quinta-feira, 1 de março de 2012

CAPÍTULO V — A LEI EM SANTO TOMÁS DE AQUINO (1a. parte).

CAPÍTULO V — A LEI EM SANTO TOMÁS DE AQUINO (1a. parte).
[Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo)].

                                                     Introdução.           
Santo Tomás considera a lei como princípio extrínseco dos atos humanos. Princípio instrumental, do qual se serve a fonte de toda a realidade, que é Deus. Deus é o princípio extrínseco primário de todo o bem. É-o portanto da virtude, hábito dos atos bons. A lei é, portanto, em geral, um instrumento de Deus para o bem, para a felicidade dos homens (S. Theol., I, II, q. 49, Introductio; q. 90, Introductio).
Sabe-se o quanto essa ideia é característica do pensamento tomista. Vale a pena insistir sobre o assunto.
Segundo os estudiosos, nas obras em que Santo Tomás mais ex professo estudou a problemática social (política, moral, religião, direito), há a seguinte ordem cronológica: "Summa Contra Gentiles", cujo Livro I terá sido composto pelos seus 35 anos de vida (1259). Entre 1261 - 1264 terá escrito os livros de II a IV. A pequena obra "De Regimine Principum" seria de 1266 (mesmo ano em que iniciou a "Summa Theologica"). Mais tarde, aos 45 anos de idade (1269), os comentários à Ética de Nicômano ("In Ethicorum"), sendo dessa mesma época o início dos comentários à Política do Estagirita ("In Politicorum") e, igualmente, a primeira secção da segunda parte da "Summa Theologica" (I, II). Aí aparece o seu tratado das leis (a II, II terá sido composta entre 1271 – 72) [1].
Essa ideia central do filósofo-teólogo será mantida, com algumas variações, como teremos o ensejo de examinar. Na presente exposição buscaremos a mesma ordem cronológica das suas obras. Como a "In Politicorum" terá sido contemporânea da "Summa Theologica", obra esta em que sistematizou mais perfeitamente o seu pensamento, será a Summa a última obra do Santo a ser examinada.


1. A Lei na "Summa Contra Gentiles"

Deus (Ens a se) cria e governa os demais seres (entia ab Alio).
a) Plano da obra.
A intenção do Santo ao compor a "Summa Contra Gentiles" foi a de expor as ideias fundamentais da fé católica, comparando-a com os erros professados por movimentos filosóficos dela distantes (L.I, cap. II). Daí cuidar o Santo de dedicar-se com penetração metafísica ao estudo de Deus, tema que o levará igualmente a examinar o problema fundamental do conhecimento. Ao menos como pressuposto lógico para a demonstração da existência de Deus e dos atributos divinos.
No L. II continua-se com o estudo dos atributos divinos e passa depois ao das criaturas. Investiga aí, racionalmente, questões de cosmologia e de psicologia. E retoma o problema fundamental do conhecimento. É, de certo modo, o livro sobre poder de Deus como criador e senhor (S.C.G., III, c. I, parte final).
          No mesmo proêmio do L. III (c. I, final) o Santo anuncia o assunto do Livro, ou seja, a perfeita autoridade ou dignidade de Deus, fim e diretor de todas as coisas. Cuida então do regime universal — Deus como fim e como governante. Particularmente, do modo como Deus governa as criaturas dotadas de inteligência e vontade. É, pois, o lugar em que S. Tomás trata a fundo o problema ético: o destino do homem, a felicidade, inteligência e vontade humanas, a direção dos homens na vida atraídos pelo supremo amor de Deus, através da lei.
Amor e lei aparecem profundamente entrosados entre si. O livro IV, último da S.C.G., ocupa-se do conhecimento sobrenatural de Deus, através dos meios positivos da revelação, como o anuncia o escrito no c. I, Proêmio.
b) O conceito.
Questões. As criaturas irracionais são governadas pela lei natural, através de "quadam naturali inclinatione" (III, 114). O homem, ser inteligente, é dirigido por outro tipo de lei, pelo qual é guiado nos seus atos: "dandum est aliquid hominibus quo in suis personalibus actibus dirigantur. Et hoc dicimus legem" (ibidem).
É esse um dos primeiros conceitos formais de Santo Tomás acerca da lei. Começa em Deus, princípio e fim de todas as coisas, para o qual o homem é atraído por sua própria natureza. Para isso a lei divina amorosamente o ordena, criatura racional que é. A lei é o traçado mesmo da atividade humana, em função do fim do homem, que é Deus: "Cum lex nihil aliud sit quam ratio operis"…etc…(III, 114 – final). A função da lei é fazer bons os homens, para que deem a sua adesão a Deus a partir das profundidades do seu espírito (III, 115). Ora, a adesão mesma, em si considerada, ocorre pelo amor; de tal guisa, a lei divina é uma ordenação intencional do Amor para o amor: "Hoc igitur praecipuum in divina lege esse debet, ut mens humana Deo adhaereat" (III, 115); …"necesse est quod intentio divinae legis principaliter ordinetur ad amandum" (III, 116).
Vontade correta é a vontade boa, isto é, a que se ordena para o bem, sempre  hierarquizado este pelo fim último (III, 116). Amor ao bem — eis o intuito máximo da lei divina (ibidem). Agora, o amor realiza-se nas obras, de modo que a lei traça a ordem dos atos humanos (ibidem). Não há, porém, amor de Deus sem que os homens, animais sociais, se amem uns aos outros. Vê-se assim que a lei divina leva ao amor recíproco entre os homens (III, 117). Endereça-os e eleva-os igualmente a Deus por meio de uma mesma fé, a fé verdadeira (III, 118), servindo o mesmo culto como o conjunto de meios sensíveis em que se corporificam alguns atos de fé (piedade, serviço, religião, latria ou culto) — III, 119.
A Summa Contra Gentiles, obra de fins explicitamente religiosos, é uma defesa da fé católica. No L. III, capítulos 118 e 119, há duas passagens de Santo Tomás de Aquino a respeito da unidade da fé e da unidade do culto. Pretende-se a exclusão de erros, com os fins de salvação e do serviço de Deus (c. 118, p. final). Deus é visto como governador e Senhor universal (c. 119, 2º parágrafo). São concepções comuns a muitas religiões que, todas, precisam de organização e de uma certa unidade. Daí porque a religião é sociologicamente, um processo social de adaptação a um tempo profundo e violento (grau 7 de estabilidade e grau 5 de quantum despótico)[2].
b1) Primeira questão.                                              
Cumpre notar para os fins desse nosso trabalho que probabilissimamente Santo Tomás não percebe que o fenômeno religioso se jurisdiciza facilmente nas coisas relativas ao culto exterior, a despeito de estar longe de ser este o mais importante em matéria de religião. Regras há de culto, muitas delas não escritas, que incidem independentemente das vontades das pessoas do grupo (independentemente também do Estado). É essa, com precisão, a característica mais frisante do processo jurídico de adaptação; um fenômeno de simetrização social, de calibração de energias humanas cujo critério não é apenas o da inspiração pelo ultrassensível (Deus), nem do só critério de bem (moral). É próprio do Direito haver um critério de solução geral (dentro do grupo que seja), direta e curta tocantemente a discussões sobre a via a seguir. No momento em que uma regra religiosa adquire essas características (o que ocorre frequentemente — basta ler-se o código de direito canônico), ela se faz regra jurídica. Da concepção tomista muito há que hoje ainda se conserva, nos meios jurídicos da atualidade; persistente, continua a pensar-se apenas no direito existente no círculo estatal . Não se difundiu ainda a convicção, correta, de que há o fenômeno jurídico em círculos menores, não estatais: num clube (não se confunda com o seu conteúdo estatutário), na interioridade de uma sociedade religiosa ou moral, ou científica, num grupo de malfeitores (há o fenômeno interno do direito vigente para os membros de uma quadrilha, de uma máfia, de uma camorra etc.), num jogo de crianças etc.
A lei divina é, porém, para Santo Tomás — como era de esperar-se — sobretudo para a libertação interior do homem e da sua ligação íntima com Deus (ver por ex., em relação às coisas sensíveis, o L. III, c. 121). Dada, porém, a enorme relevância do comportamento religioso para a sobrevivência social, é evidente que muita regra religiosa (lex divina na expressão do Santo pensador), seja simultaneamente regra jurídica. É o caso, por exemplo, das regras sobre atividade sexual, de que o Santo trata logo a seguir, no L. III , c. 122.
b2) Segunda questão.
Cabe outra observação: a concepção religiosa de S. Tomás é globalizante. Abrange a totalidade da vida humana (aliás, como em quase todas as demais concepções religiosas). Esse conceito de Lex, um dos primeiros da sua extensa obra, é o conceito de um estabelecimento amoroso de linhas de convergência dos homens no seu conjunto para com Deus, unificados pela fé e pelo culto. É claro que a unificação de comportamentos de pessoas pressupõe política no sentido colhido pela ciência positiva: organização dos pontos e da linha de direção do grupo. A organização das linhas de força dentro do grupo humano leva consigo sempre elementos de alguma violência (sem que o termo tenha ou possa ter, em si, qualquer sentido pejorativo). É próprio da política (tão processo de adaptação social como os demais: economia, direito, arte, moral, religião e ciência), é próprio da Política, dizíamos, impor uma certa ordem. Explica-se então que religião e direito em S. Tomás estejam bafejados por política. Apesar de toda a admirável santidade do Angélico, e de sua poderosíssima inteligência (e talvez por influência mesmo da sua notável personalidade de obediência dominicana), essa concepção um tanto despótica, dominadora, senhoril, impositiva, de lei como produto da vontade do legislador, ganhou foros de autoridade através dos tempos. Por via de consequência continuou o direito como processo natural de adaptação, a ser tratado com forte conteúdo político. Persiste-se em olhar a lei como um imperativo, embora esse imperativo seja apenas o momento político da lei, ao tempo que ela se formou, seja nas assembleias explícitas seja na lenta elaboração do costume, no seu mais amplo sentido. Incluem-se aí as regras jurídicas não escritas, pesquisáveis e descobríveis nas próprias relações sociais.
Santo Tomás não parte de dados científicos para descobrir o que seja lei. Parte de Deus mesmo, a cuja existência e atributos chega pela metafísica, pelas vias racionais. As bases dessa elucubração racional, em vez de serem os dados da ciência, são as do senso comum.Vejam-se, por exemplo, na S.C.G., as suas famosas cinco vias, os grandiosos argumentos com os quais demonstra racionalmente a existência do "Ens a se" (Livro I, c. XIII).
                                      2. A lei na " De Regimine Principum" .
a) Política e Lei.
O opúsculo "De Regimine Principum" tem por fito sobretudo estabelecer a boa estrutura do Estado e a ação administrativa (ação política) do governante. Claro que nisto se pressupõe já a atuação do processo jurídico de adaptação e, por via de consequência, muitíssimas regras jurídicas, ainda que não escritas, não são menos leis que as elaboradas pelos parlamentos ou as outorgadas pelo Príncipe. Tal clareza entretanto não existia ainda ao tempo de S. Tomás. Esta questão não entrou na sua temática. Mas o seu gênio poderoso avizinhou-se muitas vezes, em quentes aproximações, do que a evolução científica levou séculos para descobrir, depurar, classificar, definir e sistematizar.
De qualquer modo há, por certo, referências expressas à lei nessa obra de política, particularmente no L. I, cap. XV. Interessante observar que as ideias aí desenvolvidas coincidem em suas linhas gerais com as da concepção teocêntrica dos escritos anteriores, como a “Summa Contra Gentiles” (supra). Supõe-se assim que o dirigente do Estado tenha claríssima consciência do fim último do homem. Toda a sua ação política e administrativa terá de tender a conduzir os homens, em última análise, à realização do seu fim último, que é Deus. Todos os bens temporais são meios para a consecução da vida futura, na contemplação de Deus (n. 64) [3]. Ora, diz o Santo, pela lei divina sabe-se tanto o que conduz à felicidade como também os impedimentos dela (número 65). Terá pois o Rei de estar atento à lei divina, cujos ensinamentos pertence aos sacerdotes (ibidem). Daí a busca político-administrativa dos bens morais, da suficiência dos bens materiais e da paz duradoura. Mas, ao Rei incumbe também a edicção de leis humanas, e de preceitos, com a consequente aplicação de penas e a outorga de prêmios; coíbe com isso a iniquidade e induz a prática de boas obras. É como Deus fez com os homens: …"ut suis legibus et praeceptis, poenis et praemiis homines sibi subjectos ab iniquitate coerceat, et ad opera virtuosa inducat, exemplum a Deo accipiens, qui hominibus legem dedit …" (I , XV , 67).
b) Reparos científico-positivos.
Curiosa aqui, a nosso ver, uma inversão gnosiológica. Em vez do antropomorfismo em se ver a Deus como legislador, Santo Tomás assume atitude contrária: legislando para os homens, o Rei está imitando a Deus. A despeito do elevado conteúdo moral e religioso da atitude metafísica, em ciência não se pode agir assim. E a atuação da ciência — que, esta sim, verdadeiramente começa sempre pelo mais simples — não impedirá as atitudes religiosas. Pelo processo científico de adaptação social o homem coloca-se continuamente diante dos outros seres buscando o máximo de indicatividade, levando-o a isso o próprio desenvolvimento de seu cérebro, cada vez mais indicativo. Afasta-se ao máximo de influências de qualquer outra energia social — inclusive a força da religião. Essa indicatividade é um grande esforço de sujeição do sujeito cognoscente, em ceder o máximo de si, do sub. É um esforço adaptativo apreendido constantemente do contacto com os outros, desde o diálogo anterior à própria reflexão atual.
A vida em assembleia fez o homem ser o que ele é hoje e continuar de empreender a sua evolução. Essa caminhada pela indicatividade (avanço no conhecimento do mundo) também — insistamos — não destrói outros aparelhos de adaptação social, com que se movimentam os homens na convivência; é assim por vários procedimentos de atuação, pelos processos sociais de adaptação: pela religião (de que a metafísica é manifestação lógica), pela moral, pela arte, pelo direito, pela política  pela economia e pela ciência[4].
A história biofisiológica do pensamento tem sido quase inteiramente negligenciada pelos filósofos de todos os tempos. Falha esta, parece-nos, que inça de problemas o pensamento humano e retarda o avanço no domínio intelectual do mundo. Os reflexos dessa lacuna são evidentemente generalizados e deletérios para toda a vida humana: para a própria religião, para o direito, para a política, para a moral etc.
3. A Lei na "In Ethicorum":
a) As funções da lei.
Muitas são as referências de Aristóteles à lei no seu tratado de filosofia moral. Deriva dele, em S. Tomás, a concepção de direito como objeto de uma virtude moral, que é a justiça. A justiça, a mais nobre das virtudes morais, é o assunto do L. V da "In Ethicorum". As referências à lei aparecem aí copiosamente. Mas surgem também em muitas outras passagens. Percorramo-las brevemente, passando apenas pelos pontos de especial interesse para o nosso assunto.
Uma das primeiras referências feitas à lei na "In Ethicorum" contém a mesma ideia, já exposta na "Summa Contra Gentiles" e na "De Regimine Principum". A intenção do legislador, ao cumprir a sua missão, deve ser a de conduzir os homens à prática do bem, à prática da virtude. Com preceitos, penas e prêmios (l. II, lectio I, n. 251). Ao se legislar, tem-se sempre em vista o bem comum, sendo que o preceito se dirige a todos os integrantes do Estado. O bem comum vem a coincidir com aquilo que é mais proveitoso e principal dentro do Estado (V, II, 902).
A lei acertada tem de ser precedida de pesquisa das necessidades sociais. Conterá os expedientes indispensáveis aos objetivos nela visados (ibidem, n. 905). Ela em hipótese alguma poderá prescindir do incentivo à virtude e do combate aos vícios (ibidem, n. 904). Em se tratando da justiça comutativa, a lei cuida apenas do equilíbrio entre vantagens e incômodos (V, VI, n. 951 e lectio VIII, n. 969). Dirige-se ela aos que são entre si iguais, cidadãos livres e sem dependência de um para com outro. É um ditame racional (V, XI, 1007 e 1009). Regula as operações humanas (V, XVI, 1087).
b) Lei “positiva”.
A lei positiva é manifestação da virtude da prudência em sua função arquitetônica, ou seja, na função de estabelecer a construção social do Estado (X, II, 1971). Tem caráter preceptivo ou de mando (VI, VII, 1197). Significa ela portanto a recta ratio com a qual o dirigente provê ao bem comum, sendo o que de mais importante há na política, derivada da virtude da prudência (ibidem e L. X, 1. XVI, n. 2165, 2174, 2179) [5]. Agora, sobre fatos que raramente ocorrem é impossível legislar (V, XVI, 1087). A eficácia obrigatória da lei advém de ela ser editada pelo príncipe (X, XIV, 2153 e 2159),
Não admira o regalismo do santo de excepcional inteligência. Foi educado, como todas e todos, no clima de ditadura imperial. Aderia a ela a própria igreja católica dessa época medieval.

4. A Lei na "In Politicorum".
a) Política e Lei.
Vimos páginas atrás que um dos sentidos da política é ser ela a própria virtude nobre da prudência (virtude intelectual e não virtude moral), aplicada especificamente a traçar as linhas do Estado. A política é a prudência arquitetônica, situada sobretudo na atuação do legislador. Essa é a densa matéria dos comentários empreendidos pelo aquinatense à obra específica de Aristóteles. O conceito de lei está portanto muito ligado ao da virtude da prudência, ao atuar do ser humano como legislador. Percebe-se também que a lei muito terá de "ratio", conceitos dos mais repetidos por S. Tomás de Aquino. São ideias muito sublinhadas na "Summa Theologica", como se verá mais adiante.
b) Lei e proveito humano.
Na obra "In Politicorum" volta a ideia de a lei ser traçada para a utilidade dos homens (L. I, lectio IV, n. 79). O legislador tende a traçar leis tais que unam os homens pela amizade, de tal que se previnam os movimentos de subversão (II, III, 193). Antes de editadas é de mister que se pense com segurança sobre os bons efeitos das futuras leis (II, V, 210). A edicção de leis tem de atender a circunstâncias reais das pessoas que serão por ela reguladas, a fim de que aqueles bem se acomodem a essas (II, VI, 229). Urge outrossim que se examine o modo como funcionam elas em outros povos, em que se estejam em vigor (ibidem).
Um dos problemas que muitos pensadores tiveram por relevante, e cuja matéria deve ser legislada, é o da propriedade; daí, com efeito, muitas são as causas de descontentamento e desordem (II. VIII, 255). As leis hão de se ocupar da aquisição de bens materiais, prazeres e tristezas, por modo que se evitem as injustiças (II, VIII, 266). Devem igualmente as leis levar em conta as relações internas dos cidadãos, e com os vizinhos do país, e os assuntos de segurança externa (II, VIII, 268). A modificação das leis altera profundamente a feição do Estado (II, XII, 289). As ruins hão de ser modificadas (II, XII, 295).
Impossível, ainda para o sábio, reduzir a lei escrita perfeita tudo aquilo que respeita à ordem do Estado (II, XII, 293). De qualquer modo é de temer-se a excessiva mudança nas leis, mesmo daquelas que são menos perfeitas, para que não se acostumem os cidadãos e deixar de observá-las (II, XII, 294). Continuadas mudanças retiram a força da lei como tal (ibidem, n. 295).
Toda lei só se pode destinar ao avivamento da prática das virtudes, de modo que deixará de ser lei aquela que contrariar as virtudes (II, XIII, 297).
5. A Lei na "Summa Theologica".
É nesta grandiosa obra que o gênio do aquinatense expõe o seu longo tratado sobre a lei. Não podemos não nos alongar aqui um pouco mais, para que se possam extrair conclusões mais firmes sobre o pensamento de S. Tomás. Tanto a respeito da lei como do próprio conceito de Direito.
a) A essência da lei.
De essentia legis é, nada mais nada menos, o título promissor (a nímia pretensão, costumeira nos metafísicos), que vemos na "Quaestio XC" da "Prima Primae". O Santo enfrenta de perto a questão, e depois completa o seu pensamento em textos posteriores, nos capítulos (quaestiones) seguintes. Examinemos primeiro os textos da I, II, 90, 1 – 4.
a1) O que é.
Lei é o meio pelo qual Deus, causa extrínseca mediata dos atos humanos, nos move para o bem (Introductio). É próprio da lei preceituar e proibir, isto é, imperar. Ora, imperar é o próprio da razão, de modo que a lei é algo da razão, algo de racional (I, II, 90, 1, sed contra). É uma curta régua e medida dos atos, com que somos induzidos a agir ou a abstermo-nos de fazê-lo. Essa régua-medida é justamente a razão. Assim, a lei é algo da razão, que é o primeiro princípio dos atos humanos. Princípio de ordenação para um certo fim (I, II, 90, 1, c). Toda e qualquer inclinação provém de alguma lei, ao menos por força de algum tipo de participação com a razão (1, ad 1). A razão prática usa de algum silogismo nas suas operações; são princípios universais ordenados para a ação. E aí está justamente a lei (1, ad 2). A ratio não nos move a fins, por si mesma, mas pelo impulso da vontade. Mas é a razão prática que indica os meios para agir (1, ad 3) .
a2) Lei e bem comum.
Ocorre que a lei sempre é ordenada no sentido do bem comum [6].
O princípio operativo da razão prática é o destino mesmo da presente vida, isto é, a felicidade. Tal não se dá senão na vida comunitária. O homem é parte da sociedade, de modo que a lei tem necessariamente de atender à conveniência do bem comum. Nenhum preceito particular realiza o conceito de lei (rationem legis) a menos que atenda ao bem comum (2, corpus). Bem comum, eis a causa final da própria comunidade (2, ad 2). Assim como inexiste segurança em conclusões da razão especulativa, se não se firmarem nos primeiros princípios indemonstráveis, assim também nenhum resultado confiável há na razão prática se não for em função do bem comum. Isto é função própria da razão (2 , ad 3).
a3) O poder de legislar.
Mas, indaga o Santo, de quem é essa razão (intelecto, mente, inteligência) da qual provém a lei ? É a matéria do artigo 3 (I, II, 90). O ato de fazer a lei (facere legem, 3, sed contra) é prerrogativa ou de toda a multidão ou então de quem lhe faz as vezes (o que tem a incumbência de cuidar da coisa pública.
Note-se genial percepção: primeiro autor da lei vê o Santo que é o Povo; só depois vem o órgão estatal. Assim, é em verdade, segundo a ciência positiva do direito. O poder originário está nas populações, para construir e reconstruir — Revolução — o próprio Estado. Depois vem o Poder Constituinte e, após este, o legislador ordinário. [7]  
Mesmo assim, o Povo continua criando continuamente regras jurídicas nãoescritas; isto São Tomás não percebeu.

Aliás, quem está sob os efeitos da lei, dela participa como por ela regulado (3 , ad 1). Força coativa, própria da lei, tem-na apenas a multidão, ou o gestor dela (caso, por exemplo, de aplicação da pena — 3, ad 2). Certo, o que dirige certa família tem o poder de baixar alguns preceitos ou estatutos que, porém, não realizam em si o conceito de lei propriamente dita (3, ad 3) .
a4) Definição de lei.
A promulgação é ato essencial da lei, por isso que é indispensável venha ela ao conhecimento público. É missão do que tem autoridade[8].
Podemos então, diz o Santo, dar a definição, por essência, do que seja lei; "É uma certa ordenação da razão, conducente ao bem comum, promulgada por quem tem a incumbência de cuidar da respectiva comunidade": "...definitio legis, quae nihil est aliud quam quaedam rationis ordinatio ad bonum commune, ab eo qui curam communitatis habet, promulgata" (I , II , 4 , c).
Entremos agora a textos outros, complementares.
É clássica a definição que acabamos de transcrever. O pensamento do Santo volta-se muitas vezes mais adiante sobre o mesmo tema. Sigamos-lhe portanto o raciocínio esclarecedor na "Summa Theologica".
Acha-se localizada a lei, essencialmente, naquele que regula e mede; apenas por participação reside naquilo que é regrado e medido (I, II, 91, 6, c). Toda lei tem quem se lhe sujeite, e a função da lei é levar a prática da virtude os que se lhe subordinam (92, 1, c).
A razão mesma da sabedoria divina, ao mover tudo para o seu devido fim, é lei (obtinet rationem legis — 93, 1, c).
a5) Lei, instrumento educativo.
A lei humana realiza o conceito de lei na medida da sua conformidade com a reta razão. Afastando-se da razão, é violência e iniquidade (93, 3, ad 2). A lei dirige os atos daqueles que estão subordinados ao governo de alguém (93, 4, c). Quem legisla para seres racionais impõe-lhes preceitos imprimindo em sua mente certa regra, que é princípio de agir (ibidem). Em relação aos homens tal ocorre a partir da promulgação (93, 5, ad 1). Muita coisa há que tem de ser legislada em complementação à lei natural, seja por lei de Deus seja por lei dos homens (94, 5, c). Qualquer lei será tanto mais participativa da reta razão quanto mais se aproximar da lei eterna (93, 3, c). Encontram-se leis humanas, que são iníquas; decorrem elas de derivação de preceitos secundários da lei natural (94, 6, ad 3). A lei humana tem fim intimidativo, para frenar-se a audácia dos maus em favor dos próprios homens bons (105, 1, sed contra). Cuida-se de processo educativo, de especial importância para a formação da juventude (95, i, c). Importante entre seres humanos a lei, de jeito que pouco se deixe ao arbítrio de juízes (95, 1, ad 2). Entanto, particularidades, que não se cabem na lei, hão de se confiar aos juízes, como ensina Aristóteles (95, 1, ad 3). O temor da lei ratifica conteúdos de direito natural e valores aprovados pelo costume (95, 2, sed contra). A lei dirige-se sempre a muitos porque o bem comum é sempre de muitos (96, 1, c). Não haveria qualquer proveito em lei que se destinasse a um certo ato singular; ela é sempre um preceito comum, dirigido à pluralidade (96, 1, ad 2) [9].
Sem proibição legal de atos prejudiciais a outrem não seria possível a conservação da vida humana em sociedade (96, 2, c).
Lenta é a indução dos homens à virtude através da lei. Algo que não se consegue de repente (non subito, sed gradatim) — 96, 2 ad 2.
Do próprio conceito de lei são os seguintes dois elementos: ser regra dos atos humanos e ter força coativa (96, 5, c). As pessoas boas concordam com a lei; discrepa a respeito a vontade dos maus (ibidem).
Novo baralhar-se de plano real com plano ideal, de que frequentemente se serve o pensador de índole metafísica, lógico-racionalista.

A lei humana não obriga o dirigente (princeps legibus solutus est, segundo o Digesto) apenas tocantemente ao aspecto coativo. Mas ele deve livremente, segundo o Juízo de Deus, cumprir também o que está na lei; pode ainda, segundo as circunstâncias de tempo e lugar mudar a lei e dispensar da sua observância (96, 5, ad 3).
Curioso como até a religiosidade, sem o auxílio da ciência, mesmo num grande metafísico, leve a concepções tão ingênuas quão despóticas. O envolver-se dos fatos (atendendo necessariamente à lei sociológica da diminuição crescente do quantum despótico), bem colhido pela ciênica, mostrou a enormidade de tais erros cometidos na história, nos romanos e em S. Tomás. Ver Pontes de Miranda, Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, p. 113-126, 1983.

a6) Lei, razão e vontade.
O ponto de partida de toda lei são a razão e a vontade do legislador. No caso específico da lei humana, tal ponto inicial é a vontade do homem, regulada pela inteligência. Tal razão e vontade manifestam-se por palavras e por fatos; cada qual escolhe como fim aquilo que realiza por obras (como no caso do costume, multiplicação repetida de atos humanos). Assim, o costume é uma espécie de intérprete da lei (97, 3, c). Aliás, o próprio dirigente apenas pode fazer lei por estar a gerir a pessoa da multidão; o costume é algo assim como o consenso de toda a multidão, manifestado livremente acerca do que tenha de ser observado (97, 3 ad 3).
O valor (bonitas) de uma lei mostra-se por sua consonância com a razão (98, 1, c). Perfeita é a capaz, por sua suficiência, de conduzir ao fim e não apenas de cooperar para se chegar lá (ibidem). Ora, o fim da lei humana é tranqüilidade temporal do Estado, a que a lei chega pela coibição exterior dos atos perturbadores de tal estado de paz (a lei divina tem fim mais alto: conduzir o homem ao destino da felicidade eterna — ibidem).
Pode uma lei não ser absolutamente perfeita, mas sê-lo segundo o aspecto de certa fatia do tempo; assim, os preceitos dados à criança não são perfeitos dentro de uma perspectiva absoluta, mas são perfeitos relativamente à condição daqueles aos quais tais preceitos se destinam (98, 2, ad 2).
Compete exclusivamente ao dirigente, por sua autoridade, instituir a lei. Pode contudo, através de terceiros, promulgar a lei instituída; a lei antiga foi instituída por Deus e promulgada através dos anjos (98, 3, ad 3).
Qualquer que seja a lei, pode ela pôr-se a dois tipos de pessoas: aos duros e orgulhosos, que por meio delas são comprimidos e domados (compescuntur et domantur); e também aos bons, que por ela guiados, são ajudados para conseguir o que pretendem (qui, per legem instructi, adjuvantur ad implendum quod intendunt — 98, 6, c).
a7) Lei e preceito.
A lei contém mandamentos; cuida-se de preceito obrigatório a respeito de algo a ser feito. Tal necessidade de algo que deve ser feito provém de algum fim. A lei determina o que é necessário e oportuno, a certo fim (quod est necessarium vel expediens ad finem) — 99, 1, sed contra e corpus. O fim do preceito é a caridade, como diz São Paulo; em verdade toda lei tende a constituir a benquerença dos homens entre si ou dos homens para Deus (98, 1, ad 2). De mais, contém a lei certa disciplinação, e toda disciplina é de conteúdo moral (pertinet ad mores) — 99, 2, sed contra.
Na vigência do Antigo  Testamento a determinação de um preceito geral acerca da observância de justiça entre os homens era feita através dos "preceitos judiciais" — 99, 4, c. Tanto estes como os preceitos morais são preceitos de viver como ensina S. Agostinho (sub praeceptis vitae agendae) – 99, 4, ad 1. Os atos de justiça em geral pertenciam, no Antigo  Testamento, aos preceitos do campo moral, mas suas particularizações (determinativo [...] in speciali) estão no campo dos preceitos judiciais (99, 4, ad 3). A realização de um juízo significa a execução da justiça que, por seu turno, se configura pela aplicação da razão a particularidades determinadas. Daí distinguirem-se na Velha Lei os preceitos cerimoniais (culto), os preceitos morais e os preceitos judiciais — 99, 4, ad 2.
Observação. Está aí mais um acertado relance tomista (embora não aprofundado devidamente no decorrer da sua obra) sobre a diferença existente entre moral e direito. E outros textos encontraremos em que se destrinçam os três diferentes processos sociais de adaptação: religião, moral e direito. É o caso por exemplo, da I, II, 99, 4, ad 2, acima citado.

Há diferença, aliás assinalada por Aristóteles, entre o justo moral e o justo legal: o primeiro provém da razão e o segundo deriva-se da regra jurídica particularizante (unum quidem secundum regulam rationis, aliud autem secundum regulam legis determinantis — 99, 5, c).
Cumpre atender-se na Antiga Lei para a diferença entre os mandados, que não dizem respeito propriamente ao que é devido, mas àquilo que é melhor; os preceitos (não matar etc.), que são pontos precisos de moral; e finalmente o devido oriundo de determinação legal que, em assuntos humanos, está nos judiciais, e nas coisas divinas nos cerimoniais.
Anotação. Aqui, a despeito do esforço do Santo, surge confusão entre religioso, moral e jurídico. Os fatos (relações sociológicas) não permitem esse trançado solto nem esse livre discorrer lógico sobre as realidades. Impedem-no o método e os resultados das ciências particulares, para que se não perturbe o avançar seguro, em conhecimento. Ver, PONTES DE MIRANDA, Sistema de ciência positiva do direito, tomo IV, 5-190.

a8) Lei e justiça.
Destina-se a lei humana à comunidade entre cidadãos, isto é, dos homens entre si. Dá-se isto por meio de atos exteriores, com que os homens se relacionam uns com os outros. Tal externação constitui a justiça (pertinet ad rationem justitiae), que é o que propriamente dirige as comunidades humanas. Assim é que a lei humana só propõe preceitos acerca dos atos de justiça. E quando abrange atos de outras virtudes, tal não ocorre senão enquanto assumem elas o caráter de justiça (inquantum assumunt rationem justitiae) — 100, 2, c.
Anotação. O Angélico, metafísico que é, ora fala de imposição ora de proposta da lei. Os metafísicos, como os retóricos, continuam pensando que é sem maior relevância para o conhecimento o uso de "sinônimos". A Ciência tem de respeitar a linguagem, pelo que ela representa de história e de sociologia. A própria regra jurídica dispositiva (não cogente), ao incidir sobre os fatos da vida, deixa á liberdade apenas o espaço por ela mesma permitida, e não outro qualquer,  ao bel prazer das pessoas (ver Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do direito, 2a ed., 1972, tomo I, página 309).
A não ser assim, enleia-se a inteligência num cipoal sem fim. A tendência atual, para efeito de síntese de conhecimento com sentido, é a pasigrafia[10].
Outro pormenor: o Santo não percebe que qualquer virtude, e mesmo os fatos religiosos  de elevadíssimo conteúdo, podem ser colhidos pelo Direito: às vezes a Vida (para a vita agenda) leva o homem a dar a fenômenos morais e religiosos o conteúdo de definição indiscutível de conveniência. Exemplos: defesa da moderação em bebida alcoólica, defesa dos excessos de sexo, defesa do organismo da mulher e da criança no trabalho, liberdade de crença, liberdade de culto, feriado em dias santificados (segundo diversas religiões) etc.

Para que alguém conviva adequadamente em certa comunidade é de mister mantenha: 1) Conduta correta relativamente ao dirigente da comunidade; 2) Acertado comportamento em relação os outros membros da comunidade (consocios et comparticepes) — 100, 5, c. Ora, a lei humana cuida da comunidade enquanto tal e a lei divina forma uma certa comunidade ou república de homens segundo a orientação de Deus (sub Deo) — ibidem.
A destinação da vida humana, e da sociedade, é Deus. Nada mais grave que o afastamento de Deus; como gravíssimo é, num exército, que o soldado deixe de subordinar-se ao chefe (110, 6, c).
Anotação. Esta passagem do Santo é uma amostra útil para se aquilatar a dose de quantum despótico que há na religião, que é um processo social (inapagável, aliás) de adaptação. Com efeito, o critério religioso de adaptação vai pelo mais profundo caminho do espírito, que é ultra-sensível, o supra-humano, e infinito. Ora, o conceito de Deus varia, e é socialmente formado em pedaços diferentes de espaço-tempo. Em religião, tudo é grave, porque profundo. Dizer-se que o afastamento de Deus é gravíssimo, e variando o conceito de Deus, na vida prática, já se vê a que excessos se pode chegar com o zelo por Deus. Construtiva e negativamente, mostra a história de todos os tempos. A busca dinâmica de uniformização nessa matéria é de fortes consequências. Pense-se, sociologicamente, nas grandes conversões dos fundadores de ordens religiosas e a transformação social que acarretam (S. Domingos, S. Francisco, S. Inácio de Loyola e tantos outros). Pense-se também nas perseguições aos cristãos, na Inquisição, nas Cruzadas; mais próximas aos nossos dias, recordem-se as lutas da Irlanda do Norte ou do Irã etc.

Pela intenção de qualquer legislador o fim último é sempre o bem comum; em seguida vem a sua atenção para com a justiça e a virtude , para consecução e conservação do bem comum (110 , 8 , c). De outro lado, o modo de se praticar a justiça contida em algum preceito é o modo próprio do direito, sem necessidade que o agente tenha o próprio hábito da justiça. De modo que o hábito do bem (- virtude) é elemento exterior à observância da lei jurídica.  Diz o texto, pois, que o modo virtuoso de ser não pode ser objeto de preceito; o que sim, há, é norma para uma ação ter de ser segundo a ordem jurídica vigente, mas não que tenha de ser a prática constante do bom hábito da justiça. (Non ergo modus virtutis cadit sub praecepto (100, 9, sed contra). Modus faciendi actum justitiae qui cadit sub praecepto, est ut fiat aliquid secundum ordinem juris: non autem quod fiat ex habitu justitiae) (ibidem, ad 1) .
Brotou do costume que reis e príncipes (que convém sejam reverenciados pelos súditos) sejam adornados com vestes mais caras, e possuam casas mais amplas e mais belas (102, 4, c).
Anotação. Como visto, sabe S. Tomás que um costume pode ser regra jurídica. Mas não se dá conta de que a regra jurídica sobre vestes elegantes colhe a moda; e que a referente à residência espaçosa e bonita colhe economia e estética. Nem tudo isto é redutível monisticamente à moral. Tudo existe, muita vez, com detrimento da religião. São critérios de vivência, diversos, no interior de uma mesma pessoa, dentro de um mesmo grupo humano. É evidente ser o direito um processo social de adaptação diverso da moral. E a consciência de tal diferença é da maior importância prática (para a política jurídica e para a aplicação do direito).

a9) Lei e moral.
Os preceitos, cuja força vinculativa é centrada na razão (isto é, ditados por ela), são os preceitos morais. Aqueles, entanto, cuja força obrigatória não decorre da razão mesma, mas em que devido e indevido advêm da instituição, divina ou humana, são diferentes dos preceitos morais (do Antigo  Testamento): os que ordenam o homem a Deus são os "cerimoniais", e os que ordenam homens entre si são os "judiciais" (104, 2, c).
Todos os preceitos do Antigo  Testamento que regulam o homem consigo próprio (não em relação ao próximo) são de índole moral pois a razão, princípio da moral, tem no indivíduo as mesmas funções que o príncipe e o juiz têm no Estado (104, 1, ad 3). Ao dirigente incumbe não apenas julgar os casos trazidos a juízo, mas igualmente ordenar acerca de contratos voluntários e de tudo mais relativo à comunidade do povo e ao regime (104, 1, ad 1).
Vê-se por esse trecho que S. Tomás percebe, embora um tanto de longe e com os vícios de acentuado regalismo do seu clima jurídico, haver profunda diferença de planos entre o direito processual e o direito material. Percepção notável em pleno século XIII, por parte de um metafísico e teólogo.

Esses preceitos judiciais da Velha Lei têm a precípua função de disciplinar a situação daquele povo segundo a justiça e a equidade (104, 2, c). A justiça é por si de observância perpétua, mas a determinação daquilo que é justo, segundo instituição humana ou divina, tem de variar de acordo com os estados diversos das diferentes pessoas. Eis por que os preceitos judiciais do Antigo  Testamento já não obrigam nos nossos dias (104, 3, ad 1).
a10) Abrangência da lei.
A lei é algo assim como a arte de instituir a vida humana (quasi ars hamanae vitae instituendae vel ordinandae — 104, 4, c). Há quatro tipos de relações que se têm de ordenar na vida de um povo: entre os dirigentes do povo e os súditos, dos súditos entre si, entre o povo e os estrangeiros e, finalmente, as relações entre pai e filhos, mulher com marido e senhor com os servos. Assim é que no Antigo  Testamento se encontram preceitos atinentes a essas quatro classes de relações (104, 4, c).
Naquele tempo era havida como religiosa e eticamente correta, talvez por todo o orbe, a relação senhor-servo ou senhor-escravo.

O número de relações entre os homens é infinito, mas podem ser reduzidos a algumas, em número limitado, conforme essas várias e diferentes classes (104, 4 , ad 1).
Os estudos acurados, resultado de pesquisa profunda, de Pontes de Miranda pelo método indutivo experimental, descobriram as principais relações humanas; estão elas nos 7 principais processos sociais de adaptação, a saber Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência.

a11) Lei e regime político.
A beleza da harmonia de um povo depende de boas autoridades constituídas (ex principibus bene institutis — 105, 1, sed contra), que façam boas leis (ibidem). E a melhor constituição da autoridade é a mista: um só a dirigir segundo o valor da sua virtude; sob ele alguns homens virtuosos estarão a colaborar na direção, de tal jeito porém que possam ser escolhidos dentre todos, e sejam por todos eleitos. É o melhor regime, de que advirão as melhores leis (105, 1, c). Assim a lei divina deixou estabelecido para viger entre os hebreus.
O melhor regime para o ser humano é o que busca a prática simultânea de democracia, liberdade e igualdade crescente. 
Como já vimos anteriormente, está aí o relevante tema do Direito das Gentes e do direito constitucional, tão vital para a vida de qualquer povo. O grave problema, complexo, difícil, e com soluções científicas e técnicas, precisas e concretas, está tratado a fundo em obras de um brasileiro, gênio dos mais poderosos — Pontes de Miranda, Democracia, liberdade igualdade; Fundamentos atuais do direito constitucional, Comentários à Constituição Brasileira de 1967, com a Emenda 1/69. 6 v. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.

a12) Lei e evangelho.
A Lei Nova (Evangelho) não vigeu em todos os tempos da história; em qualquer lugar do mundo o gênero humano é o mesmo, mas sem que seja idêntico na sucessão temporal. Assim o Evangelho (a lei Evangélica) é proposta em todos os lugares, mas em tempos diversos (103, 3, ad 2).
A inteligência genial do Santo fá-lo ver a relatividade que há no tempo. É reconhecimento da evolução em sentido preciso. Não lhe foi dado entanto perceber que espaço e tempo são inseparáveis, e que não são realidades em si próprias, mas aspectos da energia em contínua mutação. Espaço-Tempo-Energia, eis o Real de que podemos enunciar proposições com sentido, verificáveis, experienciáveis. Religião, Moral, Arte, Ciência, Direito, Política e Economia são as principais energias sociais (que contêm a física e a biologia). A ciência é unificável, note-se.
         
A Nova Lei (Evangelho), eis o que há de mais perfeito. Não mudará nunca. O estágio dos homens (status hominum) pode porém variar, reagindo mais perfeita ou mais imperfeitamente em relação à mesma Lei. Assim o estágio da Nova Lei (status novae legis) diversifica-se, segundo diversos lugares, tempos e pessoas, enquanto a Graça do Espírito Santo trabalha diversamente em pessoas diferentes; não é de prever-se contudo um tempo futuro em que a Graça do Espírito Santo opere maiores perfeições que as até agora operadas, em que o máximo foi em relação aos Apóstolos (106 , 4 , c).
a13) Lei e direito.
A lei não se confunde com o próprio direito. Este é objeto da justiça, ao passo que a lei é obra da prudência (II, II, 57, 1, objeção 2, premissa menor: lex autem non est objectum justitiae, sed magis prudentiae). Assim como algo feito pelo artífice existiu antes na mente dele (a regra da arte manual), assim igualmente: a obra justa realizada exteriormente por determinação da razão, tem antes de si a idéia, com prévia existência na mente, a título de regra de prudência: illius operis justi quod ratio determinat quaedam ratio praexistit in mente, quasi quaedam prudentiae regula (II, II, 57, 1, ad 2). Ora, a lei é justamente a transposição escrita dessa regra da prudência (que existe na mente antes de se realizar o ato a ela correspondente). A lei é, nas palavras de Isidoro, constituição escrita. Por essa razão, a lei não se identifica com o direito propriamente dito. É, antes, uma ideia a fulgurar no direito — lex non est ipsum jus, proprie loquendo, sed aliqualis ratio juris (ibidem , parte final).

b) Dos vários tipos de Lei (I, II, 91, 1 – 6).
Santo Tomás estuda na I, II, 91, seis tipos de lei: a lei eterna, a lei natural, a lei humana, a lei divina (do Antigo  e do novo Testamento) e a lei do pecado. Cada uma delas terá depois capítulo à parte .
Lembra que a lei é ditame da razão: prática (mera extensão da razão especulativa), ou seja, a razão prática do governante estatal (91, 1, c). A razão prática (ou inteligência prática, ou intelecto prático) tem por objeto o bem que se dirige à obra, sob o aspecto de verdadeiro. Conhece a verdade, como a razão especulativa. Sua especificidade funcional consiste porém em ordenar à obra a verdade conhecida (I Pars, 79, 12, ad 2). Manifesto é que Deus governa o mundo. A ideia pela qual o mundo é dirigido por Deus é verdadeiramente lei (tal como conceituada na sua "essência", na q. 90). Nada obsta a que as coisas sejam previamente sabidas por Deus. Só que, quanto a Deus, a lei se identifica com a sua própria essência (1 , ad 3).
Há em nós também alguma lei natural. Tudo é medido e regulado pela lei eterna, porque participa dessa medição e regulação. Ela está como que impressa nas criaturas fazendo com que surjam nelas as inclinações para os seus atos e fins. Ora, essa participação na lei eterna por parte da criatura racional, como o homem, é exatamente a lei natural. Lei natural vem a ser pois uma espécie de luz da razão natural mediante a qual discernimos do bom o ruim; é uma impressão da luz divina em nós. Por outras palavras: lei natural é a participação da lei eterna na criatura racional (participatio legis aeternae in rationali creatura) — 91, 1, c.
Respondendo às suas próprias objeções esclarece mais Santo Tomás que a lei natural não é algo diverso da lei eterna; é a participação dela (2 , ad 1). Na criatura racional, como o homem, essa participação dá-se intelectual e racionalmente (intellectualiter et rationaliter). Ora, como nas demais criaturas (não racionais) inexiste razão, e lei é algo da razão, e já se vê que nos irracionais a lei natural só se pode chamar lei por semelhança (per similitudinem) — 91, 2, ad 3.
Mas, postos esses princípios da lei natural (participação em nós da lei eterna), a razão humana prática, tomando-as por princípios gerais indemonstráveis, desce a mais particularidades e baixa regras a seu respeito. Assim, conservadas as bases da lei natural, essas particularizações são encontradas pela razão humana para particularizações normativas; formam a lei humana. Como mostra Cícero, o início do direito partiu da natureza e daí é que pormenores vieram a firmar-se pelo costume por força da razão. A partir de tal momento o temor da lei e a religião, selaram-nos como norma (91, 3, c).
Como os dados da ciência positiva de hoje sabemos que tudo parte da natureza e nela está. Mais preciso é o conceito de direito como processo social de adaptação caracterizado não pela coação e sim pela segurança extrínseca, independentemente do que sentem e pensam as pessoas, com ou sem temor[11].


Essas particularizações direcionais das coisas, empreendidas pela razão humana, estão contidas na lei eterna, e mostram a participação da razão nessa mesma lei eterna (3, ad 1). Exemplo típico são as sanções legais encontradas pela razão humana (ibidem). Atente-se portanto a que a inteligência humana não é propriamente a medida das coisas (regula rerum). Ao contrário, princípios nela naturalmente impressos (naturaliter indita) é que são algumas regras gerais e medidas daquilo que deverá ser feito pelo homem. Disto, sim, a razão humana é medida e regra, a despeito de não ser medida e regra da própria natureza (91, 3, ad 2).
Decerto a medida teria de ser exata, mas a razão prática trabalha com o operacionável, sempre contingente e singular. Claro, pois, que a razão prática não tem a infalibilidade da razão especulativa. As leis não são dotadas, como conclusões da razão prática, daquela certeza gerada pela demonstração das ciências. Nem se há de mister tal grau de certeza em todas as coisas. Importa, sim, o possível, cada coisa em seu gênero (91, 3, ad 3).
Escusado seria sublinhar a relevância gnosiológica dessa premissa tomista, que é porém errada. O conceito de necessário, em S. Tomás (apodítico, a priori), é o atemporal obtido por operação da mente, segundo a ciência. A diferença entre o (mais) concreto e o (mais) abstrato é apenas de grau: jeto mais espesso ou jeto mais fino. Uma das mais importantes ilusões do metafísico é a de pensar que, ao trabalhar com jeto mais fino, está no ápice da razão científica, só porque aí seja mais exato e mais claro o raciocínio formal.
Já quanto ao "possível, cada coisa em seu gênero", tocantemente aos atos ilícitos (penais ou não), cabe estudo aprofundado nos sistemas jurídicos da atualidade do conceito de estado de necessidade. É de encarecer-se o proveito jurídico da aplicação desse "princípio" quando o aparelho estatal se põe a investigar o cometimento de ilicitudes penais; até  muita garantia da própria constituição tem de ceder o passo ao interesse público. A matéria é delicada para os estudiosos da própria ciência jurídica.

Também a lei divina positiva é indispensável. Para que constem expressamente ao menos alguns pontos em que o homem não pode errar. Impossível ao homem acertar sempre em relação a Deus, seu fim último; questões há aí a excederem as puras forças da razão natural. Ao homem não é dado por sua própria razão natural alcançar o que se passa nos movimentos interiores, latentes. Só pode emitir juízo a respeito dos atos exteriores, aparentes. Insuficiente foi portanto a lei humana para regrar o homem interna e externamente. Males interiores somente pela superveniência da lei divina é que puderam ser coibidos (91, 4, c).
Note-se a diferença entre religião e direito, vista pelo Santo. Inclusive há, esboçada, a ideia (científica) de ser um caminho da Religião, e outro o da Ciência, sem a "irracionalidade" da Religião (ou da Arte, etc.). São apenas critérios diferenciados. Combinações específicas de pensamento — digamos. Numa palavra: diferentes processos sociais de adaptação.

De modo que através da lei divina positiva elevou-se ainda mais o nível de participação do homem na própria lei eterna — que é a própria essência de Deus (4, ad 1).
Há a lei divina do Antigo  Testamento e há a lei divina do Novo Testamento, funcionando a primeira como pedagogia da segunda. A lei antiga era a lei do temor (como de crianças) e a Nova Lei é a lei do amor por eficácia da Graça de Cristo (lei de adultos). Assim como são diferentes os mandamentos de um pai de família em relação a crianças e adultos, aqueles imperfeitos e perfeitos estes, assim fez Deus com a história dos homens (5, c a ad 1). Não se dá o mesmo com a lei natural, adequada tanto para os mais imperfeitos como para os mais perfeitos. Explica-se então o fato de ser uma só a lei natural e dupla a lei divina (5, ad 3).
Há contudo no próprio homem uma outra lei. Ela contraria a própria lei natural. Trata-se da lei do ímpeto da sensualidade, lei do pecado, lei da acendalha, do chamiço (lex fomitis), ímpeto este tanto mais irracional quanto mais se alonga dos ditames da razão e mais se assemelha aos animais. É lei da inclinação da sensualidade. Nos animais brutos ela realiza o conceito de lei, mas no homem é um desvio da razão e, pois, uma contrariedade à lei. Tal lei da sensualidade ou do pecado participa do conceito de lei por um aspecto: é a que realiza a pena imposta ao homem pela justiça divina em consequência da desobediência à lei primitiva de Deus, antes do pecado original. Eis a lei pela qual o homem perde a sua dignidade primitiva (91, 6, c). Com isso ficou o homem inclinado ao mal (ad 1). Cuida-se portanto de lei pelo aspecto de ser consequência do erro inicial do homem (ad 2). Essa mesma inclinação para a sensualidade é, nos brutos, lei em sentido comum porquanto neles a sensualidade se destina ao bem comum (como a conservação da espécie e do próprio indivíduo). A lei natural no homem (no qual é contrariada pela lei da sensualidade), organiza diversamente a sensualidade: submete-se à razão. Essa acendalha (fomes) rompe as portas da razão (exit rationis ordinem) — 91, 6, ad 3.
Está aí, pensamos nós, ponto delicado de religião, carregado de interesse sociológico, com cerne verdadeiro de proposição válida perante a ciência (psicanálise, parapsicologia, criminologia), mas que tem de passar por revisão na sua interpretação ascético-mística. Não é acertada a brusca separação que a Escolástica e tantos outros movimentos filosóficos introduzem entre inteligência e instinto. A despeito do interesse da questão para psicologia, e ascese religiosa, é compreensivelmente grande a reação das religiões contra a revisão da interpretação que coincide com a tomista, ou que muito se  lhe assemelha por trilhar os caminhos do racionalismo — muito há que fazer para as gerações atuais adentrarem as vias do método indutivo experimental.      
parq (2a parte?)
c) Da eficácia da Lei (I, II, 102, 1 -2).
Diz Santo Tomás de Aquino, estudando os efeitos da lei, que um deles é fazer bons os homens (que é esta a intenção de qualquer legislador, como ensina Aristóteles), e o consegue por meios dos seguintes três atos: proibir, permitir, punir.
Como a lei é uma determinação da razão dos governantes mediante a qual são governados os súditos, a primeira virtude do súdito é sua submissão ao dirigente estatal (do mesmo modo como as virtudes de fortaleza e temperança se subordinam à razão). Assim, a primeira eficácia da lei é provocar a virtude do subordinado. Sendo a lei daquelas que induzem ao bem comum, de acordo com a justiça divina, faz ela eclodir a virtude de modo absoluto. Se ao contrário a lei não conduz ao bem comum, mas leva ao útil ou agradável ao legislador mesmo, ou algo que repugna à justiça divina, tal lei não faz bom o homem segundo o critério absoluto.
Admira-se o louvável intento de Santo Tomás de Aquino em sublinhar o interesse geral de todo o Povo pelas condutas éticas. Mas, na realidade das leis e do Direito integral, cumpre levar-se em linha de conta não coincidirem sempre os mundos jurídico e religioso ou moral. Esta prudência intelectual na interpretação e na aplicação das regras jurídicas vem a ser exigência da liberdade de pensar em face do mundo não jurídico. O estudioso do direito (portanto da "lei") há de estar continuadamente sem compromisso mental com os demais processos sociais de adaptação estranhos ao direito mesmo e à ciência, como Religião, Moral, Artes, Política, Economia, Moda etc.

Fá-los bons a lei, diz o santos, para aquele regime específico em que a lei é ditada. Assim, será ladrão bom aquele que age de modo adequado ao seu fim (art. 1, corpus). Quanto mais uma determinada lei induzir os homens à prática da virtude, tanto melhores serão os homens que a tiverem de cumprir (ibidem, ad 1).
A lei não pressupõe sejam bons aqueles aos quais ela se dirige, senão que muitos são levados a cumpri-la por temor das consequências nela previstas para a inobservância (ex timore poenae) — 1, ad 2. Impossível, de outro lado, a consecução do bem comum se não forem virtuosos os cidadãos, pelo menos aqueles a ocuparem postos de mando (1, ad 3). Quanto à lei ditatorial (lex tyrannica), essa, contrária à razão, não é lei; é perversão de lei (perversitas legis) — 1, ad 4. Quem se subordina a uma lei ditatorial irracional só é bom para esse mesmo regime ditatorial (ibidem).
Enunciado é ditame da razão em forma de enunciado; a lei é um ditame da razão em forma de preceito racional, pois, que se presta assentimento ao preceito de lei.
No âmbito dos meros desejos, e na esperança da maioria das pessoas de cada Povo, a lei seria sempre racional no sentido de estar toda impregnada de aplicação da ciência. Na  realidade dos fatos, contudo, muita vez a lei vem a se elaborada, aprovada, promulgada e publicada por interesses particulares de alguém. Os casos de corrupção nesta matéria são frequentes. Nem deixa por isto de ser lei.

 O preceito liga-se aos atos humanos, em cuja disciplinação se resumem os quatro seguintes momentos: preceituar a prática de bons atos, proibir os atos contrários às virtudes (os vícios), permitir atos relativamente indiferentes (nem muito bons nem muito maus — vel parum boni vel parum mali) e, finalmente, punir as desobediências (o elemento legal conducente à obediência é o temor da pena) *— 2, 2, c. Quando, por força embora do medo da pena, se vem a formar o costume da observância da lei, por vezes se chega à prática agradável e voluntária do preceito legal (92, 2, ad 4).
d) Da lei eterna (I, II, 93, 1 – 6).
Como vimos anteriormente, para o santo aquinatense toda e qualquer lei não contrária à razão está contida virtualmente na lei eterna. Trata-se portanto de tema da maior importância no pensamento tomista.
Desenvolve-a ele em seis pontos: o que é a lei eterna, se a lei eterna é de todos algo conhecido, se toda e qualquer lei se deriva dela, se a própria divindade se submete à lei eterna, se são a ela subordinadas as coisas naturais e se lhe sujeitam os assuntos humanos.

A lei eterna é a própria inteligência infinita de Deus. A relação de ordem, pré-existente na mente de quem ordena ações, é a norma mesma dos que são subordinados à ordem respectiva. Essa ideia ordenadora (ratio ordinis) no artífice chama-se "técnica" (ars), e denominar-se lei no governante. Ora, Deus é o Criador e Supremo Governante de todas as coisas, de todas e de cada qual das criaturas. A inteligência de Deus Criador é a causa exemplar ou ideia da totalidade do mundo criado; a mesma infinita sabedoria, enquanto Motora Transcendente de tudo para os seus devidos fins, tem a categoria de lei eterna. De jeito que a lei eterna é pura e simplesmente a inteligibilidade da divina sabedoria, na qualidade de diretora de todos os atos e movimentos (93, 1, c). O entendimento divino não é como o da criatura (dimensionado pelas coisas, em proporção com elas), pois ele é a medida mesma de tudo. A coisa, qualquer coisa, em tanto é verdadeira (ou seja,  tanto mais possui de verdade) em quanto imitar a inteligência divina. O entendimento divino é verdadeiro por si próprio (secundum se). A inteligibilidade divina (ratio eius) é a própria verdade (93, 1, c, ad 1 e ad 3).
Tocantemente ao conteúdo da lei natural, a lei eterna é de todos conhecida; está ao alcance de qualquer ser humano.
Este pensamento do santo é metafísico; pressupõe a universalização das civilizações eruditas que, porém, não é verdadeira. Pense-se nas crianças nascidas nos ambientes criminosos ou nas crescidas em tribos de povos habituados às lutas incessantes, e sem letras. Muitos há sem essa capacidade de percepção.

[Algumas conclusões].

Todo conhecimento da verdade é uma certa irradiação e participação da lei eterna, verdade imutável. Todo ser humano conhece a verdade, ao menos naquele mínimo — os princípios gerais e comuns da lei natural. Nas minúcias restantes, sim, é que há graduação de conhecimento (2, c). Claro, tal conhecimento não é direto; ocorre nos efeitos da criação divina, no mundo criado (2, ad 1).
De mais, toda lei é derivada da lei eterna. Tudo quanto se move é movido por um motor anterior. Assim é na arte arquitetônica, assim é no Estado (o Rei é o movente). Assim ocorre a toda lei humana, que é diretiva; a direção primeira vem da inteligência divina — o mesmo que lei eterna. Logo, toda lei, se conforme à reta razão, é participação da lei eterna (93, 3, c). A própria lei do pecado (lex fomitis) participa da lei eterna sob um aspecto: enquanto pena imposta pela justiça divina (3, ad 1). A recíproca é verdadeira: a lei humana, se afastada da lei eterna, enquanto alongada da razão, é lei iníqua. Não realiza em si o conceito de lei e sim de violência (3, ad 2). Quando a lei humana algo permite que a lei divina proíbe, não se haverá de dizer que aquela deixa de ser participação da lei eterna; significa tão somente não poder ela intrometer-se em assuntos mais altos porquanto lhe é possível acompanhar perfeitamente todo o conteúdo perfeito da lei eterna. Tal permissividade da lei humana não pode interpretar-se como aprovação de algo vedado pela lei divina; é reconhecimento da sua incapacidade de reger assunto tão grandioso (3, ad 3).
Vê-se uma vez mais o influxo religioso no pensamento nascido na metafísica. Anda longe do alcance da liberdade científica e do emprego do método indutivo experimental.

Evidentemente a própria essência divina e tudo mais quanto em Deus possamos distinguir, não se pode dizer sujeita à lei eterna; são a própria lei eterna (4, c). Os efeitos da vontade divina, as criaturas, estas sim se subordinam à lei eterna (4, ad 1). Note-se ter sido Jesus Cristo gerado pelo Pai, e não criado (Ele é Deus); somente a natureza humana de Cristo é que estava sujeita à lei eterna (4, ad 2).
Subordina-se à lei eterna toda a enorme multiplicidade das coisas contingentes da natureza. O homem não pode impor lei ao mundo irracional por não atuar o irracional por si mesmo; ao ser racional, a si . pode o homem impor leis, imprimindo o seu preceito nas mentes, como regra de ação, como norma de agir (5, c).
O que o homem assim faz, mostrando (denuntiando), realiza Deus em todas as criaturas imprimindo nelas os princípios dos atos de cada qual. Logo, as criaturas irracionais são movidas pela divina providência de modo diverso por que o são os racionais; estes pela inteligência e aqueles não (ibidem).
As criaturas irracionais participam destarte da inteligência divina, enquanto a ela obedecem (ocorre algo de semelhante com os nossos membros: não participam da nossa razão, mas a ela obedecem (ad 2). Os próprios defeitos e falhas, encontradiços no mundo da natureza, não provam estar esse mundo alheio à inteligência de Deus. É que, considerada a causação universal, não ocorre a desordem que nos aparece quando consideramos apenas causas particulares (ad 3). Todos os defeitos estão, também eles, subordinados à lei eterna (ibidem).
Este é um trecho obscuro para os que pensam um pouco mais cientificamente, com o método indutivo experimental.

Quanto às leis humanas, estão todas subordinadas à lei eterna por ser Deus o magno ordenador e administrador da paz universal na forma do conceito agostiniano (93, 6, sed contra). A lei humana é feita por e para criaturas racionais, as quais possuem a natural inclinação de sotopor-se à lei eterna; é-nos inata a disposição para a virtude, como ensina Aristóteles.
A despeito de ser este o pensamento de dois gênios (do estagirita e do aquinatense) parece contrariar ele os dados da ciência positiva ao  afirmar que os seres humanos têm natural inclinação para a vida  das leis divinas e para uma vida virtuosa.

 E as criaturas irracionais são naturalmente movidas a conformarem-se com a mesma lei eterna. Claro está ser inclinação dos homens repleta de imperfeições, tanto por causa dos vícios transviantes como também por efeito das paixões impedientes (nos seres humanos bons há a especial ajuda da Graça, com que se roboram pela fé). A todos entretanto a lei eterna inclina para o bem (93, 6, c). O pecado, aliás, não consegue apagar todo o bem existente na natureza (ad 2).
A lei eterna tem a específica eficácia de obrigar no interior do espírito (in foro conscientiae) inclusive em relação à lei humana, quando justa (I, II, 96, 4, c).
As leis religiosas e as leis morais, sim, obrigam interiormente segundo a convicção da consciência e a formação do caráter (embora não seja assim com todos os seres humanos). Já as regras jurídicas, por mais específicas que sejam, justas ou não, incidem automaticamente sobre os fatos a que aludem e lhes dá o caráter de serem orientados de um modo ou de outro independentemente da vontade das pessoas a que se dirigem.

e) Da Lei Natural (I, II, 94, 1 – 5).
Na q. 94 dedica-se Santo Tomás ao estudo clássico da lei natural: o que é, quais os seus preceitos, se todo e qualquer ato virtuoso é de lei natural, se ela é sempre a mesma em todas as pessoas, se ela é modificável, se pode ser apagada da mente humana.
Não é um hábito a lei natural, no sentido aristotélico. Como uma proposição abstrata é produto da razão, assim também é constituída pela razão a lei natural. Hábito é aquilo pelo qual alguém atua. Apenas num sentido impróprio se poderia dizer hábito a lei natural: pelo fato de ela se manter habitualmente em nós. Realmente dá-se o contrário: lei natural é aquilo por força de que se forma o hábito (1, c).
A lei natural é para as operações humanas o que os primeiros princípios indemonstráveis são para a atividade demonstrativa da mente. Pluralidade de princípios indemonstráveis, pluralidade de preceitos da lei natural (art. 2, sed contra). Em ambos os casos, da razão prática e da razão especulativa, deparam-se-nos princípios evidentes, patentes por si mesmos (per se nota) pois neles o conceito de predicado está contido no conceito de sujeito. Exemplos: "impossível afirmar e negar a mesma coisa ao mesmo tempo"; "o homem é racional", "bem é o que é procurado"; "Há que se fazer o bem e evitar o mal". Este último princípio (da razão prática) é o fundamento de todos os preceitos da lei natural, que a razão humana apreende como o bem humano a ser conseguido. A primeira inclinação de qualquer substância é conservar-se no seu ser; assim o homem, relativamente à própria vida. Outra inclinação, fundamental em todo animal, é a junção macho-fêmea, comum a brutos e a seres humanos (geração e criação da prole). Outra inclinação natural, agora específica dos seres humanos, é a de poder conhecer (inclusive conhecer a Deus), e de viver em sociedade. Segue-se pois, pela lei natural, que o homem tem de evitar a ignorância e precisa não prejudicar os semelhantes etc. (94, 2, c). Sem dúvida, um só é o preceito natural primeiro; mas as suas derivações são múltiplas (ad 1). Há na lei natural uma como que só raiz inicial (ad 2). Isto se explica pela unitariedade da razão (ad 3). Sob a lei da razão está contido tudo o quanto se pode por ela regular.
Cremos estar aqui um dos maiores males do racionalismo, como o de S. Tomás e outros. De princípio abstrato, isto é, logicamente estruturado com frágeis materiais do real, arma-se um arcabouço que começa pelo cimo; do pináculo lógico-formal, pretende-se a dedutividade do Real. Fácil perceber que os erros e os choques de toda ordem com a realidade serão uma constante. Daí os "remendos" de que continuamente tem de lançar mão o metafísico (muitas vezes vaidoso das suas "brilhantes subtilezas"). Daí também a subreptícia mas efetiva disposição do racionalista ao despotismo. Parece estar nesse quadro uma das explicações das ideologias de qualquer natureza.

Toda virtude é natural, como ensina Damasceno; assim, toda virtude se enraíza na lei natural [12]. Todo ser se inclina a atuar de conformidade com a sua forma específica (ex.: o fogo é levado a esquentar). Ora, como é específico do homem ser racional, claro está ser próprio do homem agir segundo a razão; e isto é a virtude. Logo, toda virtude é natural, é de lei natural. Note-se contudo que, considerados os atos virtuosos na sua singularidade, nem todos eles brotam espontaneamente da razão natural; não se dá em todos uma imediata inclinação da natureza à sua prática sendo necessária prévia inquirição racional para se poder ver a utilidade de certas coisas indispensáveis à vida (quasi utilia ad bene vivendum 3, c).
A lei natural é uma só, idêntica a si mesma em todas as pessoas. Todos somos inclinados a agir racionalmente por sermos da mesma espécie humana. Assim, tocantemente aos primeiros princípios, especulativos ou práticos, há a mesma verdade e a mesma retidão em cada uma das pessoas. Nem todos porém conseguem chegar por si às mesmas conclusões possíveis de serem deduzidas num e noutro campo: nem todos sabem que no triângulo a soma dos ângulos internos é igual a dois retos, nem todos sabem em que circunstâncias se há de fazer um depósito (com ou sem caução, por exemplo). E quanto mais concreto for o problema, maior será a possibilidade de variação das soluções (et hoc tanto magis invenitur deficere, quanto magis ad particularia descenditur).
Relativamente à razão prática, tal diferenciação, crescente à medida que caminha para os casos concretos (tanto no conhecimento como na retidão), deve-se aos impedimentos levantados pelas paixões, ou pelo mau costume ou pelas disposições ruins da natureza (ex mala habitudine naturae) 94, 4, c.
Essa passagem parece-nos típica do fenômeno em que a adaptação científica é obnubilada pelo ímpeto mais forte do critério religioso e moral. O Santo interpreta moralmente (e com fundo religioso, relativo à culpa original do homem) a dificuldade especificamente gnosiológica da adaptação humana. Em verdade, a dificuldade em se conhecer a singularidade das coisas não nos advém extrinsecamente de causas morais ou religiosas negativas. A questão explica-se por si mesma: é a extração do jeto e a exaustão do jeto extraído, sendo necessário sumo cuidado em se fazer parar o "impulso" (inclusive religioso) para se pôr entre parênteses o ob (franjas excessivas da anteposição) e as cargas do sub (no nosso eu podem estar a funcionar tapando a visão de fora, ou desviando o pensamento indicativo puro, outros critérios vitais de adaptação do ser social: expansão pelo ultrassensível, elevação pelo "bom", exaltação pelo "belo").

Embora no Evangelho haja muitos acréscimos à lei natural (por que há preceitos a ultrapassarem as forças da natureza), entanto muita norma, tanto no Novo como no Velho Testamento, é de lei natural (ad 1). É regra geral a todos comum, por todos havida como correta, que as inclinações dos homens sejam dirigidas de acordo com a razão (ad 3).
É imutável a lei natural, como ensina Graciano[13]: "o direito natural é, desde o começo da criatura racional, invariável no tempo e permanece sempre imutável" (94, 5, sed contra). Entenda-se todavia: não acontece verdadeira mudança quando ocorrem adições úteis à vida humana; tais acrescentamentos podem aparecer seja na lei divina seja na lei humana. Nada porém da lei natural se pode retirar, subtrair, abluir, tocantemente aos seus princípios. Particularidades, não conclusões, tiradas imediatamente dos primeiros princípios, podem efetivamente sofrer alterações e ainda assim apenas em pequeno número de pessoas. Como acima dito, deve-se tal alterabilidade anômala às depravações causadas na razão pelas paixões. De modo que não há alterabilidade alguma em ninguém nem quanto aos princípios mesmos da lei natural nem sequer nas conclusões próximas aos primeiros princípios (94, 5, c). Os acrescentamentos verificados na lei divina do Antigo Testamento explicam-se ou por serem "determinações" faltantes na lei natural, ou porque em alguns espíritos ocorreram corrupções da lei natural (ad 1).
Cumpre outrossim observar haver dois tipos de preceito natural: a) os que expressamente inclinam a natureza (ex.: não fazer mal a outrem); b) os que não proíbem o contrário e a razão descobre como boa tal solução contrária (ex.: o uso de vestes sobre o corpo, a discriminação de bens materiais, a escravidão). Em verdade o homem nasceu nu, em comunitariedade de posses e livre; contudo não é vedado pela lei natural que o contrário a essas soluções fosse adotado pela razão humana (ad 3). Logo, o fato de não serem em comum a propriedade das coisas e o fato de viger a escravidão não acarretam mudanças na lei natural, mas acréscimos por ela permitidos (ibidem).
Temos pois que a lei natural é insusceptível de ser abolida do coração dos homens em dois aspectos fundamentais: nos seus primeiros princípios (evidentes por si mesmos — per se nota) e nos seus princípios secundários extraídos dela como conclusões (exceção feita apenas de um que outro caso de errônea aplicação prática, por influência de alguma paixão desordenada sobre a operação intelectual). Já no tocante a particularidades pode acontecer que seja abolida da inteligência do homem por erros intelectuais por força da depravação dos costumes e por hábitos corruptos. Assim foi no tocante a se ter como não pecaminoso o latrocínio, ou como não pecaminoso ainda o ato sexual contra a natureza (6, c). parq

Conhecem-se efetivamente leis humanas postas contra a natureza; são leis iníquas, editadas contra os preceitos secundários da lei natural (ad 1 e 3).
Além da quaestio 94, toda dedicada ao estudo da lei natural, muitas passagens há ainda em Santo Tomás sobre o mesmo tema. Percorramos algumas.

A lei natural constitui-se  por uma certa participação da lei eterna em nós, ao passo que a lei humana deixa muito a desejar se comparada com a lei eterna. Muitos ilícitos proibidos pela lei divina e pela lei natural, deixa a lei humana passar sem punição, e faz concessões incompatíveis com ambas (96, a, ad 3).
Na lei divina, posta no Antigo  Testamento, muitos preceitos são de lei natural. Obrigavam assim a judeus como a gentios: os princípios evidentes dela bem como as conclusões imediatas (não os acréscimos de determinação específica) — 98, 5, c. Assim é que as leis contidas no Antigo Testamento ou coincidem com a lei natural ou são acréscimos de particularização dela; a lei natural é sempre respeitada pelas leis divinas (99, 2, ad 1).
Temos pois que a lei natural, nos pontos em que precisa de explicitação determinadora de minúcias, é complementada tanto pela própria lei divina como também pela lei humana. Quando essas determinações provêm da lei humana não se dizem preceitos da lei natural, mas sim de direito positivo. Postas tais complementações na lei divina, configuram-se preceitos diversos dos preceitos morais traçados no Antigo Testamento (99, 3 ad 2).
Quanto se derive da lei natural, pertence aos bons costumes; é moral. Só que alguns preceitos pertencem à classe daqueles que imediatamente a inteligência de qualquer ser humano vê — o que é de ser feito ou, ao contrário, o que não deve ser feito. São lei natural, de maneira absoluta. Mas outras regras há que exigem exame intelectual mais subtil, próprio dos sábios; demandam disciplinação, em que os menos favorecidos hão de ser guiados pelos mais sábios. Exemplo (no Antigo Testamento): "`a aproximação do ancião, levanta-te, e honra a pessoa do mais idoso" (100, 1, c). Caso de preceito de lei natural de imediata compreensão de qualquer pessoa, que não consta do Antigo  Testamento e que resume a lei do NovoTestamento, é o que manda amar a Deus e ao próximo (100, 3, ad 1).
Os preceitos morais constantes do decálogo (Antigo Testamento) têm a sua eficácia por força mesma da lei natural. Valeriam a mesma coisa ainda que não constassem de lei alguma positiva (100, 11, c).
Já no Evangelho (parte principal do "Novo Testamento") poucas são as normas legais, afora a própria lei natural. Pouco lhe acrescentam os próprios apóstolos. Os Santos Padres fizeram acréscimos; mas S. Agostinho recomenda que em tais acrescentamentos haja moderação para não tornar complexa e onerosa a vida em comum dos fiéis (107, 4, c).

f) Da Lei Humana (I, II, 95 -97).
Ao estudo da lei humana dedica S. Tomás três artigos, pesquisando-a em si mesma no seu poder (ou eficiência) e na sua mutabilidade. Como abaixo se expõe.
f1) A Lei Humana em si mesma considerada (95, 1-4).
Acentua Isidoro que o temor incutido pelas leis serviu para coarctar a audácia dos maus e tutelar os bons, pondo-se freio aos desmandos (95, 1, sed contra). O homem precisa de disciplina, indústria e expedientes para progredir, e abster-se do mal. É grandemente atraído pelos prazeres (os mais jovens sobretudo), sendo oportuna a disciplinação. Não é em todos que bastam as boas palavras e admoes   ntações, impondo-se a adoção de medidas carregadas de força e de temor, que os apartam do mal (per vim et metum). Essa disciplinação coatora fundada no medo da pena, é a disciplina da lei. Indispensável a lei, para bem da paz e da virtude. Sem lei e justiça o homem é o pior de todos os animais, como lembra Aristóteles (1, c).
Necessária também a lei para que se não deixe tudo à decisão dos juízes; mais fácil encontrarem-se poucos sábios que façam boas leis que muitos juízes que julguem acertadamente os muitos casos concretos. Mais, quem legisla cuida, muito tempo, em acertar com a lei, ao passo que os julgamentos dos casos concretos se proferem na casuística subitânea dos fatos. De outro lado, mais comumente se acerta mediante a consideração de muitos casos do que por um fato só. Ainda: trabalha o legislador com conceitos universais e futuros e os julgadores, ao contrário, estão em contato direto com os fatos atuais, mais expostos às paixões de simpatia ou antipatia, ou pela cobiça, corrompendo-se-lhes o julgamento. A "justiça viva", encontradiça no juiz, não está em todos os juízes, e é flexível. Precisamos da lei, que venha a deixar bem pouco ao arbítrio humano (ad 2). Alguns casos concretos se haverão de deixar à declaração judicial — os que não possam ser abarcados pela lei mesma (ad 3).
A "lei" (= regra jurídica) incide sobre fatos, que podem ser de maior ou de menor número e complexidade. Trata-se do suporte fático, o Tatbestand da ciência alemã. O profissional do direito tem de dar muita atenção aos fatos e bom lhe haverá de ser o conhecimento avançado de sociologia. Pontes de Miranda insiste nisto repetidamente nas suas obras jurídicas. O juiz racionalista é ao mesmo tempo presunçoso, inda que sem o saber. Ora bem, é no exame da complexidade quantitativa e qualitativa dos fatos, e só nele, que o magistrado poderá conhecer o que Santo Tomás de Aquino chamou de "casos concretos". Exige-se para tanto formação científica mais e mais avançada. Não poderá estacionar em noções isoladas, ou passadas. Com este atraso as pessoas do Povo (do qual se origina todo o poder) são prejudicadas, porventura pensando muitos membros da magistratura que os seus exames de superfície já os teriam afastado de toda a responsabilidade pelos efeitos práticos da provisão jurisdicional.

Quanto mais justa a lei, melhor. Vale dizer: quanto mais racional, mais lei. E mais racional é o mais de acordo com a natureza. Assim, a lei humana que se afastar da lei natural será corrupção de lei, e não lei. Vamos a um exemplo: "não fazer mal a outrem" é princípio mesmo de lei natural; "não matar" é conclusão imediata desse princípio; "será punido o que matar" é outrossim conclusão do primeiro princípio; agora, "será punido com a pena tal ou qual", isto já é elemento da lei humanamente posta (lei humana, lei positiva) (95, 2, c). Mesmo os princípios da lei natural não são aplicáveis de modo idêntico a todas as pessoas, por ser grande a variedade das coisas humanas (ad 3). Por certo, é impossível reduzir a puros termos de racionalidade o quanto os especialistas dispõem em lei. É o problema das determinações minuciosas com que nos aproximamos dos casos concretos, em cuja interna congruência temos de atender cuidadosamente aos enunciados e às opiniões indemonstráveis dos peritos e das pessoas de alta especialização e prudência (aliás, como sublinha Aristóteles, havemos de acolher tais enunciados com um respeito não inferior ao que temos pelas demonstrações racionais): oportet attendere expertorum et seniorum vel prudentum indemonstrabilibus enuntiationibus et opinionibus, non minus quam demonstrationibus — Eth. ad Nic., L. VI, cap. 11, n. 6 (95, 2, ad 4).
Essa posição aristotélico-tomista é uma autêntica capitulação da razão lógico-raciocinante diante dos fatos; torna-se incapaz de pesquisar a natureza e de penetrar o material bruto. Falta ciência, conhecimento, avanço da inteligência. Vale dizer, é o próprio desânimo em descobrir o que mais se preza: o ôntico! Fuga para o Olimpo do "racional", recurso discursivo que atravessou os séculos. Continua em nossos dias, com nomes diversos, em abundância. Tal desistência ora se chama "dialética", ora se denomina "valoração", ora se apresenta como "culturalismo". Não se deu, em tempo, a devida atenção a Bacon. Aliás, o estigma lançado por Aristóteles e repetido por Santo Tomás, fez grande sucesso: quem se ocupa em penetrar os fatos, debulhando-os em relações para conhecer a possível generalização, é "empirista", "sensista", "positivista" (ou "neo-"), posições próprias das inteligências menores, incapazes de se alçarem ao mundo mais elevado da transcendentalidade dos conceitos puros…
(Eis aí a ebriez conceitualista, orgulhosa, na sua pobreza de dados do Real, que tanto tem atrasado o avanço intelectual na área das chamadas "ciências humanas").

A lei humana é ao mesmo tempo dimensionada e dimensionante. Dimensionada: pela lei eterna e pela lei natural. Dimensionante: ordena os atos humanos aos seus devidos fins. Por tal razão deve a lei humana ser compatível com a lei divina, ser disciplinadora segundo a lei natural e servir efetivamente ao proveito do homem.
Por mais extraordinariamente bela que seja a aspiração deste santo medieval, um sistema jurídico contrário à lei divina contém leis humanas verdadeiras, talvez em profusão. Cumpre examinar se vieram a existir, se são válidas e vigentes. Em exemplo: se é lei ordinária, ou mesmo complementar, a divergir de norma constitucional, não vale; não pode ser aplicada. O aplicador expulsa-a do mundo jurídico. Por isto, o termo técnico correto não é declarar a invalidade e sim decretar a invalidade; quem decreta, separa o imprestável do válido (decernere).

 Qualidades indispensáveis da lei humana são portanto que ela seja: "honesta" (não contrária à lei de Deus), justa, possível por sua natureza e segundo o modo de viver dos habitantes, adequada tocantemente a tempos e lugares, proveitosa para afastar males e incentivar o bem, clara na sua expressão, que consulte ao bem geral de todos e não ao interesse privado de alguém.
Como a lei humana deriva da lei natural, divide-se ela sob tal aspecto em lei de direito das gentes e lei de direito "civil".
O aquinatense vinha sempre falando em lei. Neste artigo porém fala de direito. Não está o texto tal como o pusemos em vernáculo (lei de direito das gentes, lei de direito civil); fala o Santo em direito das gentes e em direito civil. Não se pode contudo inferir daí qualquer incongruência como se estivesse agora a confundir o direito com a lei. É mera força de expressão, concisa.

É que as questões de direito das gentes se originam do direito natural (como conclusões dos respectivos princípios), conclusões sem as quais seria impossível a vida em comum (é o caso, por exemplo, de justiça nas vendas, pois é natural que o homem viva em comunidade — 95, 4, c).
Confirma-se por este texto que em S. Tomás o direito das gentes provém do direito natural e não do direito positivo. É como o jus gentium não fosse também posto e como se não houvesse, e vigessem, regras jurídicas não escritas também nos ramos mais específicos do Direito).
Percebe-se também no Santo um germe de cientificidade ao dizer que o sociológico é natural. Não havia pois razão para ele cindir "natureza" e "espírito". A dicotomia, radical, foi entretanto por ele acentuada. E ficou a aderir à história do pensamento séculos afora quando ele vem eivado de romantismo. O amantes da metafísica, superiormente ao apreço pela ciência positiva, apaixonam-se por estas sendas — a ciência das coisas postas antes do pensar (=positividade) seria tarefa intelectual mais própria das inteligências menores...

As normas pelas quais se exprimem determinações (particularidades da lei natural), mediante as quais cada Estado acolhe o mais conveniente para si, estas constituem o direito "civil". Quanto ao mais, pode conceber-se a divisão do trabalho: lei do clero, lei dos governantes, leis militares, todos eles com seus direitos especiais (ibidem).
Outra classificação correta para as leis humanas é que atende à diversidade dos vários regimes: 1) constituições imperiais (nas monocracias); 2) respostas dos prudentes e senatusconsultos (na aristocracia); 3) direito pretoriano ou honorário (na oligarquia); 4) plebiscitos (na democracia); 5) lei (as normas jurídicas do regime misto, que é o melhor). Note-se não poder ser tido por lei e ordenamento de um regime de tirania.* Lei é pois a norma em cuja edicção colaboram autoridades e povo; nas palavras de Isidoro: quam maiores natu simul cum plebibus sanxerunt (95, 4, c).
Esta classificação de regras jurídicas empreendida por Santo Tomás é de intensa artificialidade diante da história em relação ao estudo científico do processo social jurídico de adaptação. Toda a terminologia é emprestada do direito romano, mas a atribuição de cada tipo a fontes do direito não corresponde a nenhuma das grandes fases pelas quais se pode vislumbrar a divisão da história do direito romano: realeza, república, alto império, baixo império e período bizantino. Trabalho mental quase que puramente lógico diante de um plano imaginário idealizado, que se estrutura como modelo eidético a que deve corresponder o real ("ontológico"). Configura-se assim uma espécie de ensaio medieval de um futuro "Mendeleev", cujo material é a ontologia aristotélica, distante da realidade, sem conhecimento da natureza, sem apreço pelo real, com menosprezo pelo pensamento quantitativo, sem atenção ao rigor das proposições dotadas de sentido verificável. Ânsia sonhadora de voo poderoso pela transcendentalidade, de intimidade imediata com o "ôntico", mas desconhecendo com precisão o elementar da natureza. É a mentalidade racionalista, a grassar, como em pensadores numerosos da idade atual.

Outro critério para se classificarem as regras jurídicas é pela matéria inclusive com referência ao nome no respectivo autor: Lei Júlia, sobre o adultério; Lei Cornelia, sobre os sicários etc.[14].
f2) Dos poderes de Lei Humana (I, II, 96, 1 -6).
O que Santo Tomás entende por "poder da lei humana" (de potestate legis humanae) percebemo-lo pelo conteúdo da sua temática anunciada na introdução da quaestio 96: se a lei deve ser norma geral ou se pode ser particular, se deve proibir todos os vícios, se deve ordenar todos os atos de virtude, se se impõe ao homem como obrigação íntima, se todos os homens se sujeitam à lei humana, se é possível agir em desconformidade coma literalidade da lei.
Fundando-se nas opiniões dos jurisconsultos romanos como Gaio, Papiniano, Julio Paulo, Ulpiano, Domício, Modestino (Digesto), diz ele que a lei haverá de versar assuntos gerais e não casos particulares, por isso mesmo que tem de cuidar do bem comum, que é de todos e não de alguma pessoa em particular: pessoas, negócios e circunstâncias (96, 1, c). Nem haveria utilidade em lei que regrasse um caso isolado e singular. Para tanto servem as consultas dos prudentes (ad 2).
Perceba-se o engano: num parecer de jurista pode haver revelação científica de conteúdo de regra jurídica metida no sistema, que pode alcançar casos mais gerais que os aparentemente restringidos numa interpretação apressada de alguma norma escrita. Em verdade, em se tratando de ciência positiva do direito, toda a preposição induzida é uma explicitação de regra jurídica não escrita. Mas geralmente: a ciência do direito coincide com o seu próprio objeto. (Ver Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 199-218).

Ainda que se não possa ter quanto aos atos humanos a certeza absoluta, pode a lei ser formulada em termos universais. Não se nos dá o mesmo tipo de certeza em todos os campos do conhecimento. A certeza é imperfeita nas coisas contingentes, ou seja, no conhecimento da natureza e das vivências humanas. Basta então que a certeza seja daquelas pelas quais se tenha por verdade o que ocorre na maioria dos casos, falhando embora nos pequenos números (ad 3).
Temos aí uma questão-cerne de gnosiologia. Diríamos que ela leva em si toda a problemática da filosofia do direito. Certeza absoluta só se tem na abstração, na formalidade desligada do Real (artificial, a todo rigor), por não poder ter nenhuma aplicação unívoca. Todo o real é efetivamente movediço. Todo conhecimento do real (=natureza!) é rigorosamente aproximado, embora para efeitos práticos (de adaptação humana) as diferenças sejam sem qualquer implicação, desprezíveis. A certeza lógica e a certeza matemática, sem a verificabilidade, incerteza real. As diferenças de certezas, são todas elas, apenas de grau. Não há que se distinguir, como faz S. Tomás (e com ele quase todo o pensamento Ocidental) entre “metafísico”, “da natureza” e “coisas humanas”. Tudo é “humano” e de tudo se pode ter certeza, se se usa das ciências particulares para se induzirem leis (físicas, biológicas, sociológicas), que sejam testadas pela experimentação. Assim procederam, e acertaram muito, dois gênios: Einsten na Física e Pontes de Miranda na Sociologia. O vício escolástico, porém, lançado por Aristóteles e por Santo Tomás, está ainda profundamente arraigado na mentalidade ocidental, renitente na sua falsa convicção de apoditicidade quanto ao real, quanto ao conhecer, quanto ao saber [15].

Não é função da lei humana coibir todos os vícios. É que a lei tem que ser geral: nem todos têm a mesma inclinação para a virtude. Não é exigível a mesma perfeição, na criança e no adulto. A lei é posta para a população toda, na qual a maior parte é constituída de pessoas de imperfeita virtude. Assim, a lei tem que ocupar-se apenas dos vícios mais graves, não de todos os vícios. O objeto da lei hão de ser aqueles vícios que causam dano à convivência, impedindo a vida social na sua conservação (furto, homicídio e outros semelhantes) (96, 2, c).
A lei tende, sim, a levar os homens à prática da virtude, mas gradualmente, não de uma só vez (2, ad 1). Nem mesmo aquilo que é ditado pela lei natural pode,  por toda a sua extensão, ser objeto de proibição da lei humana (ad 2). Com maioria de razão deixa de haver co-extensão entre lei eterna e lei humana (ibidem).
Afirma corretamente Santo Tomás (corretamente, queremos dizer, em termos de ciência positiva) haver diferença de exigibilidade entre a norma religiosa, a moral e a jurídica (lei divina em toda a sua extensão, lei natural em toda a sua plenitude, "lei humana"). Entretanto, preocupado em traçar um sistema teológico e moral de todo o conhecimento da vida humana, não conseguiu ver a realidade com mais precisão, nem levar às conseqüências epistemológicas necessárias esses lampejos que o seu quantum específico de ciência lhe oferecia. Nem dispunha de dados de ciência positiva, com que hoje já podemos contar.
         
De outro lado, todavia, pode a lei apanhar atos de qualquer virtude. A fortaleza, por exemplo, pode ser exercitada para o bem comum ou para o bem privado (digamos, em favor de um amigo). Por outras palavras, qualquer virtude pode ter atos regrados em lei, embora nem todos os atos de cada virtude possam ser objeto de lei (96, 3, c). Nenhuma virtude há, cujos atos não possam ser dirigidos por lei em função do bem comum (ad 3). A lei cogita, porém, somente da parte exterior do ato (I, II, 100, c), o que não obsta a que a intenção do legislador seja levar os homens a uma vida virtuosa (96, 3, ad 2).
Quando justa a lei, obriga ela o homem inclusive na intimidade da sua consciência (in foro conscientiae), por ser um reflexo participativo da lei eterna, de que se deriva. O indivíduo é parte da multidão (do todo). O que é da parte, ao todo pertence; como a lei justa consulta ao bem comum, a lei humana justa obriga integralmente o indivíduo (e não apenas quanto à exterioridade do ato). E o que é lei justa? A que reúna os pressupostos seguintes: 1) ordenação ao bem comum; 2) o ser oriunda de autoridade competente; 3) distribuição de ônus e benefícios em igualdade de proporção entre todos os membros da comunidade (96, 4, c). A contrario sensu, não é justa a lei feita em benefício da cobiça ou para glória do legislador, ou que imponha ônus e sacrifícios cujos resultados não conduzam ao bem comum ou que, embora a tal conducente, essa lei não divida igualitariamente benefícios e cômodos; *nem seja proveniente de autoridade incompetente. Tais leis são verdadeiramente atos de violência. Não se hão de cumprir, a menos que a sua inobservância acarrete escândalo, ou algum outro inconveniente. Claro que também serão injustas todas as leis ditatoriais, que se choquem contra os mandamentos da lei divina (ibidem). À lei injusta deve ser oferecida resistência (se não se originar daí mal pior, como seria o escândalo) — 96, 4, ad 3.
Só não se subordina a determinada lei quem, por força de outra lei superior, está fora da sua incidência. Nota-se porém que toda lei é regra, e também força coativa; ora, como os homens de bem estão com as suas vontades em harmonia com o preceito legal, não andam contrariados (como os maus) ao se lhe sujeitarem. Destarte, os bons não se subordinam à dimensão coativa da lei, para eles supérflua (96, 5, c). Também o príncipe (dirigente máximo) não está subordinado à força coativa da lei: ela provém dele, e ninguém se pode forçar a si próprio; não há quem possa compelir o príncipe, em juízo de condenação, a que siga a lei. Pode ele inclusive dispensar alguém do cumprimento da lei. Mas ele próprio não se esquiva da eficácia diretiva da lei, a que se obriga segundo o juízo de Deus. (ad 3).
Note-se como o despotismo já diminuiu bastante na história (embora com perceptíveis anfracturas, ainda neste século XXI). O regalismo vai rareando em quantidade e intensidade, em termos estatísticos, por toda a face da terra. Temos hoje, inclusive, a técnica da divisão dos poderes. O Estado criou órgãos diversos para funções diversas. O "magistrado supremo da nação" pode ser compelido pelo Judiciário, em condenação, desconstituição etc… Pense-se, no Brasil, na lei da ação popular, com origem na Constituição Federal. Em derradeira instância há o poder do Povo mesmo, que é jurídico, pois o poder estatal (que está no Povo) é direito subjetivo irradiado de regra jurídica do direito das gentes (= poder supraestatal — que se justifica por si mesmo, organismo total que se movimenta lentamente, segundo vetores tramados por todos os povos do planeta)[16].



Entanto, mesmo quem é subordinado à lei pode deixar de lhe seguir a literalidade, para atender à causa que levou o legislador a editar aquela determinada regra jurídica (art. 6, sed contra). A razão é a mesma: o que importa é o bem comum, sendo que em um ou outro caso particular a observância estritamente literal pode levar a resultados inconvenientes ao interesse geral. O legislador não consegue ver tudo. Passa-se portanto por sobre a letra da lei para se salvar o interesse público (utilitas communis), que está na intenção do legislador (6, c). Para tanto, porém, há ainda pressupostos importantes. Esse salto sobre a literalidade só se pode dar se o caso dessa aplicação supra-literal ocorrer subitamente, sem possibilidade de se recorrer à autoridade pública, que dispense da observância literal. À autoridade competente cabe interpretar a lei, dizendo o que é útil e o que é inútil à comunidade (96, 6, c).
O particular que assim justificadamente agir contra a letra da lei não está a julgar a lei, mas sim o caso concreto (ad 1). A hipótese é sempre de estar na iminência de ocorrer detrimento ao público e de não haver autoridade competente, a que recorrer. De qualquer maneira, na dúvida, sem se poder recorrer ao superior, prefira-se a observância literal (ad 2).* estado de necessidade ...
Não é da intenção do legislador que as leis se tomem literalmente, sempre; pois é impossível ao legislador, ainda ao mais sábio, tudo exprimir, que leve ao seu intento. A lei tem de atender à generalidade dos casos segundo o que mais comumente acontece (ad 3).
Continuam os doutrinadores a falar de "intenção do legislador" e até de "vontade da lei". Muitos séculos passaram para que se pudessem mostrar os erros contidos no voluntarismo e subjetivismo no direito. Hoje já sabemos que nem a vontade da lei, nem a intenção do legislador, nem as causas que induziram o legislador à formulação da regra, se podem ter como elemento seguro de interpretação do sistema jurídico. A própria realidade é que, unicamente, pode dar o sentido da regra jurídica, que a colhe. O único caminho a percorrer é o da análise científica das relações sociológicas e (a linguagem é apenas uma delas), sem qualquer ligação animista, isto é, com o que se tenha passado no espírito do legislador. Mesmo "espírito da lei" é conceito ainda subjetivista; o inevitável e imprescindível é achar-se, com o auxílio das ciências (sobretudo da sociologia), o sentido e a direção das regras jurídicas independentemente do momento político, isto é, de tudo quanto haja influenciado na edicção da regra em questão. As palavras da lei são palavras como quaisquer outras, símbolos de idéia, que por sua vez é símbolo do real. É no real, portanto, pela análise das relações sociológicas que podemos perceber o alcance da lei, ou seja,  o seu sentido e orientação [17].

f3) Da mudança nas Leis (I, II, 97, 1 – 4).
As leis humanas podem sofrer alterações. Não se imobilizam perpetuamente. A lei é obra da inteligência, a qual costuma proceder do modo de ser mais imperfeito para o mais perfeito. Tanto é assim para a inteligência especulativa como para a prática. O conhecimento humano vai se aperfeiçoando com o correr do tempo. Assim também as primeiras instituições legais, de mais imperfeitas evoluíram em instituições com menos falhas no tocante ao interesse público. Também os povos mudam, como acentua Agostinho; alteram-se-lhes as condições, que a lei deve acompanhar (97, 1, c).
A lei natural, reflexo na lei eterna, essa é perenemente imóvel; mas a razão humana é mutável e imperfeita. Põe alguns preceitos particulares, de acordo com as emergências dos casos (ad 1). De outro lado a lei humana é régua para os atos humanos, que são mutáveis, de tal ordem que não poderia ela ser ela algo inteiramente imutável e permanente (in rebus mutabilibus non potest esse aliquid omnino immutabiliter permanens. Et ideo lex humana non potest omnino immutabilis) (ad 2). Algo reto é sempre reto, mas a retidão do bem comum é diferente, por não lhe ser proporcional, sempre, a mesma coisa (rectitudo legis dicitur in ordine ad utilitatem communem, cui non semper proportionatur una eademque res …Et ideo talis rectitudo mutatur) (ad 3).
Muito favorecem a Santo Tomás de Aquino a inteligência enorme e, até certo ponto, o método, aliados ao desejo de acertar. Com o responder à terceira objeção, que se pusera, sobre a mutabilidade da lei positiva humana, veio a tanger ponto do mais alto interesse gnosiológico, que é o da relatividade, tão atual que chegou ao seu ponto mais alto no século XX. Hoje sabemos que a relatividade não é própria somente dos "atos" humanos. Ela pervade todo o nosso conhecimento. O reto de uma régua é relativo ao espaço-tempo. É a mesma relatividade existente nas "ciências humanas", só que aqui mais complexas as relações do que lá — o que mostra a unidade possível das ciências, sem a grande cisão, irreal, que ainda se professa. Note-se mais: a relatividade geral é mais geral do que pensou Einstein; varia também com as cargas pessoais do observador, em matéria de religião, moral, arte, ciência, direito, política e economia. O espaço-tempo real é de n dimensões (depende no número de relações em jogo) [18].

Nem sempre que surja uma descoberta para melhor se há de proceder a mudança na lei, deixando de lado a tradição vigente, pois em toda mudança de lei ocorre um certo prejuízo à higidez social (detrimentum quoddam communis salutis). Muito ajuda a conservação do costume firmado à observância das leis; a mudança na lei é golpe contra o costume vigente. A mudança deve portanto trazer vantagens compensadoras para o bem da comunidade. Tais vantagens hão de ser grandes e evidentíssimas, ou recomendadas por grande necessidade, ou ainda porque a lei derroganda seja iníqua; ou quando a sua observância tenha sido altamente nociva. A eficiência da lei decorre da sua profunda assimilação social, de modo que as mudanças não hão de ser facilitadas (non sunt de facili mutandae) — 97, 1, c e ad 2.
De tamanha excelência é o costume que, uma vez firmado, cobra força de lei, derroga lei e é intérprete da lei. Esta, com efeito, provém da inteligência e da vontade do legislador. A lei humana é produto da vontade racional do ser humano. Ora, razão e vontade exteriorizam-se não somente por palavras como também por fatos. O que se faz denuncia o que se escolheu. Os atos, quando muitos repetidos, mostram o movimento interior da vontade e declaram os conceitos da razão. Quando repetimos muitas vezes o mesmo ato é sinal de que tal ato está determinado por deliberação racional (videtur ex deliberato rationis judicio provenire) — 97, 3 c.
Não vale o mesmo raciocínio tocantemente à lei divina, nem à lei natural; aquela, uma expressão da vontade de Deus e esta, participação dela (ad 1).
Tal força do costume criador justifica-se, porque a lei humana frequentemente falha nos seus pormenores, e é difícil, de outro lado, extirpar o costume do povo (ad 2). Aliás, em se tratando de uma massa bem consciente (libera multitudo), a lei que ela se possa a si mesma elaborar em consenso vale mais que a autoridade dos dirigentes, que só são legisladores enquanto forem ao mesmo tempo gestores do povo. Até em se tratando de grupo humano menos livre, mesmo sem essa capacidade de legislar para si própria ou de extinguir lei que lhe foi imposta pelas autoridades, ainda assim o costume prevalente desse grupo obtém força de lei, desde o momento em que seja tolerado pelos dirigentes que, com tal tolerância, lhe dão implícita aprovação (ad 3).
À falta de formação científica, que o ambiente do século XIII não lhe propiciou, de parelha com seus fortes pendores metafísicos e cargas morais, não pôde S. Tomás perceber todas as implicações reais da proposição verdadeira; o poder emana do povo. O povo é o grande legislador (prescindimos aqui das interpretações teológicas). Os próprios legisladores formais, das assembleias oficiais, levam em si toda a influição social do povo em que vivem, de regra (há sem dúvida os casos teratológicos, mais raros). O povo pressiona mais do que parece, insensivelmente, forçando mudanças. A revolta popular pode chegar à semiorganização ou mesmo organização revolucionária (retomada do exercício do poder estatal, que é só do povo). Quando há um golpe de estado, aceito, ou lei desacertada acolhida, é porque o povo os aprova tolerando, "ajeitando-se" em tal nova situação. Por isso ele permanece e, ao menos por algum tempo, se legitima. Ao longo do tempo mais depende a autoridade do povo do que o povo da autoridade. A estrutura das energias jurídicas está no povo.

Podem as autoridades (rectores multitudinis) dispensar subordinados da observância das leis em casos concretos (como o chefe de família em relação aos membros dela), mas sempre em função de um bem melhor. Têm os chefes o poder de assim proceder quando a lei, na sua generalidade, não atende com perfeição ao caso concreto (in personis vel casibus in quibus lex deficit). Precisam, para tanto, visar unicamente ao bem comum e ter consciência clara da dispensa (fidelidade e prudência, como se recomenda no Evangelho, Lc., 12, 42) (97, 4, c).
Se se atende ao interesse comum, não há falar-se em acepção de pessoas, ainda que a pessoa dispensada saia beneficiada com a dispensa (ad 2). Da lei natural, nos seus princípios, não há dispensa possível; da lei divina só Deus pode dispensar, ou a pessoa a quem Ele haja confiado tal missão especial (ad 3).

g) A Lei nas Sagradas Escrituras (Antigo  e Novo Testamento).
Santo Tomás, filósofo-teólogo, conceitua a lei em toda a sua amplitude, desde a lei eterna até a lei positiva (posta pelo ser humano, humana). O conceito tomista abrange igualmente a lei positiva divina (seria posta diretamente por Deus). Aplica ele o mesmo conceito nuclear de lei elaborado desde a Q. 90, inclusive aos preceitos, de qualquer natureza, do Antigo  Testamento e, bem assim, aos do Novo Testamento, chamando àquele de lei velha (lex vetus) e a esse de nova lei (lex nova). São onze longos capítulos (quaestiones) com os quais Santo Tomás de Aquino conclui o alargado tratado da lei, empreendendo a seguir o da Graça. Com o tratado da Graça está a concluir a análise minuciosa do princípio exterior dos atos humanos bons. Deus é quem nos instrui pela lei e nos ajuda pela graça (q. 90, Introductio e q. 109, Intr.).
Das onze quaestiones sobre a velha e a nova lei colheremos somente o que mais diretamente se relacione com a conceituação de lei. Alguns textos já foram aliás adiantados por nós quando expusemos o pensamento do Santo no tocante à "essência" da lei, e também em relação à lei natural.

g1) A lei no Antigo  Testamento.
Todas as leis contidas no Antigo Testamento foram boas e acertadas para o seu tempo, para aquele povo, e postas pelo próprio Deus (I, II, 98, 1 – 2). Serviram como preparação pedagógica do povo eleito para a vinda do Messias, semelhantemente ao que se passa com a criança, que preparamos para a idade adulta (98, 2, ad 1). Foram transmitidas aos hebreus por meio dos anjos, seus promulgadores (art. 3, c ad 3).
g1.1) Só para o Povo Hebreu.
Foi lei dada somente ao povo judeu, monoteísta. Os outros povos somente estavam obrigados à sua observância naquilo em que ela era pura expressão da lei natural (q. 5 e 6). O tempo oportuno da sua instituição foi justamente o de Moisés, quando o povo precisava de definições precisas, com que se iniciasse mais seguramente na preparação da vinda de Cristo (art. 6).
Embora o fim da lei seja um só, os preceitos da antiga lei foram diversos, por serem muitos os meios que conduzem aos mesmos fins. (99, 2).

g1.2) Três classes dessas leis.
Encontram-se no Antigo Testamento preceitos de ordem moral, preceitos respeitantes ao culto divino e preceitos cujo objeto é a própria convivência dos cidadãos (q. 99). A educação nos costumes, dificílima, é disciplinação de ordem moral (99, 2): indução à vida em virtudes, com acrescentamentos e explicitudes que não se acham como conclusões racionais tiradas imediatamente da lei natural pela razão humana (99, 2, c e ad 1).
Mas, além dessa típica pedagogia de natureza moral, acham-se igualmente na lei antiga (Antigo Testamento) os preceitos cerimoniais, relacionados especificamente com o culto a Deus, que são distintos dos preceitos morais (99, 3, c e ad 2).
E além dessas duas classes de regras (ou normas, ou preceitos) do Antigo  Testamento, há a considerar ainda as regras referentes à convivência humana dentro da justiça. Por vezes regras morais são abrangidas pelas regras jurídicas (praecepta judicialia) as quais, consideradas de um modo geral, são também morais e que, particularizadas, integram o mundo dos preceitos judiciais (99, 4).
Não há preceitos de outra natureza no Antigo Testamento (art. 5).

g1.3) Sanções: premiais e penais.
A observância da lei era, então, incentivada por promessas e por cominações, como meio indispensável a se conseguir a sua observância (como o silogismo é meio necessário para conclusão da razão especulativa). O próprio prêmio de consecução de bens temporais era meio válido: o fim visado era chegar ao amor de Deus, até mesmo com os homens mais imperfeitos (art. 6).

g1.4) Lei e virtudes.
Todos os preceitos morais contidos no Antigo Testamento são decorrentes da lei natural, em forma de "determinação" pelo menos, como forma de disciplina explícita (ex.: levantar-se quando chega uma pessoa anciã) (100, 1).
A lei divina abrange ali todas as virtudes porque combate todo e qualquer pecado; há pecado contrário a cada uma das virtudes (art. 2). Todos os preceitos morais se reduzem às normas do decálogo (art. 3), inclusive o respeitante ao descanso semanal, por ser de moral que o homem se dedique às coisas de Deus (100, 3, ad 2).
Veja-se a grande latitude com que aqui o Santo emprega o termo moral, abrangedor até da própria religião. Se por um lado isto envolve agilidade intelectual e beleza, de outro lado é de graves inconvenientes epistemológicos — o conceitualismo vago, resvaladiço e equívoco, que empece o avanço do conhecimento.

A ideia de "devido" está mais obscurecida nas outras virtudes que na justiça. Por esta razão, no decálogo os preceitos referentes às demais virtudes não eram tão evidentes ao povo como os preceitos atinentes à justiça. Explica-se assim por que, lá, os mandamentos vêm a ser mais caracterizados por atos de justiça. Esses mandamentos sobre a justiça são aliás os elementos primários da lei (100, 3, ad 3).
S. Tomás sublinha certo primado da justiça sobre as demais virtudes, num sentido muito atual para a doutrina católica do problema social: qualquer trabalho assistencial é paliativo se não há justiça (distributiva); e por força da própria estrutura jurídica! Claro, pois, que o cristianismo não pode desinteressar-se pela Política, o grande meio de mudança das estruturas sociais[19].

Não bastaria à própria lei divina posta por Deus ordenar os homens na suas relações com o Criador; era de mister, como em toda a vida social, que os homens se relacionem mutuamente segundo a justiça. Por isto o decálogo contém regras sobre as duas matérias (100, 5, c). E precisava o decálogo de explicitar regras sobre o amor do próximo porque nesse aspecto a lei natural se encontrava obscurecida pelo pecado (ad 1). A base de todas as paixões, mesmo das irascíveis, são as paixões concupiscíveis, razão bastante para figurarem apenas estas no decálogo, conteúdo elementar primário da lei (ad 6).
Como diz a própria Escritura, tudo quanto Deus faz é correto em número, peso e medida. Assim, a própria sequencia em que aparecem os mandamentos da lei antiga é perfeita: trata-se da lei dada diretamente por Deus e não pelos homens (100, art. 5-7, sed contra dos três). Primeiro figuram as leis sobre o amor a Deus, e depois as de relacionamento com o próximo, porque o fundamento do amor ao próximo é o amor de Deus (6. c e ad 1). A lei há de conter cominação de penas, especialmente por causa dos mais inclinados ao mal, como ensina Aristóteles. Assim foi no decálogo (100, 7, ad 4).
g1.5) Indispensável e dispensável.
Nenhuma possibilidade existe de alguém ser dispensado da observância dos preceitos contidos no decálogo, porquanto todos eles visam ao bem comum. Onde se vise ao bem comum, aí está presente a intenção do Deus legislador. Portanto são indispensáveis (100, 8, c).
Parece que o persistente apego à intenção do legislador tem esta origem religiosa, no Ocidente: a vontade de Deus, que se confunde com a sua própria essência, e que portanto é perfeitíssima. De Deus houve a transferência para o legislador humano, como quem, necessariamente, ou na maioria dos casos, estivesse ligado a Deus, cuja vontade transmite. Animismo, este último, que não condiz com a realidade e é, por isso, rejeitado pela Ciência positiva.

Cumpre notar todavia serem dispensáveis os preceitos que, em casos concretos, sirvam apenas de meio para se atingir a intenção do legislador (ibidem). Os preceitos fundamentais são os referentes a Deus e aparecem em primeiro lugar; depois vêm os atinentes à justiça, com a idéia-cerne do que é devido a cada um (ibidem). Não há pois falar-se em desoneração de qualquer preceito do decálogo quando se vai contra a intenção do legislador (ibidem).
As regras da justiça não falham nunca, como ensina Aristóteles; mas variam, sim, os modos de se observar a justiça, em particularidades (100, 8, ad 1). Muda portanto, na singularidade dos casos concretos, os modos de aplicação das leis do próprio decálogo; tais alterações podem ser feitas por Deus mesmo ou por pessoas especificamente por Ele autorizadas (ad 3). Nem se confunda dispensa com interpretação da lei; é o caso por exemplo de se praticar no sábado ação imprescindível à saúde (colher espigas de trigo e comê-las): não se cuida aí de algo proibido pela lei (ad 4). É a própria interpretação que impõe tal entendimento.
Santo Tomás passa bem perto de tema de alto valor científico: a interpretação da lei não com olhos sobre qual teria sido a intenção do legislador, mas sim qual é a solução que os fatos cientificamente exigem. Essa revelação tem de ser feita, para ser segura e transpessoal (= "objetiva"), com auxílio dos conhecimentos propinados com rigor por tudo quanto de exato possamos obter na análise dos fatos: física, biologia (psicologia) e sociologia. Todos os processos de adaptação social têm de ser assim encarados; nenhum deles deixa de passar pelo caminho da linguagem, que é subproduto social (ela vem em consequência da ideia, que é social). Nada contraria, nisso, a própria religião. O homem de fé tem por certo que tudo é de Deus, inclusive portanto todos os fatos, em todos os seus íntimos aspectos, desvendados pelas ciências (as quais também se fundam na “essência – vontade” divina). A única exceção é o erro (= "não verdadeiro" para a ciência positiva).

g1.6) Regramento só do exterior do homem.
Mesmo a lei divina posta no Antigo Testamento (no decálogo, especificamente) exige apenas os atos exteriores das virtudes e não o modo virtuoso de ser, embora vise à vida virtuosa. A lei antiga incide onde comina pena (como é próprio de toda lei, que lança mão do temor disciplinante). A lei humana não cuida da intenção de matar, se não se vem a matar — por exemplo. No  a própria lei divina não vai ao ponto de exigir nem a intenção virtuosa nem muito menos o hábito bom, já formado. A própria alegria, com que se hão de observar os mandamentos da lei antiga, é apenas aquela que se liga ao fim (servir a Deus), ou a que provenha do bom ato realizado (art. 9).

g1.7) Para além do Decálogo.
Os preceitos morais do Antigo  Testamento não são apenas os constantes do decálogo. Muitos outros preceitos complementares, menos evidentes, aparecem nos Levíticos e Deutoronômio, particularizando aquilo que o povo não percebia tão claramente, com entendia os preceitos do decálogo (art. 11). Os preceitos morais referiam-se à justiça geral, ou seja aquela justiça abrangedora de todas as demais virtudes (em sentido amplo, portanto). Já os preceitos jurídicos (judicialia) são específicos da justiça especial do inter-relacionamento humano (circa contractus humanae vitae, qui sunt inter homines ad invicem) (art. 12, c, parte final).
As normas cerimoniais (pracepta cerimonialia) regulavam o culto a Deus, e serviam como pré-figuração da futura vinda do Messias, que é o Cristo. Foram numerosos e variados tais preceitos, em vista da imperfeição daquele povo ainda grandemente imaturo. Versavam sobre sacrifícios, ritos sacros, sacramentos e outras observâncias (101, 1, 4). Esses preceitos tinham razão de ser; não se tratava de atos não-sérios, senão de vinculações dotadas de sentido finalístico: o culto a Deus naquele tempo, e a preparação do culto definitivo — com Cristo na História (q. 102 – 103).
g1.8) Leis jurídicas e não jurídicas.
As regras jurídicas do Antigo Testamento (praecepta judicialia) tinham a função de regular as relações entre as pessoas, na justiça e eqüidade. Eram em número certo e de definição precisa (q. 104, sed contra). Essas regras jurídicas não se abriam ao conhecimento imediato da razão; somente podiam vigorar por força de instituição positiva (104, 1, c). Continham regulação não apenas de questões atinentes ao funcionamento dos juízos oficiais mas regulavam igualmente o inter-relacionamento das pessoas entre si (104, 1, ad 1). São morais as relações do homem com Deus, cujas regras sejam conhecíveis pelo homem com o só exercício da razão, isto é, quando não precisem de positiva instituição. É o caso da relação obrigacional de amar e cultuar a Deus (ad 3). Mas nas relações "homem – Deus" há muitas que não se dão a conhecer à razão. As relações dos homens entre si estão mais ao alcance da razão humana, fato capaz de explicar a existência de mais regras morais nas relações dos homens entre si do que na relação do homem com Deus. A razão é para o indivíduo o que é príncipe, ou juiz, para a sociedade perfeita (ad 3).
As regras não jurídicas, cerimoniais, referiam-se ao culto divino e superavam a mera racionalidade (secundum quod referebatur ad cultum Dei, superabat rationem) — 104, 2, ad 3. Ocorre que a situação do povo judeu era provisória; uma preparação para a redenção de Cristo. As leis que atendiam àquelas circunstâncias concretas foram determinações particularizantes positivamente instituídas, que perderam a sua eficácia; já não vigoram (104, 3, ad 1), a despeito de justiça e equidade serem, em si, imutáveis (ad 1 cc. ad 3). Quando um povo muda de regime político, suas leis devem ser modificadas (ad 3).
Não percebe Santo Tomás que, quando se dá a mudança de regime político, já se está necessariamente no mundo jurídico. O regime só se firma pelo direito. Essa visão, que faltava compreensivelmente em filósofo do séc. XIII, anda ainda ausente em muitos pensadores juristas nos nossos dias.

g1.9) Erro “de proibição” e erro “de tipo”.
 Entre os hebreus, quando alguém cometia ilícito não por ignorância da lei (tal desconhecimento não escusava) mas por ignorância da situação fática, não recebia pena; era contudo obrigado a expiar o mal com a oferenda de sacrifícios (105, 2, ad 9).
Outro pormenor do mundo jurídico não enxergado com clareza por S. Tomás é que, com a exigência de expiação sacrificial, está a lei a jurisdicizar uma fatia das relações religiosas. Os diferentes processos sociais de adaptação assumem-se uns aos outros, sem com isso perderem a sua especificidade: o universo não é somente de 4 dimensões, mas de n dimensões (n combinações de Energia).

Neste particular, como nas demais minúcias de regramento legal, estava certo todo o Antigo  Testamento, inclusive em relação aos estrangeiros (art. 3), e também nas do tipo familial (com filhos, esposa e servos).
A fé do Santo (alto grau de Religião na composição da sua personalidade) não lhe permite ver qualquer imperfeição no próprio regramento objetivo do Antigo Testamento, por entendê-lo de direta inspiração de Deus e portanto infalível. Entendemos desnecessária essa posição acrítica para se salvar a integridade da fé; justamente nesse ponto presta a mentalidade científica excelente serviço. Não mata a Religião; antes, depura-a, e aprofunda-a, e faz avançar o homem em mais preciso conhecimento e em mais requintada religiosidade. Não fica ela jamais extirpada, mas deslocada da região que ainda ocupar nos nossos mitos e ilusões. É progresso seguro, é proveito sólido do homem na própria sublimidade transcendente da vivência religiosa.

g2) A lei no Novo Testamento.
As questões 106-108 são mais teológicas ainda do que as anteriores sobre o Antigo Testamento: respigamos só o indispensável ao clareamento das ideias do aquinatense.

g2.1) A nova lei é sobrenatural.
A lei antiga serviu como preparação pedagógica para a vigência da lei de Cristo, ápice da história do homem. A fé em Cristo é obra do Espírito Santo. Tem-se aí portanto uma lei introduzida sobrenaturalmente no coração dos homens; são aqui secundários os dispositivos escritos sobre a fé e sobre a ação humana (106, 1, c). Viver de acordo com essa lei nova é algo que somente ocorre como Graça de Deus (dom gratuito para a união íntima com Deus), de modo que é, sob esse aspecto, lei que salva o homem, liberando-o intimamente e elevando-o por sobre as leis puras da natureza (106, 1-3). A variação da lei evangélica no tempo, no espaço e em relação à diversidade de pessoas, decorre apenas do grau de graça do Espírito Santo, não sendo de prever-se atuação maior da Graça do que ocorreu aos apóstolos, que a receberam primeiro e mais abundantemente (art. 4).
É lei perpétua, a do Evangelho (art. 4). Não haverá uma outra lei do Espírito Santo; pregado o Evangelho por todo o orbe terráqueo, será o fim dos tempos (ad 4).
g2.2) A nova lei aperfeiçoa a antiga.
O Evangelho não derrogou as leis do Antigo  Testamento, exceção feita apenas das normas dos cerimoniais. As leis morais e jurídicas ficaram mantidas, mas aperfeiçoadas na sua interpretação. Por exemplo, a lei do talião: ficou entendida como amor à justiça a ponto de se aconselhar sofrer ofensas por amor da justiça. A observância do sábado também: não há quebra do Dia do Senhor quando se precisa fazer algo necessário à vida e à saúde (107, 2).
Santo Tomás reconhece implicitamente que os próprios fatos é que podem exigir uma nova visão da lei. Levada às suas consequências mais profundas, de lógica material, a tese se achega à científica: não há que se cuidar de intenção do legislador.

            A lei antiga era mais penosa, no sentido de ser mais complexa nas suas minúcias. O Evangelho é mais difícil em outro sentido: a vitória sobre os movimentos interiores (107, 4, c e ad 1).

g2.3) Ausência de "lex nova".
Poucas prescrições exteriores traz a lei nova: as indispensáveis ao trabalho da Graça nas almas (108, 1). O que houve de novo em relação ao Antigo Testamento foram apenas os sacramentos (art. 2). No tocante ao direito (praecepta judicialia), deixou-o Cristo a cuidados dos que no futuro, autoridades temporais ou espirituais, viessem a ser os responsáveis pelas pessoas, além de corrigir Ele interpretações errôneas dadas pelos fariseus a algumas leis do Antigo Testamento (ex.: o sábado, o divórcio, os juros cobrados a estrangeiros), particularmente quando eles ensinavam ser correto o que era apenas permissão (108, 2, ad 4 e art. 3, ad 2).
Aqui o Santo misturou religião e direito. Se permitido pela lei, o divórcio era conforme a direito. Cristo não interpretou o direito; mostrou qual o mandamento de Deus[20] .

.4) Escravidão e liberdade.
A grande diferença entre o Evangelho e o Antigo Testamento é que este se constitui numa lei de escravidão, ao passo que o primeiro configura a lei da liberdade. No Evangelho estão adequadamente separados da lei os conselhos. A lei no Novo Testamento é posta para a determinação do necessário à consecução do fim da felicidade eterna, e os conselhos referem-se ao melhor e mais eficiente (melius et expeditius), com que se pode chegar a esse mesmo fim. Quanto mais o homem se apega aos bens deste mundo, tanto mais se afasta do fim último da felicidade eterna. A lei proíbe esse apego desordenado aos bens terrenos, como se fossem fins. O conselho insinua, como opção livre, não como obrigação, a total renúncia aos bens de prazeres, de riquezas e de honras. Baixou Cristo algumas regras disciplinares aos seus apóstolos, mas adaptadas àquele tempo: não entrar nas terras de gentios e de samaritanos, não possuir dinheiro, não levar consigo  sacola, nem calçados, nem bastão etc... (108, 4, c e ad 4).
          A lei no Novo Testamento conserva os preceitos da lei natural, altera os preceitos relativos ao culto (que antes vigoravam no Antigo), aprimora os preceitos morais, ordenando melhor o interior do homem (a disposição para fazer bem aos inimigos, por exemplo); quanto aos preceitos jurídicos do Antigo Testamento, corrige Cristo os erros de interpretação que lhes davam os fariseus (108, 4).
Bibliografia e referências
               PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins Fontes, 1953.
               _______, Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932.
               _______, O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.
               _______, Sistema de ciência  positiva do direito. 2ª ed., tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 245 seg.
               _______, Comentários à Constituição de 1967, com a Em. 1/69. Seis tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1972.           
               _______, Subjektivismus. und Voluntarismus im Recht. Sonderdruck aus Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grünewald, 1921, p. 522-543.
               _______, Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia, Napoli, 1925.
_______, Introdução à política científica. Rio de Janeiro: 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983.
               SANTO TOMÁS DE AQUINO, De Regimine Principum.
_______, In Ethicorum.
_______, In Politicorum.
_______, Summa Contra Gentiles.
_______, Summa Theologica.
SANTOS, Arlindo Veiga dos. Filosofia política de Santo Tomás de Aquino. 3ª ed. São Paulo: José Bushatsky, 1954.
SPIAZZI, R. M. Introductio editoris, In: Ethicorum. Roma – Turim: Ed. Marietti, 1949, p. XII.


[1] Ver SPIAZZI, R. M. Introductio editoris, In: Ethicorum. Roma – Turim: Ed. Marietti, 1949, p. XII.
               Alentada relação das obras de Santo Tomás de Aquino está em http://www.corpusthomisticum.org/zbital2.html

               [2] Ver PONTES DE MIRANDA, Sistema de ciência  positiva do direito. 2ª ed., tomo II. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p. 245 seg.

[3] A numeração a que nos referimos é a adotada por SANTOS, A. V. dos. Filosofia política de Santo Tomás de Aquino. 3ª ed. São Paulo: José Bushatsky, 1954.
[4] Sobre o desenvolvimento lentíssimo da ciência, pela indicatividade, em traços biológicos, desde a boca (antiquíssima) passando pela garra, depois com o aparecimento da função da mão e finalmente com a finura do dedo, veja-se PONTES DE MIRANDA, Garrra, mão e dedo, p. 18-19.
[5] Note-se muito, porém. Em ciência  positiva, lei posta não é só a lei escrita, e sim a regra jurídica que esteja no grupo social. As normas costumeiras também são postas — integram o direito positivo. Diferem das escritas só pela origem e pela expressão.

[6] Atente-se para a confusão de que S. Tomás é vítima. Mistura o plano do real com um plano ideal que deva ser atingido pelo ser humano.

[7] PONTES DE MIRANDA. Comentários à Constituição Brasileira de 1967, com a Emenda 1/69. 6 v. tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969.

[8] Note-se para a confusão entre promulgação e publicação de lei; são em verdade momentos jurídicos distintos (jurídicos por efeito de outras regras jurídicas já vigentes).

[9] Sabemos hoje haver leis de efeito singular; exemplo: a que permite a doação de um bem público municipal a determinada pessoa jurídica de direito privado.

[10] São os sinais de comunicação de compreensão quase universal. O sorriso é um exemplo.
               [11] Ver Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972; tomo IV, páginas 145-148.
[12] Sobre este sábio monge árabe da Igreja católica, ver >>

[13] Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Graciano  (sobretudo na versão alemã, mais minuciosa — http://de.wikipedia.org/wiki/Gratian).

[14] Sobre a classificação científica atual das regras jurídicas (com mais a sua violação e realização dentro do âmbito do direito privado), ver Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo I, § 14-21.

[15] Ver PONTES DE MIRANDA, O problema fundamental do conhecimento, passim.
[16] Neste respeito leia-se o mesmo Pontes de Miranda, Comentários à Constituição Brasileira de 1967, com a Emenda 1/69. 6 v. tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969 e Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932 (passim).
[17] Ver PONTES DE MIRANDA, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht (passim).
[18] Ver Pontes de Miranda, Vorstellung vom Raume (toda).
[19] Ver Pontes de Miranda. Introdução à política científica. Rio de Janeiro: Forense, p. 291 ss, 1983.

[20] Ver GUARDINI, Romano. Der HerrBetrachtungen über die Person und das Leben Jesus Christi. Zweite durchgesehene Auflage. Würzburg: Werkbund-Verlag, 1938, p. 374-384.

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