quinta-feira, 1 de março de 2012

CAPÍTULO V — A LEI EM SANTO TOMÁS DE AQUINO (2a. e última parte).

CAPÍTULO V — A LEI EM SANTO TOMÁS DE AQUINO (2a. e última parte).
[Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo)].

[Terminando este capítulo V]
Todo conhecimento da verdade é uma certa irradiação e participação da lei eterna, verdade imutável. Todo ser humano conhece a verdade, ao menos naquele mínimo — os princípios gerais e comuns da lei natural. Nas minúcias restantes, sim, é que há graduação de conhecimento (2, c). Claro, tal conhecimento não é direto; ocorre nos efeitos da criação divina, no mundo criado (2, ad 1).
De mais, toda lei é derivada da lei eterna. Tudo quanto se move é movido por um motor anterior. Assim é na arte arquitetônica, assim é no Estado (o Rei é o movente). Assim ocorre a toda lei humana, que é diretiva; a direção primeira vem da inteligência divina — o mesmo que lei eterna. Logo, toda lei, se conforme à reta razão, é participação da lei eterna (93, 3, c). A própria lei do pecado (lex fomitis) participa da lei eterna sob um aspecto: enquanto pena imposta pela justiça divina (3, ad 1). A recíproca é verdadeira: a lei humana, se afastada da lei eterna, enquanto alongada da razão, é lei iníqua. Não realiza em si o conceito de lei e sim de violência (3, ad 2). Quando a lei humana algo permite que a lei divina proíbe, não se haverá de dizer que aquela deixa de ser participação da lei eterna; significa tão somente não poder ela intrometer-se em assuntos mais altos porquanto lhe é possível acompanhar perfeitamente todo o conteúdo perfeito da lei eterna. Tal permissividade da lei humana não pode interpretar-se como aprovação de algo vedado pela lei divina; é reconhecimento da sua incapacidade de reger assunto tão grandioso (3, ad 3).
Vê-se uma vez mais o influxo religioso no pensamento nascido na metafísica. Anda longe do alcance da liberdade científica e do emprego do método indutivo experimental.

Evidentemente a própria essência divina e tudo mais quanto em Deus possamos distinguir, não se pode dizer sujeita à lei eterna; são a própria lei eterna (4, c). Os efeitos da vontade divina, as criaturas, estas sim se subordinam à lei eterna (4, ad 1). Note-se ter sido Jesus Cristo gerado pelo Pai, e não criado (Ele é Deus); somente a natureza humana de Cristo é que estava sujeita à lei eterna (4, ad 2).
Subordina-se à lei eterna toda a enorme multiplicidade das coisas contingentes da natureza. O homem não pode impor lei ao mundo irracional por não atuar o irracional por si mesmo; ao ser racional, a si . pode o homem impor leis, imprimindo o seu preceito nas mentes, como regra de ação, como norma de agir (5, c).
O que o homem assim faz, mostrando (denuntiando), realiza Deus em todas as criaturas imprimindo nelas os princípios dos atos de cada qual. Logo, as criaturas irracionais são movidas pela divina providência de modo diverso por que o são os racionais; estes pela inteligência e aqueles não (ibidem).
As criaturas irracionais participam destarte da inteligência divina, enquanto a ela obedecem (ocorre algo de semelhante com os nossos membros: não participam da nossa razão, mas a ela obedecem (ad 2). Os próprios defeitos e falhas, encontradiços no mundo da natureza, não provam estar esse mundo alheio à inteligência de Deus. É que, considerada a causação universal, não ocorre a desordem que nos aparece quando consideramos apenas causas particulares (ad 3). Todos os defeitos estão, também eles, subordinados à lei eterna (ibidem).
Este é um trecho obscuro para os que pensam um pouco mais cientificamente, com o método indutivo experimental.

Quanto às leis humanas, estão todas subordinadas à lei eterna por ser Deus o magno ordenador e administrador da paz universal na forma do conceito agostiniano (93, 6, sed contra). A lei humana é feita por e para criaturas racionais, as quais possuem a natural inclinação de sotopor-se à lei eterna; é-nos inata a disposição para a virtude, como ensina Aristóteles.
A despeito de ser este o pensamento de dois gênios (do estagirita e do aquinatense) parece contrariar ele os dados da ciência positiva ao  afirmar que os seres humanos têm natural inclinação para a vida  das leis divinas e para uma vida virtuosa.

 E as criaturas irracionais são naturalmente movidas a conformarem-se com a mesma lei eterna. Claro está ser inclinação dos homens repleta de imperfeições, tanto por causa dos vícios transviantes como também por efeito das paixões impedientes (nos seres humanos bons há a especial ajuda da Graça, com que se roboram pela fé). A todos entretanto a lei eterna inclina para o bem (93, 6, c). O pecado, aliás, não consegue apagar todo o bem existente na natureza (ad 2).
A lei eterna tem a específica eficácia de obrigar no interior do espírito (in foro conscientiae) inclusive em relação à lei humana, quando justa (I, II, 96, 4, c).
As leis religiosas e as leis morais, sim, obrigam interiormente segundo a convicção da consciência e a formação do caráter (embora não seja assim com todos os seres humanos). Já as regras jurídicas, por mais específicas que sejam, justas ou não, incidem automaticamente sobre os fatos a que aludem e lhes dá o caráter de serem orientados de um modo ou de outro independentemente da vontade das pessoas a que se dirigem.

e) Da Lei Natural (I, II, 94, 1 – 5).
Na q. 94 dedica-se Santo Tomás ao estudo clássico da lei natural: o que é, quais os seus preceitos, se todo e qualquer ato virtuoso é de lei natural, se ela é sempre a mesma em todas as pessoas, se ela é modificável, se pode ser apagada da mente humana.
Não é um hábito a lei natural, no sentido aristotélico. Como uma proposição abstrata é produto da razão, assim também é constituída pela razão a lei natural. Hábito é aquilo pelo qual alguém atua. Apenas num sentido impróprio se poderia dizer hábito a lei natural: pelo fato de ela se manter habitualmente em nós. Realmente dá-se o contrário: lei natural é aquilo por força de que se forma o hábito (1, c).
A lei natural é para as operações humanas o que os primeiros princípios indemonstráveis são para a atividade demonstrativa da mente. Pluralidade de princípios indemonstráveis, pluralidade de preceitos da lei natural (art. 2, sed contra). Em ambos os casos, da razão prática e da razão especulativa, deparam-se-nos princípios evidentes, patentes por si mesmos (per se nota) pois neles o conceito de predicado está contido no conceito de sujeito. Exemplos: "impossível afirmar e negar a mesma coisa ao mesmo tempo"; "o homem é racional", "bem é o que é procurado"; "Há que se fazer o bem e evitar o mal". Este último princípio (da razão prática) é o fundamento de todos os preceitos da lei natural, que a razão humana apreende como o bem humano a ser conseguido. A primeira inclinação de qualquer substância é conservar-se no seu ser; assim o homem, relativamente à própria vida. Outra inclinação, fundamental em todo animal, é a junção macho-fêmea, comum a brutos e a seres humanos (geração e criação da prole). Outra inclinação natural, agora específica dos seres humanos, é a de poder conhecer (inclusive conhecer a Deus), e de viver em sociedade. Segue-se pois, pela lei natural, que o homem tem de evitar a ignorância e precisa não prejudicar os semelhantes etc. (94, 2, c). Sem dúvida, um só é o preceito natural primeiro; mas as suas derivações são múltiplas (ad 1). Há na lei natural uma como que só raiz inicial (ad 2). Isto se explica pela unitariedade da razão (ad 3). Sob a lei da razão está contido tudo o quanto se pode por ela regular.
Cremos estar aqui um dos maiores males do racionalismo, como o de S. Tomás e outros. De princípio abstrato, isto é, logicamente estruturado com frágeis materiais do real, arma-se um arcabouço que começa pelo cimo; do pináculo lógico-formal, pretende-se a dedutividade do Real. Fácil perceber que os erros e os choques de toda ordem com a realidade serão uma constante. Daí os "remendos" de que continuamente tem de lançar mão o metafísico (muitas vezes vaidoso das suas "brilhantes subtilezas"). Daí também a subreptícia mas efetiva disposição do racionalista ao despotismo. Parece estar nesse quadro uma das explicações das ideologias de qualquer natureza.

Toda virtude é natural, como ensina Damasceno; assim, toda virtude se enraíza na lei natural [1]. Todo ser se inclina a atuar de conformidade com a sua forma específica (ex.: o fogo é levado a esquentar). Ora, como é específico do homem ser racional, claro está ser próprio do homem agir segundo a razão; e isto é a virtude. Logo, toda virtude é natural, é de lei natural. Note-se contudo que, considerados os atos virtuosos na sua singularidade, nem todos eles brotam espontaneamente da razão natural; não se dá em todos uma imediata inclinação da natureza à sua prática sendo necessária prévia inquirição racional para se poder ver a utilidade de certas coisas indispensáveis à vida (quasi utilia ad bene vivendum 3, c).
A lei natural é uma só, idêntica a si mesma em todas as pessoas. Todos somos inclinados a agir racionalmente por sermos da mesma espécie humana. Assim, tocantemente aos primeiros princípios, especulativos ou práticos, há a mesma verdade e a mesma retidão em cada uma das pessoas. Nem todos porém conseguem chegar por si às mesmas conclusões possíveis de serem deduzidas num e noutro campo: nem todos sabem que no triângulo a soma dos ângulos internos é igual a dois retos, nem todos sabem em que circunstâncias se há de fazer um depósito (com ou sem caução, por exemplo). E quanto mais concreto for o problema, maior será a possibilidade de variação das soluções (et hoc tanto magis invenitur deficere, quanto magis ad particularia descenditur).
Relativamente à razão prática, tal diferenciação, crescente à medida que caminha para os casos concretos (tanto no conhecimento como na retidão), deve-se aos impedimentos levantados pelas paixões, ou pelo mau costume ou pelas disposições ruins da natureza (ex mala habitudine naturae) 94, 4, c.
Essa passagem parece-nos típica do fenômeno em que a adaptação científica é obnubilada pelo ímpeto mais forte do critério religioso e moral. O Santo interpreta moralmente (e com fundo religioso, relativo à culpa original do homem) a dificuldade especificamente gnosiológica da adaptação humana. Em verdade, a dificuldade em se conhecer a singularidade das coisas não nos advém extrinsecamente de causas morais ou religiosas negativas. A questão explica-se por si mesma: é a extração do jeto e a exaustão do jeto extraído, sendo necessário sumo cuidado em se fazer parar o "impulso" (inclusive religioso) para se pôr entre parênteses o ob (franjas excessivas da anteposição) e as cargas do sub (no nosso eu podem estar a funcionar tapando a visão de fora, ou desviando o pensamento indicativo puro, outros critérios vitais de adaptação do ser social: expansão pelo ultrassensível, elevação pelo "bom", exaltação pelo "belo").

Embora no Evangelho haja muitos acréscimos à lei natural (por que há preceitos a ultrapassarem as forças da natureza), entanto muita norma, tanto no Novo como no Velho Testamento, é de lei natural (ad 1). É regra geral a todos comum, por todos havida como correta, que as inclinações dos homens sejam dirigidas de acordo com a razão (ad 3).
É imutável a lei natural, como ensina Graciano[2]: "o direito natural é, desde o começo da criatura racional, invariável no tempo e permanece sempre imutável" (94, 5, sed contra). Entenda-se todavia: não acontece verdadeira mudança quando ocorrem adições úteis à vida humana; tais acrescentamentos podem aparecer seja na lei divina seja na lei humana. Nada porém da lei natural se pode retirar, subtrair, abluir, tocantemente aos seus princípios. Particularidades, não conclusões, tiradas imediatamente dos primeiros princípios, podem efetivamente sofrer alterações e ainda assim apenas em pequeno número de pessoas. Como acima dito, deve-se tal alterabilidade anômala às depravações causadas na razão pelas paixões. De modo que não há alterabilidade alguma em ninguém nem quanto aos princípios mesmos da lei natural nem sequer nas conclusões próximas aos primeiros princípios (94, 5, c). Os acrescentamentos verificados na lei divina do Antigo Testamento explicam-se ou por serem "determinações" faltantes na lei natural, ou porque em alguns espíritos ocorreram corrupções da lei natural (ad 1).
Cumpre outrossim observar haver dois tipos de preceito natural: a) os que expressamente inclinam a natureza (ex.: não fazer mal a outrem); b) os que não proíbem o contrário e a razão descobre como boa tal solução contrária (ex.: o uso de vestes sobre o corpo, a discriminação de bens materiais, a escravidão). Em verdade o homem nasceu nu, em comunitariedade de posses e livre; contudo não é vedado pela lei natural que o contrário a essas soluções fosse adotado pela razão humana (ad 3). Logo, o fato de não serem em comum a propriedade das coisas e o fato de viger a escravidão não acarretam mudanças na lei natural, mas acréscimos por ela permitidos (ibidem).
Temos pois que a lei natural é insusceptível de ser abolida do coração dos homens em dois aspectos fundamentais: nos seus primeiros princípios (evidentes por si mesmos — per se nota) e nos seus princípios secundários extraídos dela como conclusões (exceção feita apenas de um que outro caso de errônea aplicação prática, por influência de alguma paixão desordenada sobre a operação intelectual). Já no tocante a particularidades pode acontecer que sejam abolidas da inteligência do homem por erros intelectuais, por força da depravação dos costumes e por hábitos corruptos. Assim foi no tocante a se ter como não pecaminoso o latrocínio, ou como não pecaminoso ainda o ato sexual contra a natureza (6, c).
Santo Tomás alude sobretudo à passagem bíblica em que São Paulo condena o coito anal entre casais e a prática do homossexualismo (ver a carta aos cristãos de Roma, capítulo 1, versículos 26-31)[3].

Conhecem-se efetivamente leis humanas postas contra a natureza; são leis iníquas, editadas contra os preceitos secundários da lei natural (ad 1 e 3).
Além da quaestio 94, toda dedicada ao estudo da lei natural, muitas passagens há ainda em Santo Tomás sobre o mesmo tema. Percorramos algumas.

A lei natural constitui-se  por uma certa participação da lei eterna em nós, ao passo que a lei humana deixa muito a desejar se comparada com a lei eterna. Muitos ilícitos proibidos pela lei divina e pela lei natural, deixa a lei humana passar sem punição, e faz concessões incompatíveis com ambas (96, a, ad 3).
Na lei divina, posta no Antigo  Testamento, muitos preceitos são de lei natural. Obrigavam assim a judeus como a gentios: os princípios evidentes dela bem como as conclusões imediatas (não os acréscimos de determinação específica) — 98, 5, c. Assim é que as leis contidas no Antigo Testamento ou coincidem com a lei natural ou são acréscimos de particularização dela; a lei natural é sempre respeitada pelas leis divinas (99, 2, ad 1).
Temos pois que a lei natural, nos pontos em que precisa de explicitação determinadora de minúcias, é complementada tanto pela própria lei divina como também pela lei humana. Quando essas determinações provêm da lei humana não se dizem preceitos da lei natural, mas sim de direito positivo. Postas tais complementações na lei divina, configuram-se preceitos diversos dos preceitos morais traçados no Antigo Testamento (99, 3 ad 2).
Quanto se derive da lei natural, pertence aos bons costumes; é moral. Só que alguns preceitos pertencem à classe daqueles que imediatamente a inteligência de qualquer ser humano vê — o que é de ser feito ou, ao contrário, o que não deve ser feito. São lei natural, de maneira absoluta. Mas outras regras há que exigem exame intelectual mais subtil, próprio dos sábios; demandam disciplinação, em que os menos favorecidos hão de ser guiados pelos mais sábios. Exemplo (no Antigo Testamento): "`a aproximação do ancião, levanta-te, e honra a pessoa do mais idoso" (100, 1, c). Caso de preceito de lei natural de imediata compreensão de qualquer pessoa, que não consta do Antigo  Testamento e que resume a lei do NovoTestamento, é o que manda amar a Deus e ao próximo (100, 3, ad 1).
Os preceitos morais constantes do decálogo (Antigo Testamento) têm a sua eficácia por força mesma da lei natural. Valeriam a mesma coisa ainda que não constassem de lei alguma positiva (100, 11, c).
Já no Evangelho (parte principal do "Novo Testamento") poucas são as normas legais, afora a própria lei natural. Pouco lhe acrescentam os próprios apóstolos. Os Santos Padres fizeram acréscimos; mas S. Agostinho recomenda que em tais acrescentamentos haja moderação para não tornar complexa e onerosa a vida em comum dos fiéis (107, 4, c).

f) Da Lei Humana (I, II, 95 -97).
Ao estudo da lei humana dedica S. Tomás três artigos, pesquisando-a em si mesma no seu poder (ou eficiência) e na sua mutabilidade. É como abaixo se expõe.

f1) A Lei Humana em si mesma considerada (95, 1-4).
Acentua Isidoro que o temor incutido pelas leis serviu para coarctar a audácia dos maus e tutelar os bons, pondo-se freio aos desmandos (95, 1, sed contra). O homem precisa de disciplina, indústria e expedientes para progredir, e abster-se do mal. É grandemente atraído pelos prazeres (os mais jovens sobretudo), sendo oportuna a disciplinação. Não é em todos que bastam as boas palavras e admoes   ntações, impondo-se a adoção de medidas carregadas de força e de temor, que os apartam do mal (per vim et metum). Essa disciplinação coatora fundada no medo da pena, é a disciplina da lei. Indispensável a lei, para bem da paz e da virtude. Sem lei e justiça o homem é o pior de todos os animais, como lembra Aristóteles (1, c).
Necessária também a lei para que se não deixe tudo à decisão dos juízes; mais fácil encontrarem-se poucos sábios que façam boas leis que muitos juízes que julguem acertadamente os muitos casos concretos. Mais, quem legisla cuida, muito tempo, em acertar com a lei, ao passo que os julgamentos dos casos concretos se proferem na casuística subitânea dos fatos. De outro lado, mais comumente se acerta mediante a consideração de muitos casos do que por um fato só. Ainda: trabalha o legislador com conceitos universais e futuros e os julgadores, ao contrário, estão em contato direto com os fatos atuais, mais expostos às paixões de simpatia ou antipatia, ou pela cobiça, corrompendo-se-lhes o julgamento. A "justiça viva", encontradiça no juiz, não está em todos os juízes, e é flexível. Precisamos da lei, que venha a deixar bem pouco ao arbítrio humano (ad 2). Alguns casos concretos se haverão de deixar à declaração judicial — os que não possam ser abarcados pela lei mesma (ad 3).
A "lei" (= regra jurídica) incide sobre fatos, que podem ser de maior ou de menor número e complexidade. Trata-se do suporte fático, o Tatbestand da ciência alemã. O profissional do direito tem de dar muita atenção aos fatos e bom lhe haverá de ser o conhecimento avançado de sociologia. Pontes de Miranda insiste nisto repetidamente nas suas obras jurídicas. O juiz racionalista é ao mesmo tempo presunçoso, inda que sem o saber. Ora bem, é no exame da complexidade quantitativa e qualitativa dos fatos, e só nele, que o magistrado poderá conhecer o que Santo Tomás de Aquino chamou de "casos concretos". Exige-se para tanto formação científica mais e mais avançada. Não poderá estacionar em noções isoladas, ou passadas. Com este atraso as pessoas do Povo (do qual se origina todo o poder) são prejudicadas, porventura pensando muitos membros da magistratura que os seus exames de superfície já os teriam afastado de toda a responsabilidade pelos efeitos práticos da provisão jurisdicional.

Quanto mais justa a lei, melhor. Vale dizer: quanto mais racional, mais lei. E mais racional é o mais de acordo com a natureza. Assim, a lei humana que se afastar da lei natural será corrupção de lei, e não lei. Vamos a um exemplo: "não fazer mal a outrem" é princípio mesmo de lei natural; "não matar" é conclusão imediata desse princípio; "será punido o que matar" é outrossim conclusão do primeiro princípio; agora, "será punido com a pena tal ou qual", isto já é elemento da lei humanamente posta (lei humana, lei positiva) (95, 2, c). Mesmo os princípios da lei natural não são aplicáveis de modo idêntico a todas as pessoas, por ser grande a variedade das coisas humanas (ad 3). Por certo, é impossível reduzir a puros termos de racionalidade o quanto os especialistas dispõem em lei. É o problema das determinações minuciosas com que nos aproximamos dos casos concretos, em cuja interna congruência temos de atender cuidadosamente aos enunciados e às opiniões indemonstráveis dos peritos e das pessoas de alta especialização e prudência (aliás, como sublinha Aristóteles, havemos de acolher tais enunciados com um respeito não inferior ao que temos pelas demonstrações racionais): oportet attendere expertorum et seniorum vel prudentum indemonstrabilibus enuntiationibus et opinionibus, non minus quam demonstrationibus — Eth. ad Nic., L. VI, cap. 11, n. 6 (95, 2, ad 4).
Essa posição aristotélico-tomista é uma autêntica capitulação da razão lógico-raciocinante diante dos fatos; torna-se incapaz de pesquisar a natureza e de penetrar o material bruto. Falta ciência, conhecimento, avanço da inteligência. Vale dizer, é o próprio desânimo em descobrir o que mais se preza: o ôntico! Fuga para o Olimpo do "racional", recurso discursivo que atravessou os séculos. Continua em nossos dias, com nomes diversos, em abundância. Tal desistência ora se chama "dialética", ora se denomina "valoração", ora se apresenta como "culturalismo". Não se deu, em tempo, a devida atenção a Bacon. Aliás, o estigma lançado por Aristóteles e repetido por Santo Tomás, fez grande sucesso: quem se ocupa em penetrar os fatos, debulhando-os em relações para conhecer a possível generalização, é "empirista", "sensista", "positivista" (ou "neo-"), posições próprias das inteligências menores, incapazes de se alçarem ao mundo mais elevado da transcendentalidade dos conceitos puros…
(Eis aí a ebriez conceitualista, orgulhosa, na sua pobreza de dados do Real, que tanto tem atrasado o avanço intelectual na área das chamadas "ciências humanas").

A lei humana é ao mesmo tempo dimensionada e dimensionante. Dimensionada: pela lei eterna e pela lei natural. Dimensionante: ordena os atos humanos aos seus devidos fins. Por tal razão deve a lei humana ser compatível com a lei divina, ser disciplinadora segundo a lei natural e servir efetivamente ao proveito do homem.
Por mais extraordinariamente bela que seja a aspiração deste santo medieval, um sistema jurídico contrário à lei divina contém leis humanas verdadeiras, talvez em profusão. Cumpre examinar se vieram a existir, se são válidas e vigentes. Em exemplo: se é lei ordinária, ou mesmo complementar, a divergir de norma constitucional, não vale; não pode ser aplicada. O aplicador expulsa-a do mundo jurídico. Por isto, o termo técnico correto não é declarar a invalidade e sim decretar a invalidade; quem decreta, separa o imprestável do válido (decernere).

 Qualidades indispensáveis da lei humana são portanto que ela seja: "honesta" (não contrária à lei de Deus), justa, possível por sua natureza e segundo o modo de viver dos habitantes, adequada tocantemente a tempos e lugares, proveitosa para afastar males e incentivar o bem, clara na sua expressão, que consulte ao bem geral de todos e não ao interesse privado de alguém.
Como a lei humana deriva da lei natural, divide-se ela sob tal aspecto em lei de direito das gentes e lei de direito "civil".
O aquinatense vinha sempre falando em lei. Neste artigo porém fala de direito. Não está o texto tal como o pusemos em vernáculo (lei de direito das gentes, lei de direito civil); fala o Santo em direito das gentes e em direito civil. Não se pode contudo inferir daí qualquer incongruência como se estivesse agora a confundir o direito com a lei. É mera força de expressão, concisa.

É que as questões de direito das gentes se originam do direito natural (como conclusões dos respectivos princípios), conclusões sem as quais seria impossível a vida em comum (é o caso, por exemplo, de justiça nas vendas, pois é natural que o homem viva em comunidade — 95, 4, c).
Confirma-se por este texto que em S. Tomás o direito das gentes provém do direito natural e não do direito positivo. É como o jus gentium não fosse também posto e como se não houvesse, e vigessem, regras jurídicas não escritas também nos ramos mais específicos do Direito).
Percebe-se também no Santo um germe de cientificidade ao dizer que o sociológico é natural. Não havia pois razão para ele cindir "natureza" e "espírito". A dicotomia, radical, foi entretanto por ele acentuada. E ficou a aderir à história do pensamento séculos afora quando ele vem eivado de romantismo. O amantes da metafísica, superiormente ao apreço pela ciência positiva, apaixonam-se por estas sendas — a ciência das coisas postas antes do pensar (=positividade) seria tarefa intelectual mais própria das inteligências menores...

As normas pelas quais se exprimem determinações (particularidades da lei natural), mediante as quais cada Estado acolhe o mais conveniente para si, estas constituem o direito "civil". Quanto ao mais, pode conceber-se a divisão do trabalho: lei do clero, lei dos governantes, leis militares, todos eles com seus direitos especiais (ibidem).
Outra classificação correta para as leis humanas é que atende à diversidade dos vários regimes: 1) constituições imperiais (nas monocracias); 2) respostas dos prudentes e senatusconsultos (na aristocracia); 3) direito pretoriano ou honorário (na oligarquia); 4) plebiscitos (na democracia); 5) lei (as normas jurídicas do regime misto, que é o melhor). Note-se não poder ser tido por lei e ordenamento de um regime de tirania.* Lei é pois a norma em cuja edicção colaboram autoridades e povo; nas palavras de Isidoro: quam maiores natu simul cum plebibus sanxerunt (95, 4, c).
Esta classificação de regras jurídicas empreendida por Santo Tomás é de intensa artificialidade diante da história em relação ao estudo científico do processo social jurídico de adaptação. Toda a terminologia é emprestada do direito romano, mas a atribuição de cada tipo a fontes do direito não corresponde a nenhuma das grandes fases pelas quais se pode vislumbrar a divisão da história do direito romano: realeza, república, alto império, baixo império e período bizantino. Trabalho mental quase que puramente lógico diante de um plano imaginário idealizado, que se estrutura como modelo eidético a que deve corresponder o real ("ontológico"). Configura-se assim uma espécie de ensaio medieval de um futuro "Mendeleev", cujo material é a ontologia aristotélica, distante da realidade, sem conhecimento da natureza, sem apreço pelo real, com menosprezo pelo pensamento quantitativo, sem atenção ao rigor das proposições dotadas de sentido verificável. Ânsia sonhadora de voo poderoso pela transcendentalidade, de intimidade imediata com o "ôntico", mas desconhecendo com precisão o elementar da natureza. É a mentalidade racionalista, a grassar, como em pensadores numerosos da idade atual.

Outro critério para se classificarem as regras jurídicas é pela matéria inclusive com referência ao nome no respectivo autor: Lei Júlia, sobre o adultério; Lei Cornelia, sobre os sicários etc.[4].
f2) Dos poderes de Lei Humana (I, II, 96, 1 -6).
O que Santo Tomás entende por "poder da lei humana" (de potestate legis humanae) percebemo-lo pelo conteúdo da sua temática anunciada na introdução da quaestio 96: se a lei deve ser norma geral ou se pode ser particular, se deve proibir todos os vícios, se deve ordenar todos os atos de virtude, se se impõe ao homem como obrigação íntima, se todos os homens se sujeitam à lei humana, se é possível agir em desconformidade coma literalidade da lei.
Fundando-se nas opiniões dos jurisconsultos romanos como Gaio, Papiniano, Julio Paulo, Ulpiano, Domício, Modestino (além das lições do Digesto (= Pandectas, no grego), diz ele que a lei haverá de versar assuntos gerais e não casos particulares, por isso mesmo que tem de cuidar do bem comum, que é de todos e não de alguma pessoa em particular: pessoas, negócios e circunstâncias (96, 1, c). Nem haveria utilidade em lei que regrasse um caso isolado e singular. Para tanto servem as consultas dos prudentes (ad 2).
Perceba-se o engano: num parecer de jurista pode haver revelação científica de conteúdo de regra jurídica metida no sistema, que pode alcançar casos mais gerais que os aparentemente restringidos numa interpretação apressada de alguma norma escrita. Em verdade, em se tratando de ciência positiva do direito, toda a preposição induzida é uma explicitação de regra jurídica não escrita. Mas geralmente: a ciência do direito coincide com o seu próprio objeto. (Ver Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 199-218).

Ainda que se não possa ter quanto aos atos humanos a certeza absoluta, pode a lei ser formulada em termos universais. Não se nos dá o mesmo tipo de certeza em todos os campos do conhecimento. A certeza é imperfeita nas coisas contingentes, ou seja, no conhecimento da natureza e das vivências humanas. Basta então que a certeza seja daquelas pelas quais se tenha por verdade o que ocorre na maioria dos casos, falhando embora nos pequenos números (ad 3).
Temos aí uma questão-cerne de gnosiologia. Diríamos que ela leva em si toda a problemática da filosofia do direito. Certeza absoluta só se tem na abstração, na formalidade desligada do Real (artificial, a todo rigor), por não poder ter nenhuma aplicação unívoca. Todo o real é efetivamente movediço. Todo conhecimento do real (=natureza!) é rigorosamente aproximado, embora para efeitos práticos (de adaptação humana) as diferenças sejam sem qualquer implicação, desprezíveis. A certeza lógica e a certeza matemática, sem a verificabilidade, incerteza real. As diferenças de certezas, são todas elas, apenas de grau. Não há que se distinguir, como faz S. Tomás (e com ele quase todo o pensamento Ocidental) entre “metafísico”, “da natureza” e “coisas humanas”. Tudo é “humano” e de tudo se pode ter certeza, se se usa das ciências particulares para se induzirem leis (físicas, biológicas, sociológicas), que sejam testadas pela experimentação. Assim procederam, e acertaram muito, dois gênios: Einsten na Física e Pontes de Miranda na Sociologia. O vício escolástico, porém, lançado por Aristóteles e por Santo Tomás, está ainda profundamente arraigado na mentalidade ocidental, renitente na sua falsa convicção de apoditicidade quanto ao real, quanto ao conhecer, quanto ao saber [5].

Não é função da lei humana coibir todos os vícios. É que a lei tem que ser geral: nem todos têm a mesma inclinação para a virtude. Não é exigível a mesma perfeição, na criança e no adulto. A lei é posta para a população toda, na qual a maior parte é constituída de pessoas de imperfeita virtude. Assim, a lei tem que ocupar-se apenas dos vícios mais graves, não de todos os vícios. O objeto da lei hão de ser aqueles vícios que causam dano à convivência, impedindo a vida social na sua conservação (furto, homicídio e outros semelhantes) (96, 2, c).
A lei tende, sim, a levar os homens à prática da virtude, mas gradualmente, não de uma só vez (2, ad 1). Nem mesmo aquilo que é ditado pela lei natural pode,  por toda a sua extensão, ser objeto de proibição da lei humana (ad 2). Com maioria de razão deixa de haver co-extensão entre lei eterna e lei humana (ibidem).
Afirma corretamente Santo Tomás (corretamente, queremos dizer, em termos de ciência positiva) haver diferença de exigibilidade entre a norma religiosa, a moral e a jurídica (lei divina em toda a sua extensão, lei natural em toda a sua plenitude, "lei humana"). Entretanto, preocupado em traçar um sistema teológico e moral de todo o conhecimento da vida humana, não conseguiu ver a realidade com mais precisão, nem levar às conseqüências epistemológicas necessárias esses lampejos que o seu quantum específico de ciência lhe oferecia. Nem dispunha de dados de ciência positiva, com que hoje já podemos contar.
         
De outro lado, todavia, pode a lei apanhar atos de qualquer virtude. A fortaleza, por exemplo, pode ser exercitada para o bem comum ou para o bem privado (digamos, em favor de um amigo). Por outras palavras, qualquer virtude pode ter atos regrados em lei, embora nem todos os atos de cada virtude possam ser objeto de lei (96, 3, c). Nenhuma virtude há, cujos atos não possam ser dirigidos por lei em função do bem comum (ad 3). A lei cogita, porém, somente da parte exterior do ato (I, II, 100, c), o que não obsta a que a intenção do legislador seja levar os homens a uma vida virtuosa (96, 3, ad 2).
Quando justa a lei, obriga ela o homem inclusive na intimidade da sua consciência (in foro conscientiae), por ser um reflexo participativo da lei eterna, de que se deriva. O indivíduo é parte da multidão (do todo). O que é da parte, ao todo pertence; como a lei justa consulta ao bem comum, a lei humana justa obriga integralmente o indivíduo (e não apenas quanto à exterioridade do ato). E o que é lei justa? A que reúna os pressupostos seguintes: 1) ordenação ao bem comum; 2) o ser oriunda de autoridade competente; 3) distribuição de ônus e benefícios em igualdade de proporção entre todos os membros da comunidade (96, 4, c). A contrario sensu, não é justa a lei feita em benefício da cobiça ou para glória do legislador, ou que imponha ônus e sacrifícios cujos resultados não conduzam ao bem comum ou que, embora a tal conducente, essa lei não divida igualitariamente benefícios e cômodos; *nem seja proveniente de autoridade incompetente. Tais leis são verdadeiramente atos de violência. Não se hão de cumprir, a menos que a sua inobservância acarrete escândalo, ou algum outro inconveniente. Claro que também serão injustas todas as leis ditatoriais, que se choquem contra os mandamentos da lei divina (ibidem). À lei injusta deve ser oferecida resistência (se não se originar daí mal pior, como seria o escândalo) — 96, 4, ad 3.
Só não se subordina a determinada lei quem, por força de outra lei superior, está fora da sua incidência. Nota-se porém que toda lei é regra, e também força coativa; ora, como os homens de bem estão com as suas vontades em harmonia com o preceito legal, não andam contrariados (como os maus) ao se lhe sujeitarem. Destarte, os bons não se subordinam à dimensão coativa da lei, para eles supérflua (96, 5, c). Também o príncipe (dirigente máximo) não está subordinado à força coativa da lei: ela provém dele, e ninguém se pode forçar a si próprio; não há quem possa compelir o príncipe, em juízo de condenação, a que siga a lei. Pode ele inclusive dispensar alguém do cumprimento da lei. Mas ele próprio não se esquiva da eficácia diretiva da lei, a que se obriga segundo o juízo de Deus. (ad 3).
Note-se como o despotismo já diminuiu bastante na história (embora com perceptíveis anfracturas, ainda neste século XXI). O regalismo vai rareando em quantidade e intensidade, em termos estatísticos, por toda a face da terra. Temos hoje, inclusive, a técnica da divisão dos poderes. O Estado criou órgãos diversos para funções diversas. O "magistrado supremo da nação" pode ser compelido pelo Judiciário, em condenação, desconstituição etc… Pense-se, no Brasil, na lei da ação popular, com origem na Constituição Federal. Em derradeira instância há o poder do Povo mesmo, que é jurídico, pois o poder estatal (que está no Povo) é direito subjetivo irradiado de regra jurídica do direito das gentes (= poder supraestatal — que se justifica por si mesmo, organismo total que se movimenta lentamente, segundo vetores tramados por todos os povos do planeta)[6].



Entanto, mesmo quem é subordinado à lei pode deixar de lhe seguir a literalidade, para atender à causa que levou o legislador a editar aquela determinada regra jurídica (art. 6, sed contra). A razão é a mesma: o que importa é o bem comum, sendo que em um ou outro caso particular a observância estritamente literal pode levar a resultados inconvenientes ao interesse geral. O legislador não consegue ver tudo. Passa-se portanto por sobre a letra da lei para se salvar o interesse público (utilitas communis), que está na intenção do legislador (6, c). Para tanto, porém, há ainda pressupostos importantes. Esse salto sobre a literalidade só se pode dar se o caso dessa aplicação supra-literal ocorrer subitamente, sem possibilidade de se recorrer à autoridade pública, que dispense da observância literal. À autoridade competente cabe interpretar a lei, dizendo o que é útil e o que é inútil à comunidade (96, 6, c).
O particular que assim justificadamente agir contra a letra da lei não está a julgar a lei, mas sim o caso concreto (ad 1). A hipótese é sempre de estar na iminência de ocorrer detrimento ao público e de não haver autoridade competente, a que recorrer. De qualquer maneira, na dúvida, sem se poder recorrer ao superior, prefira-se a observância literal (ad 2).* estado de necessidade ...
Não é da intenção do legislador que as leis se tomem literalmente, sempre; pois é impossível ao legislador, ainda ao mais sábio, tudo exprimir, que leve ao seu intento. A lei tem de atender à generalidade dos casos segundo o que mais comumente acontece (ad 3).
Continuam os doutrinadores a falar de "intenção do legislador" e até de "vontade da lei". Muitos séculos passaram para que se pudessem mostrar os erros contidos no voluntarismo e subjetivismo no direito. Hoje já sabemos que nem a vontade da lei, nem a intenção do legislador, nem as causas que induziram o legislador à formulação da regra, se podem ter como elemento seguro de interpretação do sistema jurídico. A própria realidade é que, unicamente, pode dar o sentido da regra jurídica, que a colhe. O único caminho a percorrer é o da análise científica das relações sociológicas e (a linguagem é apenas uma delas), sem qualquer ligação animista, isto é, com o que se tenha passado no espírito do legislador. Mesmo "espírito da lei" é conceito ainda subjetivista; o inevitável e imprescindível é achar-se, com o auxílio das ciências (sobretudo da sociologia), o sentido e a direção das regras jurídicas independentemente do momento político, isto é, de tudo quanto haja influenciado na edicção da regra em questão. As palavras da lei são palavras como quaisquer outras, símbolos de idéia, que por sua vez é símbolo do real. É no real, portanto, pela análise das relações sociológicas que podemos perceber o alcance da lei, ou seja,  o seu sentido e orientação [7].

f3) Da mudança nas Leis (I, II, 97, 1 – 4).
As leis humanas podem sofrer alterações. Não se imobilizam perpetuamente. A lei é obra da inteligência, a qual costuma proceder do modo de ser mais imperfeito para o mais perfeito. Tanto é assim para a inteligência especulativa como para a prática. O conhecimento humano vai se aperfeiçoando com o correr do tempo. Assim também as primeiras instituições legais, de mais imperfeitas evoluíram em instituições com menos falhas no tocante ao interesse público. Também os povos mudam, como acentua Agostinho; alteram-se-lhes as condições, que a lei deve acompanhar (97, 1, c).
A lei natural, reflexo na lei eterna, essa é perenemente imóvel; mas a razão humana é mutável e imperfeita. Põe alguns preceitos particulares, de acordo com as emergências dos casos (ad 1). De outro lado a lei humana é régua para os atos humanos, que são mutáveis, de tal ordem que não poderia ela ser ela algo inteiramente imutável e permanente (in rebus mutabilibus non potest esse aliquid omnino immutabiliter permanens. Et ideo lex humana non potest omnino immutabilis) (ad 2). Algo reto é sempre reto, mas a retidão do bem comum é diferente, por não lhe ser proporcional, sempre, a mesma coisa (rectitudo legis dicitur in ordine ad utilitatem communem, cui non semper proportionatur una eademque res …Et ideo talis rectitudo mutatur) (ad 3).
Muito favorecem a Santo Tomás de Aquino a inteligência enorme e, até certo ponto, o método, aliados ao desejo de acertar. Com o responder à terceira objeção, que se pusera, sobre a mutabilidade da lei positiva humana, veio a tanger ponto do mais alto interesse gnosiológico, que é o da relatividade, tão atual que chegou ao seu ponto mais alto no século XX. Hoje sabemos que a relatividade não é própria somente dos "atos" humanos. Ela pervade todo o nosso conhecimento. O reto de uma régua é relativo ao espaço-tempo. É a mesma relatividade existente nas "ciências humanas", só que aqui mais complexas as relações do que lá — o que mostra a unidade possível das ciências, sem a grande cisão, irreal, que ainda se professa. Note-se mais: a relatividade geral é mais geral do que pensou Einstein; varia também com as cargas pessoais do observador, em matéria de religião, moral, arte, ciência, direito, política e economia. O espaço-tempo real é de n dimensões (depende no número de relações em jogo) [8].

Nem sempre que surja uma descoberta para melhor se há de proceder a mudança na lei, deixando de lado a tradição vigente, pois em toda mudança de lei ocorre um certo prejuízo à higidez social (detrimentum quoddam communis salutis). Muito ajuda a conservação do costume firmado à observância das leis; a mudança na lei é golpe contra o costume vigente. A mudança deve portanto trazer vantagens compensadoras para o bem da comunidade. Tais vantagens hão de ser grandes e evidentíssimas, ou recomendadas por grande necessidade, ou ainda porque a lei derroganda seja iníqua; ou quando a sua observância tenha sido altamente nociva. A eficiência da lei decorre da sua profunda assimilação social, de modo que as mudanças não hão de ser facilitadas (non sunt de facili mutandae) — 97, 1, c e ad 2.
De tamanha excelência é o costume que, uma vez firmado, cobra força de lei, derroga lei e é intérprete da lei. Esta, com efeito, provém da inteligência e da vontade do legislador. A lei humana é produto da vontade racional do ser humano. Ora, razão e vontade exteriorizam-se não somente por palavras como também por fatos. O que se faz denuncia o que se escolheu. Os atos, quando muitos repetidos, mostram o movimento interior da vontade e declaram os conceitos da razão. Quando repetimos muitas vezes o mesmo ato é sinal de que tal ato está determinado por deliberação racional (videtur ex deliberato rationis judicio provenire) — 97, 3 c.
Não vale o mesmo raciocínio tocantemente à lei divina, nem à lei natural; aquela, uma expressão da vontade de Deus e esta, participação dela (ad 1).
Tal força do costume criador justifica-se, porque a lei humana frequentemente falha nos seus pormenores, e é difícil, de outro lado, extirpar o costume do povo (ad 2). Aliás, em se tratando de uma massa bem consciente (libera multitudo), a lei que ela se possa a si mesma elaborar em consenso vale mais que a autoridade dos dirigentes, que só são legisladores enquanto forem ao mesmo tempo gestores do povo. Até em se tratando de grupo humano menos livre, mesmo sem essa capacidade de legislar para si própria ou de extinguir lei que lhe foi imposta pelas autoridades, ainda assim o costume prevalente desse grupo obtém força de lei, desde o momento em que seja tolerado pelos dirigentes que, com tal tolerância, lhe dão implícita aprovação (ad 3).
À falta de formação científica, que o ambiente do século XIII não lhe propiciou, de parelha com seus fortes pendores metafísicos e cargas morais, não pôde S. Tomás perceber todas as implicações reais da proposição verdadeira; o poder emana do povo. O povo é o grande legislador (prescindimos aqui das interpretações teológicas). Os próprios legisladores formais, das assembleias oficiais, levam em si toda a influição social do povo em que vivem, de regra (há sem dúvida os casos teratológicos, mais raros). O povo pressiona mais do que parece, insensivelmente, forçando mudanças. A revolta popular pode chegar à semiorganização ou mesmo organização revolucionária (retomada do exercício do poder estatal, que é só do povo). Quando há um golpe de estado, aceito, ou lei desacertada acolhida, é porque o povo os aprova tolerando, "ajeitando-se" em tal nova situação. Por isso ele permanece e, ao menos por algum tempo, se legitima. Ao longo do tempo mais depende a autoridade do povo do que o povo da autoridade. A estrutura das energias jurídicas está no povo.

Podem as autoridades (rectores multitudinis) dispensar subordinados da observância das leis em casos concretos (como o chefe de família em relação aos membros dela), mas sempre em função de um bem melhor. Têm os chefes o poder de assim proceder quando a lei, na sua generalidade, não atende com perfeição ao caso concreto (in personis vel casibus in quibus lex deficit). Precisam, para tanto, visar unicamente ao bem comum e ter consciência clara da dispensa (fidelidade e prudência, como se recomenda no Evangelho, Lc., 12, 42) (97, 4, c).
Se se atende ao interesse comum, não há falar-se em acepção de pessoas, ainda que a pessoa dispensada saia beneficiada com a dispensa (ad 2). Da lei natural, nos seus princípios, não há dispensa possível; da lei divina só Deus pode dispensar, ou a pessoa a quem Ele haja confiado tal missão especial (ad 3).

g) A Lei nas Sagradas Escrituras (Antigo  e Novo Testamento).
Santo Tomás, filósofo-teólogo, conceitua a lei em toda a sua amplitude, desde a lei eterna até a lei positiva (posta pelo ser humano, humana). O conceito tomista abrange igualmente a lei positiva divina (seria posta diretamente por Deus). Aplica ele o mesmo conceito nuclear de lei elaborado desde a Q. 90, inclusive aos preceitos, de qualquer natureza, do Antigo  Testamento e, bem assim, aos do Novo Testamento, chamando àquele de lei velha (lex vetus) e a esse de nova lei (lex nova). São onze longos capítulos (quaestiones) com os quais Santo Tomás de Aquino conclui o alargado tratado da lei, empreendendo a seguir o da Graça. Com o tratado da Graça está a concluir a análise minuciosa do princípio exterior dos atos humanos bons. Deus é quem nos instrui pela lei e nos ajuda pela graça (q. 90, Introductio e q. 109, Intr.).
Das onze quaestiones sobre a velha e a nova lei colheremos somente o que mais diretamente se relacione com a conceituação de lei. Alguns textos já foram aliás adiantados por nós quando expusemos o pensamento do Santo no tocante à "essência" da lei, e também em relação à lei natural.

g1) A lei no Antigo  Testamento.
Todas as leis contidas no Antigo Testamento foram boas e acertadas para o seu tempo, para aquele povo, e postas pelo próprio Deus (I, II, 98, 1 – 2). Serviram como preparação pedagógica do povo eleito para a vinda do Messias, semelhantemente ao que se passa com a criança, que preparamos para a idade adulta (98, 2, ad 1). Foram transmitidas aos hebreus por meio dos anjos, seus promulgadores (art. 3, c ad 3).
g1.1) Só para o Povo Hebreu.
Foi lei dada somente ao povo judeu, monoteísta. Os outros povos somente estavam obrigados à sua observância naquilo em que ela era pura expressão da lei natural (q. 5 e 6). O tempo oportuno da sua instituição foi justamente o de Moisés, quando o povo precisava de definições precisas, com que se iniciasse mais seguramente na preparação da vinda de Cristo (art. 6).
Embora o fim da lei seja um só, os preceitos da antiga lei foram diversos, por serem muitos os meios que conduzem aos mesmos fins. (99, 2).

g1.2) Três classes dessas leis.
Encontram-se no Antigo Testamento preceitos de ordem moral, preceitos respeitantes ao culto divino e preceitos cujo objeto é a própria convivência dos cidadãos (q. 99). A educação nos costumes, dificílima, é disciplinação de ordem moral (99, 2): indução à vida em virtudes, com acrescentamentos e explicitudes que não se acham como conclusões racionais tiradas imediatamente da lei natural pela razão humana (99, 2, c e ad 1).
Mas, além dessa típica pedagogia de natureza moral, acham-se igualmente na lei antiga (Antigo Testamento) os preceitos cerimoniais, relacionados especificamente com o culto a Deus, que são distintos dos preceitos morais (99, 3, c e ad 2).
E além dessas duas classes de regras (ou normas, ou preceitos) do Antigo  Testamento, há a considerar ainda as regras referentes à convivência humana dentro da justiça. Por vezes regras morais são abrangidas pelas regras jurídicas (praecepta judicialia) as quais, consideradas de um modo geral, são também morais e que, particularizadas, integram o mundo dos preceitos judiciais (99, 4).
Não há preceitos de outra natureza no Antigo Testamento (art. 5).

g1.3) Sanções: premiais e penais.
A observância da lei era, então, incentivada por promessas e por cominações, como meio indispensável a se conseguir a sua observância (como o silogismo é meio necessário para conclusão da razão especulativa). O próprio prêmio de consecução de bens temporais era meio válido: o fim visado era chegar ao amor de Deus, até mesmo com os homens mais imperfeitos (art. 6).

g1.4) Lei e virtudes.
Todos os preceitos morais contidos no Antigo Testamento são decorrentes da lei natural, em forma de "determinação" pelo menos, como forma de disciplina explícita (ex.: levantar-se quando chega uma pessoa anciã) (100, 1).
A lei divina abrange ali todas as virtudes porque combate todo e qualquer pecado; há pecado contrário a cada uma das virtudes (art. 2). Todos os preceitos morais se reduzem às normas do decálogo (art. 3), inclusive o respeitante ao descanso semanal, por ser de moral que o homem se dedique às coisas de Deus (100, 3, ad 2).
Veja-se a grande latitude com que aqui o Santo emprega o termo moral, abrangedor até da própria religião. Se por um lado isto envolve agilidade intelectual e beleza, de outro lado é de graves inconvenientes epistemológicos — o conceitualismo vago, resvaladiço e equívoco, que empece o avanço do conhecimento.

A ideia de "devido" está mais obscurecida nas outras virtudes que na justiça. Por esta razão, no decálogo os preceitos referentes às demais virtudes não eram tão evidentes ao povo como os preceitos atinentes à justiça. Explica-se assim por que, lá, os mandamentos vêm a ser mais caracterizados por atos de justiça. Esses mandamentos sobre a justiça são aliás os elementos primários da lei (100, 3, ad 3).
S. Tomás sublinha certo primado da justiça sobre as demais virtudes, num sentido muito atual para a doutrina católica do problema social: qualquer trabalho assistencial é paliativo se não há justiça (distributiva); e por força da própria estrutura jurídica! Claro, pois, que o cristianismo não pode desinteressar-se pela Política, o grande meio de mudança das estruturas sociais[9].

Não bastaria à própria lei divina posta por Deus ordenar os homens na suas relações com o Criador; era de mister, como em toda a vida social, que os homens se relacionem mutuamente segundo a justiça. Por isto o decálogo contém regras sobre as duas matérias (100, 5, c). E precisava o decálogo de explicitar regras sobre o amor do próximo porque nesse aspecto a lei natural se encontrava obscurecida pelo pecado (ad 1). A base de todas as paixões, mesmo das irascíveis, são as paixões concupiscíveis, razão bastante para figurarem apenas estas no decálogo, conteúdo elementar primário da lei (ad 6).
Como diz a própria Escritura, tudo quanto Deus faz é correto em número, peso e medida. Assim, a própria sequencia em que aparecem os mandamentos da lei antiga é perfeita: trata-se da lei dada diretamente por Deus e não pelos homens (100, art. 5-7, sed contra dos três). Primeiro figuram as leis sobre o amor a Deus, e depois as de relacionamento com o próximo, porque o fundamento do amor ao próximo é o amor de Deus (6. c e ad 1). A lei há de conter cominação de penas, especialmente por causa dos mais inclinados ao mal, como ensina Aristóteles. Assim foi no decálogo (100, 7, ad 4).
g1.5) Indispensável e dispensável.
Nenhuma possibilidade existe de alguém ser dispensado da observância dos preceitos contidos no decálogo, porquanto todos eles visam ao bem comum. Onde se vise ao bem comum, aí está presente a intenção do Deus legislador. Portanto são indispensáveis (100, 8, c).
Parece que o persistente apego à intenção do legislador tem esta origem religiosa, no Ocidente: a vontade de Deus, que se confunde com a sua própria essência, e que portanto é perfeitíssima. De Deus houve a transferência para o legislador humano, como quem, necessariamente, ou na maioria dos casos, estivesse ligado a Deus, cuja vontade transmite. Animismo, este último, que não condiz com a realidade e é, por isso, rejeitado pela Ciência positiva.

Cumpre notar todavia serem dispensáveis os preceitos que, em casos concretos, sirvam apenas de meio para se atingir a intenção do legislador (ibidem). Os preceitos fundamentais são os referentes a Deus e aparecem em primeiro lugar; depois vêm os atinentes à justiça, com a idéia-cerne do que é devido a cada um (ibidem). Não há pois falar-se em desoneração de qualquer preceito do decálogo quando se vai contra a intenção do legislador (ibidem).
As regras da justiça não falham nunca, como ensina Aristóteles; mas variam, sim, os modos de se observar a justiça, em particularidades (100, 8, ad 1). Muda portanto, na singularidade dos casos concretos, os modos de aplicação das leis do próprio decálogo; tais alterações podem ser feitas por Deus mesmo ou por pessoas especificamente por Ele autorizadas (ad 3). Nem se confunda dispensa com interpretação da lei; é o caso por exemplo de se praticar no sábado ação imprescindível à saúde (colher espigas de trigo e comê-las): não se cuida aí de algo proibido pela lei (ad 4). É a própria interpretação que impõe tal entendimento.
Santo Tomás passa bem perto de tema de alto valor científico: a interpretação da lei não com olhos sobre qual teria sido a intenção do legislador, mas sim qual é a solução que os fatos cientificamente exigem. Essa revelação tem de ser feita, para ser segura e transpessoal (= "objetiva"), com auxílio dos conhecimentos propinados com rigor por tudo quanto de exato possamos obter na análise dos fatos: física, biologia (psicologia) e sociologia. Todos os processos de adaptação social têm de ser assim encarados; nenhum deles deixa de passar pelo caminho da linguagem, que é subproduto social (ela vem em consequência da ideia, que é social). Nada contraria, nisso, a própria religião. O homem de fé tem por certo que tudo é de Deus, inclusive portanto todos os fatos, em todos os seus íntimos aspectos, desvendados pelas ciências (as quais também se fundam na “essência – vontade” divina). A única exceção é o erro (= "não verdadeiro" para a ciência positiva).

g1.6) Regramento só do exterior do homem.
Mesmo a lei divina posta no Antigo Testamento (no decálogo, especificamente) exige apenas os atos exteriores das virtudes e não o modo virtuoso de ser, embora vise à vida virtuosa. A lei antiga incide onde comina pena (como é próprio de toda lei, que lança mão do temor disciplinante). A lei humana não cuida da intenção de matar, se não se vem a matar — por exemplo. No  a própria lei divina não vai ao ponto de exigir nem a intenção virtuosa nem muito menos o hábito bom, já formado. A própria alegria, com que se hão de observar os mandamentos da lei antiga, é apenas aquela que se liga ao fim (servir a Deus), ou a que provenha do bom ato realizado (art. 9).

g1.7) Para além do Decálogo.
Os preceitos morais do Antigo  Testamento não são apenas os constantes do decálogo. Muitos outros preceitos complementares, menos evidentes, aparecem nos Levíticos e Deutoronômio, particularizando aquilo que o povo não percebia tão claramente, com entendia os preceitos do decálogo (art. 11). Os preceitos morais referiam-se à justiça geral, ou seja aquela justiça abrangedora de todas as demais virtudes (em sentido amplo, portanto). Já os preceitos jurídicos (judicialia) são específicos da justiça especial do inter-relacionamento humano (circa contractus humanae vitae, qui sunt inter homines ad invicem) (art. 12, c, parte final).
As normas cerimoniais (pracepta cerimonialia) regulavam o culto a Deus, e serviam como pré-figuração da futura vinda do Messias, que é o Cristo. Foram numerosos e variados tais preceitos, em vista da imperfeição daquele povo ainda grandemente imaturo. Versavam sobre sacrifícios, ritos sacros, sacramentos e outras observâncias (101, 1, 4). Esses preceitos tinham razão de ser; não se tratava de atos não-sérios, senão de vinculações dotadas de sentido finalístico: o culto a Deus naquele tempo, e a preparação do culto definitivo — com Cristo na História (q. 102 – 103).
g1.8) Leis jurídicas e não jurídicas.
As regras jurídicas do Antigo Testamento (praecepta judicialia) tinham a função de regular as relações entre as pessoas, na justiça e eqüidade. Eram em número certo e de definição precisa (q. 104, sed contra). Essas regras jurídicas não se abriam ao conhecimento imediato da razão; somente podiam vigorar por força de instituição positiva (104, 1, c). Continham regulação não apenas de questões atinentes ao funcionamento dos juízos oficiais mas regulavam igualmente o inter-relacionamento das pessoas entre si (104, 1, ad 1). São morais as relações do homem com Deus, cujas regras sejam conhecíveis pelo homem com o só exercício da razão, isto é, quando não precisem de positiva instituição. É o caso da relação obrigacional de amar e cultuar a Deus (ad 3). Mas nas relações "homem – Deus" há muitas que não se dão a conhecer à razão. As relações dos homens entre si estão mais ao alcance da razão humana, fato capaz de explicar a existência de mais regras morais nas relações dos homens entre si do que na relação do homem com Deus. A razão é para o indivíduo o que é príncipe, ou juiz, para a sociedade perfeita (ad 3).
As regras não jurídicas, cerimoniais, referiam-se ao culto divino e superavam a mera racionalidade (secundum quod referebatur ad cultum Dei, superabat rationem) — 104, 2, ad 3. Ocorre que a situação do povo judeu era provisória; uma preparação para a redenção de Cristo. As leis que atendiam àquelas circunstâncias concretas foram determinações particularizantes positivamente instituídas, que perderam a sua eficácia; já não vigoram (104, 3, ad 1), a despeito de justiça e equidade serem, em si, imutáveis (ad 1 cc. ad 3). Quando um povo muda de regime político, suas leis devem ser modificadas (ad 3).
Não percebe Santo Tomás que, quando se dá a mudança de regime político, já se está necessariamente no mundo jurídico. O regime só se firma pelo direito. Essa visão, que faltava compreensivelmente em filósofo do séc. XIII, anda ainda ausente em muitos pensadores juristas nos nossos dias.

g1.9) Erro “de proibição” e erro “de tipo”.
 Entre os hebreus, quando alguém cometia ilícito não por ignorância da lei (tal desconhecimento não escusava) mas por ignorância da situação fática, não recebia pena; era contudo obrigado a expiar o mal com a oferenda de sacrifícios (105, 2, ad 9).
Outro pormenor do mundo jurídico não enxergado com clareza por S. Tomás é que, com a exigência de expiação sacrificial, está a lei a jurisdicizar uma fatia das relações religiosas. Os diferentes processos sociais de adaptação assumem-se uns aos outros, sem com isso perderem a sua especificidade: o universo não é somente de 4 dimensões, mas de n dimensões (n combinações de Energia).

Neste particular, como nas demais minúcias de regramento legal, estava certo todo o Antigo  Testamento, inclusive em relação aos estrangeiros (art. 3), e também nas do tipo familial (com filhos, esposa e servos).
A fé do Santo (alto grau de Religião na composição da sua personalidade) não lhe permite ver qualquer imperfeição no próprio regramento objetivo do Antigo Testamento, por entendê-lo de direta inspiração de Deus e portanto infalível. Entendemos desnecessária essa posição acrítica para se salvar a integridade da fé; justamente nesse ponto presta a mentalidade científica excelente serviço. Não mata a Religião; antes, depura-a, e aprofunda-a, e faz avançar o homem em mais preciso conhecimento e em mais requintada religiosidade. Não fica ela jamais extirpada, mas deslocada da região que ainda ocupar nos nossos mitos e ilusões. É progresso seguro, é proveito sólido do homem na própria sublimidade transcendente da vivência religiosa.

g2) A lei no Novo Testamento.
As questões 106-108 são mais teológicas ainda do que as anteriores sobre o Antigo Testamento: respigamos só o indispensável ao clareamento das ideias do aquinatense.

g2.1) A nova lei é sobrenatural.
A lei antiga serviu como preparação pedagógica para a vigência da lei de Cristo, ápice da história do homem. A fé em Cristo é obra do Espírito Santo. Tem-se aí portanto uma lei introduzida sobrenaturalmente no coração dos homens; são aqui secundários os dispositivos escritos sobre a fé e sobre a ação humana (106, 1, c). Viver de acordo com essa lei nova é algo que somente ocorre como Graça de Deus (dom gratuito para a união íntima com Deus), de modo que é, sob esse aspecto, lei que salva o homem, liberando-o intimamente e elevando-o por sobre as leis puras da natureza (106, 1-3). A variação da lei evangélica no tempo, no espaço e em relação à diversidade de pessoas, decorre apenas do grau de graça do Espírito Santo, não sendo de prever-se atuação maior da Graça do que ocorreu aos apóstolos, que a receberam primeiro e mais abundantemente (art. 4).
É lei perpétua, a do Evangelho (art. 4). Não haverá uma outra lei do Espírito Santo; pregado o Evangelho por todo o orbe terráqueo, será o fim dos tempos (ad 4).
g2.2) A nova lei aperfeiçoa a antiga.
O Evangelho não derrogou as leis do Antigo  Testamento, exceção feita apenas das normas dos cerimoniais. As leis morais e jurídicas ficaram mantidas, mas aperfeiçoadas na sua interpretação. Por exemplo, a lei do talião: ficou entendida como amor à justiça a ponto de se aconselhar sofrer ofensas por amor da justiça. A observância do sábado também: não há quebra do Dia do Senhor quando se precisa fazer algo necessário à vida e à saúde (107, 2).
Santo Tomás reconhece implicitamente que os próprios fatos é que podem exigir uma nova visão da lei. Levada às suas consequências mais profundas, de lógica material, a tese se achega à científica: não há que se cuidar de intenção do legislador.

            A lei antiga era mais penosa, no sentido de ser mais complexa nas suas minúcias. O Evangelho é mais difícil em outro sentido: a vitória sobre os movimentos interiores (107, 4, c e ad 1).

g2.3) Ausência de "lex nova".
Poucas prescrições exteriores traz a lei nova: as indispensáveis ao trabalho da Graça nas almas (108, 1). O que houve de novo em relação ao Antigo Testamento foram apenas os sacramentos (art. 2). No tocante ao direito (praecepta judicialia), deixou-o Cristo a cuidados dos que no futuro, autoridades temporais ou espirituais, viessem a ser os responsáveis pelas pessoas, além de corrigir Ele interpretações errôneas dadas pelos fariseus a algumas leis do Antigo Testamento (ex.: o sábado, o divórcio, os juros cobrados a estrangeiros), particularmente quando eles ensinavam ser correto o que era apenas permissão (108, 2, ad 4 e art. 3, ad 2).
Aqui o Santo misturou religião e direito. Se permitido pela lei, o divórcio era conforme a direito. Cristo não interpretou o direito; mostrou qual o mandamento de Deus[10] .

.4) Escravidão e liberdade.
A grande diferença entre o Evangelho e o Antigo Testamento é que este se constitui numa lei de escravidão, ao passo que o primeiro configura a lei da liberdade. No Evangelho estão adequadamente separados da lei os conselhos. A lei no Novo Testamento é posta para a determinação do necessário à consecução do fim da felicidade eterna, e os conselhos referem-se ao melhor e mais eficiente (melius et expeditius), com que se pode chegar a esse mesmo fim. Quanto mais o homem se apega aos bens deste mundo, tanto mais se afasta do fim último da felicidade eterna. A lei proíbe esse apego desordenado aos bens terrenos, como se fossem fins. O conselho insinua, como opção livre, não como obrigação, a total renúncia aos bens de prazeres, de riquezas e de honras. Baixou Cristo algumas regras disciplinares aos seus apóstolos, mas adaptadas àquele tempo: não entrar nas terras de gentios e de samaritanos, não possuir dinheiro, não levar consigo  sacola, nem calçados, nem bastão etc... (108, 4, c e ad 4).
          A lei no Novo Testamento conserva os preceitos da lei natural, altera os preceitos relativos ao culto (que antes vigoravam no Antigo), aprimora os preceitos morais, ordenando melhor o interior do homem (a disposição para fazer bem aos inimigos, por exemplo); quanto aos preceitos jurídicos do Antigo Testamento, corrige Cristo os erros de interpretação que lhes davam os fariseus (108, 4).


Bibliografia e referências [11].
               PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins Fontes, 1953.
               _______, Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932.
               _______, O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
               _______, Sistema de ciência  positiva do direito. 2ª ed., tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 245 seg.
               _______, Comentários à Constituição de 1967, com a Em. 1/69. Seis tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1972.           
               _______, Subjektivismus. und Voluntarismus im Recht. Sonderdruck aus Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grünewald, 1921, p. 522-543.
               _______, Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia, Napoli, 1925.
_______, Introdução à política científica. Rio de Janeiro: 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983.
               SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Regimine Principum.
_______, In Ethicorum.
_______, In Politicorum.
_______, Summa Contra Gentiles.
_______, Summa Theologica.
SANTOS, Arlindo Veiga dos. Filosofia política de Santo Tomás de Aquino. 3ª ed. São Paulo: José Bushatsky, 1954.
SPIAZZI, R. M. Introductio editoris, In: Ethicorum. Roma – Turim: Ed. Marietti, 1949, p. XII.



[1] Sobre este sábio monge árabe da Igreja católica, ver >>

[2] Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Graciano  (sobretudo na versão alemã, mais minuciosa — http://de.wikipedia.org/wiki/Gratian).

[3] Há também no Antigo Testamento o livro do Levítico (http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20090727113803AAj7JkS).

[4] Sobre a classificação científica atual das regras jurídicas (com mais a sua violação e realização dentro do âmbito do direito privado), ver Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo I, § 14-21.

[5] Ver PONTES DE MIRANDA, O problema fundamental do conhecimento, passim.
[6] Neste respeito leia-se o mesmo Pontes de Miranda, Comentários à Constituição Brasileira de 1967, com a Emenda 1/69. 6 v. tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969 e Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932 (passim).
[7] Ver PONTES DE MIRANDA, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht (passim).
[8] Ver Pontes de Miranda, Vorstellung vom Raume (toda).
[9] Ver Pontes de Miranda. Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, p. 291 ss, 1983.

[10] Ver GUARDINI, Romano. Der HerrBetrachtungen über die Person und das Leben Jesus Christi. Zweite durchgesehene Auflage. Würzburg: Werkbund-Verlag, 1938, p. 374-384.
[11] São as mesmas mostradas na 1a. parte.

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