricam em nós tal ilusão) é idéia estranha a Aristóteles e a S. Tomás.
[12] Segundo CZERNA, Renato Cirell o empirista que se faz religioso, metafísico, é filosoficamente incoerente (São Paulo: Filosofia como conceito e como história — tese), 1950, p. 64, nota 90. Ora, o Eu-da-Ciência, o homem da ciência positiva, não é um empirista porque com os jetos, sem transcender, se alça ao que é universal, extraindo-o. Seu caminho é o da indução-experimentação. De outro lado, todo homem tem, sempre, componentes de todos os processos sociais de adaptação. Há em todos o seres humanos algo de Eu-religoso, Eu-moral, Eu-arte, Eu-ciência, Eu-jurídico, Eu-Político, Eu-econômico. Até o Eu-Moda, linguagem, cortesia e outros. Variam as cargas sociológicas respectivas. Mas também se colhem jetos lógicos na experiência religiosa e em todos os demais processos sociais de adaptação. Temos para nós, assim, que a adaptação científico-positiva crescente só pode ser proveitosa à Religião, à Moral, à Arte etc. — a ciência depura-as, clareia-as. Não as destrói.
[13] Na opinião de Heidegger a filosofia clássica impediu até hoje a interpretação ontológica do fenômeno humano (MAC-DOWELL, op. cit., p. 117 e 179-206). Nem Descartes, Kant ou Hegel se livram de preconceitos dela (ibidem, p. 204).
[14] Em O problema fundamental do conhecimento, PONTES DE MIRANDA sintetiza os resultados das pesquisas lógicas até ao primeiro terço do séc. XX.
[15] A obra Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins Editora, 1953 é bem uma amostra disso. E já o fôra outra, dos seus 20 anos de idade. A moral do futuro, Rio de Janeiro: Briguiet, 1913 (ver, p. exemplo, p. 134).
[16] Em 1911 (PONTES tinha 19 anos), propôs-se sistematizar, a partir das ciências particulares, a ciência do direito (ver dele, A moral do futuro, p. 80). Fê-lo em 1922 com o Sistema de ciência positiva do direito (hoje com 4 volumes em 2ª edição), sobre que escreveu Roscoe Pound: "I cannot present that it represents any such thoroughgoing work, or indeed scientific system as you have produced". E Clóvis Bevilacqua declarou, em saudação ao autor: "constituístes a ciência do direito (…) Não tivestes modelos (…) Criastes a ciência, que outros apenas entreviram" (op. cit., p. XII – XIV).
[17] Entre outros bons estudos de Miguel Real sobre PONTES DE MIRANDA, destaque-se Pontes de Miranda na cultura brasileira. Revista Brasileita de Filosofia, nº 30, pág.3-17.
[18] Às vezes PONTES fala do "grande mal que Aristóteles fez ao mundo", mormente talvez pelo panlogismo do estagirita, apressado em sistematizar com base no senso comum. Quanto a Santo Tomás, diz PONTES que ele na gnosiologia acerta tanto mais quanto mais pensa por si próprio, distante de Aristóteles.
[19] "Despótico" tem sentido técnico: eficácia de mando, grau de natural impositividade (P. de Miranda, Introdução à sociologia geral. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello e Cia, p. 39, 45, 46, 72, 83, 1926).
[20] PONTES DE MIRANDA, op. cit., passim.
[21] As principais obras de Pontes de Miranda, nesta questão são O problema fundamental do conhecimento; Garra, mão e dedo; Sistema de ciência positiva do direito; Introdução à sociologia geral e Método de análise socio-psicológica. Esta última é desaparecida; têm-se dela apenas algumas páginas de correção tipográfica, outras em versão alemã e outras ainda em inglês.
[22] Parece assim desenfocada a visão de M. Heidegger, segundo o qual a essência do pensar é o movimento de transcendência para o ser (MAC-DOWELL, op. cit., p. 54-55).
[23] Para Miguel Reale há no ato cognoscitivo um momento da dialética de complementaridade ficando, em horizonte aberto, sempre novas sínteses a se realizarem (Experiência e cultura, p. 43-51).
[24] O próprio Heidegger critica nesse ponto as filosofias antiga e medieval (MAC-DOWELL, op. cit., p. 222 -226).
[25] Heidegger percebeu ser preciso deixar os próprios fenômenos se manifestarem, sem a pressa do seu enquadramento em categorias, sem apoio nos fenômenos, como se as categorias (κατηγορίη) fossem o próprio sentido das coisas (MAC-DOWELL, op. cit., p. 129). Não há coisa-em-si que não seja o fenômeno mesmo (id., ibid., p. 232). "Categoria" pela etimologia significa acusar, falar contra. Passou depois a indicar a ideia de série, grupo, classe etc.
[26] Um exemplo típico, entre centenas, desse "ceder" ao pedido racional do sistema, está no argumento de Santo Tomás para provar a espiritualidade dos anjos (Summa theologiae, I, 50, 2, c): é preciso admitir (ponere) algumas criaturas incorpóreas, pois Deus cria através da inteligência-e-vontade e é necessário que existam criaturas que a Ele se assemelhem nesse ato criador: é assim que o efeito mais perfeitamente imita a sua causa. Logo, ad perfectionem universi requiritur quod sint aliquae creaturae intelectuales. É frequente no grande Santo a inserção de argumentos bíblicos como fundamento para o próprio sistema filosófico. Atenta-se assim, porém, contra as normas hoje assentes da metodologia do pensamento científico.
[27] A quase espantosa produção jurídico-científica de PONTES — sem outro similar na história do direito — guarda coerência de princípios e métodos com sua filosofia e sociologia, sem rebuscamento ou artifício. Fenômeno ímpar este, a ser estudado em profundidade.
[28] Recentemente, em M. Heidegger e em E. Lask, assiste-se à preocupação de deixarem caminho aberto para o conhecimento filosófico de Deus (MAC-DOWELL, op. cit., p. 62, nota 186); Heidegger procura superar os impasses da filosofia moderna (p. 87) e, particularmente, os do idealismo alemão, com a "intenção apologética de reconduzir o pensamento ocidental aos pressupostos racionais da fé cristã" (p. 101-102). Tocantemente ao próprio Santo Tomás, ver MANSER, op. cit., p. 3-12.
[29] A física nuclear e a relatividade geral de Einstein confirmam o enunciado.
[30] Como acentua Aloysio F. Pereira, o direito sempre teve a ganhar com aproximar-se da sociologia (op. cit., p. 83).
[31] Para Miguel Reale ocorre na religião uma como evasão do social, na moral uma opção em função dos próprios princípios pessoais e, no direito, a bilateralidade atributiva (sob ordenação objetiva). Ver O direito como experiência, p. 264-269.
[32] Quadra repetir: científica será a sociologia se for pensada com base em fatos, fatos susceptíveis de comprovação intelectual-experimental.
[33] Pensar vem-nos do mesmo étimo de pesar, de pondus; donde também o nosso "ponderar".
[34] Sobre esta "Weltanschaung", totalizante e inesgotável, v. CZERNA, R. C. Filosofia como conceito e como história, p.107, inclusive no sentido metafísico de que a "verdade (..) é o Logos que está presente no espírito humano", sendo que, segundo o Meister Eckart, o Verbum se escondeu no seio mesmo do espírito: "Das Wort liegt in der Seele verbogen". Aliás, alerta Czerna, revela-se como sistema aquela busca de verdade que o espírito se propôs — coerência e identidade do espírito consigo próprio, em tendência dinâmica para a unidade (Natureza e espírito, 1949, prefácio de M. Reale, final).
[35] Nessas questões temos por relevante o esforço da pesquisa empreendido por TELLES JÚNIOR, Goffredo, O direito quântico. 5ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1980: visão do mundo (p. 15-188), biologia jurídica (p. 319-340), o direito quântico (capítulo final), oferecem algum perspectiva da adaptação jurídica, buscada nos resultados de mecânica celeste, do microfísico e do início do orgânico.
[36] Diz Pontes de Miranda que "é por certo nesse sentido que, no dizer de Frank Plumpton Ramsey (The Foundations of Mathematics, London, 1931, pág. 263), a proposição principal da filosofia é que a filosofia é um não-senso, e Ludwig Wittgenstein adjetiva: um não senso importante. Filosofar-se-ia tão-só sobre o que não se conhece claramente. Daí recorrer o filósofo acientífico (268) aos seus depósitos, a self-consciousness; "but the necessity of self consciousness must not be used as a justification for nonsensical hypotheses; we are doing philosophy not theoretical phychology, and our analyses of our statements, whether about meaning or anything else, must be such as we can understand".
[37] O problema fundamental do conhecimento, p. 45.
[38] Omitimos aqui, por brevidade, a nota (1) da página 146 do original (2ª edição) de Pontes de Miranda.
[39] "Ontológica". Com isso queremos designar o que concerne à metafísica substancialista, ao estudo da coisa em si sob qualquer das suas concepções, e não o que pertence ao conhecimento do que são as coisas por oposição às aparências, ou ao que ainda hoje justificaria o nome e a indagação – o estudo do que constitui conteúdo dos pensamentos para distinguir o que é imediato e o que é construído, o que é dado da sensação, da percepção, da especulação, da ciência, e o que se dá (e.g., estímulo). A própria aplicação da navalha de Occam seria assunto de tal disciplina. A teoria dos objetos, das "essências" ou "universais", a distinção entre mundo percebido e mundo da ciência, a teoria dos valores e da atuação deles, a definição do "homem" e da Ciência, tudo isso caberia em sentido novo de ontologia, mas (dir-se-á) o termo já está comprometido pela velha metafísica, como também se trataria de capítulo ou partes de capítulos apanhados a diversas ciências, principalmente à Epistemologia e à Teoria do Conhecimento.
A palavra "ontologia" tem hoje duplo emprego: um, que lhe veio da metafísica, saturado de substancialismo; outro, mais recente, que é de designar o estudo dos objetos ou coisas sem que se inquira da fonte da coisa ou da sua natureza íntima. Nós mesmos admitimos uma longa marcha para os ontos, o que constitui, estar-se no plano da ontologia "anontológica" ou "ametafísica" o procurar-se o que nos intimize no objeto. De tal concepção falaremos mais tarde . Viva e criadora , como é a ciência, a sua ontologia não é rígida . Conhecer é o resultado de uma vocação a aproximar-se.
No último sentido, a ontologia é indispensável ao epistemólogo; porque não é possível conhecer o conhecimento sem se saber o que é que, por meio dos sentidos, nos dá do mundo da percepção e quais as coordenações entre o percepto e o estímulo, o percepto e o conhecido já por outros meios que o perceptivo.
[40] O problema.fundamental do conhecimento, p. 43-49.
[41] Vide, entre outros, Tipler, 1994, 528 p., X-XI).
[42] Macedo, 1976, p. 120 e 346.
[43] Vide a esse respeito, entre outros, Hawking, 1988, pp. 21 a 22; Hey e Walters, 1997, pp. 8 a 9, 161 a 165, 188 a 192, 230 a 233 e 238 a 239; Calder, 1982, pp. 53 a 55 e 74 a 76; Russell, 1989 (todo).
[44] Pouco conhecidos no Brasil são os trabalhos de Pontes de Miranda sobre essa importante extensão da teoria da relatividade geral à gnosiologia. É ponto central de toda a sua obra filosófica. Ver a esse respeito PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia. Napoli, 1925 (todo) e Espaço, tempo, matéria (um dos problemas filosóficos da relatividade generalizada). O Jornal, 6-05-1925.
[45] Sobre a imensa complexidade do cérebro e das suas múltiplas capacidades reativas, vide Tipler, 1994, para 41 ss e 196 ss. Ler também GLEISER, Marcelo. Estamos cercados de radiação eletromagnética que não vemos. O essencial é invisível aos olhos. Folha de São Paulo, Ciência. 13.11.2011.
[46] Vide Hawking, 1988., p. 36 ss.
[47] Ainda sobre o quark, entre outros, ver GELL-MANN, Murray. O quark e o jaguar. Trad. de Alexandre Tort Rocco: São Paulo , Edusp, 1997. Comentários a respeito, ver prof. Henrique Fleming USP, Folha de São Paulo, jornal de resenhas, 11-4-97, p. 5.
[48] Vide Hawking, 1988, pp. 63 a 64 (soma ou anulação de partículas), 73 (antipartículas), 80-84 (quark, matéria e antiquark, radiação).
[49] Id., ibidem, p. 59 ss. O Universo compõe-se de centenas de bilhões de galáxias. A “nossa” contém aproximadamente 400 bilhões de sóis. O nosso sol dá-lhe a volta a cada 250 milhões de anos (I., ibidem).
[50] Sagan, 1998, p. 56.
[51] Calder, 1982, p. 20.
[52] Sobre o conceito de “dança” na cosmologia pós-einsteiniana, vide Gleiser, 1998, p. 241 a 312.
[53] Hawking, 1988, p. 60 ss.
[54] Sobre os conceitos técnicos de neutrino e de raios cósmicos, vide Macedo, 1976, p. 240, 291 e 297. Sobre o primeiro, também Kuhn, 1996, p. 27 e 87.
[55] Marques e Funchal, agosto de 1999, pp. 15 a 17.
[56] Pontes de Miranda, O problema. fundamental do conhecimento, 1972, p. 104, 203, 229, 266 ss.
[57] Imagens do cérebro, bem como o seu funcionamento, podem ser conhecidos por meio de tomografia pela emissão de pósitrons (que se chocam com elétrons, produzem fótons, captados por aparelhos colocados de fora do cérebro. Também por ressonância magnética, ou ainda por magnetoencéfalograma (MEG). Ora, temos cerca de 100 bilhões de células transmissoras de impulsos elétricos (neurônios), num delicado sistema de junções (sinapses). Traduzem mapa das realidades (recriam o mundo exterior), criam o que está em si (mundo imaginário só do íntimo do indivíduo), e recriam o passado exterior (memória). Os neurônios repartem-se pelo cérebro,em grupos, em módulos especializados por suas funções. Gleiser, 2000, p. 29.
[58] A rigor, note-se, “idêntico” é um conceito contraditório. Serve o adjetivo, em face das limitações da linguagem correntia, mas só tem sentido o seu sentido de “igual” (aequalis, de nível aproximado), de “semelhante” (similis, imitativo). Ver a esse respeito Pontes de Miranda, O problema fundamental do conhecimento, 1972, pp. 224 a 225.
[59] Sobre esse “cosmic whirlwind” na mecânica celeste, segundo a relatividade geral, vide Calder 1982, pp. 1 a 6.
[60] Sobre o conceito de “função”, na acepção filosófica (modalidade de ação) e matemática (variação de correspondência), ver AMORIM, Paulo Marcos de, e PEREIRA, Vera Maria Cândido. Função. Enciclopédia Mirador Internacional, pp. 4996-4997, itens I, 1.8, 1.9 e II, item 1.
[61] Estes três verbos aparecem no livro cristão "Atos dos Apóstolos", escrito por São Paulo Apóstolo (capítulo 17, versículos 28).
[62] Bom livro nesse mesmo respeito é MENEZES, Djacir. O problema da realidade objetiva. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. No mesmo sentido ver PIAGET, Jean. A epistemologia genética e Sabedoria e ilusões da filosofia. Trad. Nathanael C. Caixeiro e outros. In: Os Pensadores. 2ª ed. São Paulo: Editor Victor Civita, 1983.
[63] Para Pontes de Miranda, ao por a sentença em termos matemáticos, a ciência é só uma tendência à compreensão (homem<Saber) e apenas assintoticamente perfeita. Já se tem nisso algo muito confortante (sem desespero, sem romantismo trágico) — por ela o Homem avança historicamente no domínio intelectual do mundo (de que somos jatos integrantes).
A dita obra de Pontes de Miranda, a que aludimos, é Tratado das ações. Sete tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1978.
[64] OLIVEIRA, Mozar Costa de. A gnosiologia estudada com dados das outras ciências. Santos: Leopoldianum (Cad. posgrad), 2001, pág. 33-38.
[65] Todos estes pontos, de grande importância para se entender e se praticar o processo social de adaptação, estão profundamente estudados nos autores alemães e cientificamente analisados em profusão e precisão em PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. 60 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954-1969, notadamente nos quatro primeiros tomos.
[66] Ligeiro exemplo dessa complexidade de relações sociais está em BOTTON, Alain de. Religião para ateus (tradução de Vitor Paolozzi), Rio de Janeiro: Editora Intrínseca Ltda, 2011, páginas 19-56.

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