quinta-feira, 4 de março de 2010

POSITIVISMO E CIÊNCIA — ESCORÇO HISTÓRICO: DOS PRÉ-SOCRÁTICOS A PONTES DE MIRANDA


POSITIVISMO E CIÊNCIA — ESCORÇO HISTÓRICO: DOS PRÉ-SOCRÁTICOS A PONTES DE MIRANDA [1]

Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor de direito aposentado (Universidade Católica de Santos, São Paulo).


SUMÁRIO:
PREÂMBULO.
I — INTRODUÇÃO: a natureza cíclica das três mentalidades: empirismo, racionalismo e ciência.
II — HISTÓRIA DA POSITIVIDADE: l) Tateamento e progresso da positividade. — 2) De Anaximandro a Pitágoras. 3) De Demócrito a Epicuro (noções de "relatividade" e de "adaptação". 4) Hibernação da positi­vidade. — 5) De Grosseteste a Francisco Suarez (os fatos; o singular). — 6) De J. Kepler a Francis Bacon (acontecimento, matematização e indução-experimentação). — 7) De Descartes a Hume (descritividade, sensação, pensar com segurança, o "dado fático"). — 8) Augusto Comte (teologia, metafísica e positividade; imobilismo comteano). — 9) De Feuerbach a Büchner (sem alienações; transformação possível do social; o cérebro). — 10) De Darwin a W. James (Mach e "adaptação", hereditariedade, descrição das relações). — 11) No Brasil, antes de Pontes de Miranda. — 12) Do Círculo de Viena a metalinguagem (lógica material, semiótica, significado da linguagem, impessoalidade do conhecer científico, beleza da metafísica, metalinguagem).
III  — PONTES DE MIRANDA: correções, superação, síntese, novos passos (grande altura da Ciência na filosofia, na sociologia e no direito). 
IV  — CONCLUSÕES: a relevância prática da teoria do conhecimento em diferentes experiências existenciais (processos sociais de adaptação); valor e limite da Ciência; sua importância no Direito é superior ao papel da filosofia.


PREÂMBULO. O objetivo desta pesquisa é mostrar a importância prática da teoria do conhecimento. Diremos que o pensador de qualquer assunto tem de cuidar-se para ele próprio não prejudicar os resultados da sua ação de pensar. [2]
Referimo-nos ao ato de pensar com o fim de obter conhecimento intelectual (o conhecimento intelectual mais puro que o homem possa alcançar). Para tanto é de mister ter respeito enorme pelo fenômeno transubjetivo, isto é, tomar cautela para o eu (subjectum) retirar-se o máximo possível dessa atuação mental. A presença do ego (subjectum) mistura realidades, as existentes fora do eu, com a subjetividade. Um dos estratagemas necessários é o apreço pelo dado, pelo fato. Esta consideração fundamental cumpre que ocorra em duas fases do raciocínio: na observação inicial — para a indução ser feita com menos perigo de erro — e na conferência final entre a generalização permitida pela indução feita e os fatos inicialmente observados. Em poucas palavras temos aí o método indutivo-experimental.
Geralmente falando é comum as pessoas acoimarem pejorativamente de positivismo (no sentido de A. Comte [3]) a importância dada aos fatos, de que depende a validade cognitiva das generalizações. São pessoas para as quais as filosofias são o caminho para se obter a verdade; o mais seria timidez intelectual, pobre; porque as filosofias são arrojadas. São assim no sentido de darem saltos (malabarismos bonitos, sentimentais, agradáveis). Mas, pulos ornamentais não autorizados pelos fatos. Insistiremos neste ponto-cerne: o conhecimento "seguro", isto é, mais confiável, há de ser gerado pelo método indutivo-experimental: (a) observação de realidades factuais, (b) indução de proposição geral a respeito deles, (c) experimentação da proposição geral extraída mediante a confrontação dela com mais realidades factuais.
Eis aí a ciência positiva — o posto (donné) apreciado valorativamente acima da elucubração construída pelo "subjectum" (construit). [4]
Pode eventualmente causar espécie o quanto é ressaltado o valor científico das obras de F. C. Pontes de Miranda. Parece-nos ser um gênio ainda pouco conhecido e quase nada estudado atualmente no Brasil. Gênios não são freqüentes, em tempos quaisquer.  Pontes de Miranda é um gênio da ciência, embora não seja profeta na sua terra. Outros tampouco o foram. Convencem-nos os seus livros etc., objeto de nossa leitura sistemática anos a fio; por isso nos valemos continuadamente dele como sábio. Não porém a título de "argumento de autoridade". 

I — INTRODUÇÃO: a natureza cíclica das mentalidades: empi­rismo, racionalismo e ciência.
Mais aperfeiçoada que a "lei das três fases", desenvolvida por A. Comte, a ciência de hoje — com apoio até na psicologia profunda — apresenta-nos as três fases cíclicas do pensamento.
Primeira, empirismo — é aquela fase que se caracteriza pelo pluralismo da sensação, pelo conhecimento casuístico, singularizante, es­parso, discreto, particularizante, com incapacidade típica de se alçar as generalizações. Eis um primeiro momento do pensamento humano: voltar-se para os fatos.
Segunda, racionalismo — é a mentalidade monística de concepção do universo, mediante a captação apressada dos seres pelo apriorismo das generalizações. É o momento das abstrações coerentes (do ponto de vista formal), a ostentarem um edifício de boa travação lógica.

São abstrações que satisfazem a razão na sua necessidade (biológica e lógica) de uma justificação globalizante, com "aceitável" arcabouço ideológico. É o momento das sínteses grandiosas (e audazes, perante os fatos), da harmonia do eu "epistêmico" com o resto do mundo. É a fase cíclica do pensamento na qual a atenção se vai prender, ou melhor, vai se desenvolver livremente na idéia abstrata, geral, um tanto vaga. É o fácil patinar mental pelo qualitativo-categorial. Nota-se-lhe a tendência antropomórfica: os critérios estéticos, morais e religiosos a empanarem a segurança do conhecimento mais puramente indicativo-objetivo.
Terceira fase, ciência — atende-se ao particular com o máximo de impessoalidade, mediante rigorosa observação, descrição e classificação. O animal inteligente usa aí os seus melhores instrumentos intelectuais de precisão e de exatidão. O raciocínio matemático substitui o arco fugidio do pensar ontológico. O microfísico (já agora com os dados contrapostos da mecânica celeste — teoria da relatividade geral) toma o lugar do senso comum (o da física ingênua, desde Aristóteles até Newton, e o dos metafísicos dos nossos dias). A cada passo do pensar (pensar que é um pesar as relações apreendidas) as proposições são conferidas com o real. Só se induzem enunciados quando a realidade, analiticamente examinada, o permita. Os resultados da indução são continuadamente postos à prova dos jatos (= do real). O conhecer não é um ficar no concreto. Mas tampouco é um livre criar. É antes, um sujeitar-se, um eliminar-se do eu. O que sobra então é a natureza das coisas, a "realidade objetiva", a "verdade" que temos.
São cíclicas essas três fases. Co-existem esses três momentos do pensar humano, ora preponderando estatisticamente um ora outro. Vão e vem há história do pensamento. Em cada pessoa pode-se medir o peso maior, médio e menor de cada uma dessas três propensões. O mesmo se dá em etapas típicas da história do homem.
Na história da filosofia e, portanto, também na história da filosofia do direito, a maior preocupação dos autores volta-se sobretudo para o descobrir e estigmatizar o "positivista".  A referência mais correntia é ao empirista. Dirige-se muito pouco a atenção do crítico ao pensador científico. Assim se passa com filósofos, com jus-filósofos e com os historiadores da filosofia, ainda contemporaneamente. Englobam-se, numa só vaga classificação (com os acréscimos de neo-) os sensistas, os positivistas comteanos, os cientistas da filosofia, e os cientistas do direito. A estes se costuma chamar, sem a devida exatidão, de neopositivistas. Ocorre isto, erradamente, por exemplo, com Pontes de Miranda, cuja obra merece entendida, mas está ainda longe de ser conhecida pelos contemporâneos. É cientista, ele, e não um "neopositivista".

II — HISTÓRIA DA POSITIVIDADE
1) Tateamento e progresso da positividade.
Ao falarmos na positividade, nos seus momentos históricos, estamos nos referindo à história da filosofia, nos momentos e períodos em que a expressão é a de um pensamento voltado para os fatos, seja no começo da sua atividade seja no voltar a eles para conferir com os fatos a proposição, ou certo acervo de proposições, que se tenham induzido (e por vezes que se hajam deduzido, dentro ainda da mentalidade racionalista mesma). O elemento frisante, fundamental, é a atenção aos fatos, a obediência exatíssima à enorme complexidade do real; sem pressa de sínteses.

Cuida-se portanto de traçar os tateamentos de espírito humano, no fluir dos tempos, na sua cata indeclinável (determinística) dos objetos e dos sujeitos, busca necessária da adaptação cognoscitiva, com que se domina o real. Nem se nos esqueça que esse conhecimento é energia social que liga os homens. Trata-se portanto aqui de mostrar, através de bosquejo histórico, os momentos cíclicos do surgir daquele pensamento que se agarra ao concreto, seja nele lá ficando (mentalidade empírica) seja dele saindo para a generalização, mas voltando sempre aos fatos para conferir a validade objetiva da generalização conseguida (mentalidade científica). Um desses momentos históricos vai ser o positivismo em sentido estrito, passageiro como outros. E chegaremos ao momento mais alto da positividade, que é o pensar científico (nítido, exato, preciso, seguro) do que está posto antes do pensamento. Percorreremos os pensadores que ao menos em parte fugiram aos desvarios intelectuais da mentalidade racionalista. Alguns deles não passaram do empirismo, é certo. Outros se aproximaram da fase científica. Poucos chegaram mesmo até ela, inclusive no estudo e na exposição da teoria do conhecimento, e da sociologia, e do direito. Pontes de Miranda ao certo chegou até lá.
As datas postas neste trabalho servem para fixar, na história, esse momento do pensar. Referem-se ao ano da morte do pensador indicado.

2) De Anaximandro a Pitágoras.
Cuidados com a observação. Em Anaximandro (545 a.C.) encontramos a preocupação em conhecer concretamente a terra, que ele concebeu como sendo um cilindro, e que se propôs a medir (pensamento matemático). Chegou a pensar no homem como um produto da evolução a partir do peixe (antecedentes do pensamento posterior, de Darwin e de Spencer).
Vamos depois encontrar Heráclito (484 a.C.) com a proposição fundamental de que tudo corre e nada está fixo (πάντα ρει). Não se pode deixar de entrever aí, de algum modo, a concepção posterior de Einstein com a relatividade geral. Também Pontes de Miranda com a relatividade ainda mais geral, um acréscimo que Einstein acolheu por verdadeiro: o conhecimento, também o conhecimento geral, é gerado pelos fatores biológicos e sociológicos na sua interdependência fundamental. Por outra: os processos sociais de adaptação alteram o cerne mesmo do pensamento porque eles agitam (ou pacificam) o cérebro, alterando-lhe o movimento interno; move-se ele de envolta com as muitas "coisas" do mundo mais abrangente ("ambiente").[5] Torna-se, pois, mais relativo ainda o espectro conceitual do homem, desde a sensibilidade. A qüididade da coisa estudada, a sua "essência" (=jeto do ob-jeto), já recebe alguma tintura "ontológica" de coisas diferentes dela própria. De todo modo, se seguirmos os passos originais de Pontes de Miranda vamos chegar à descoberta da colheita do jeto, que ele descreve.  [6] Fica mais relativizado o espaço. Energia é capacidade de produção de efeitos — movimento, portanto. É só dentro do Espaço-Tempo-Energia que tudo existe e se move, independemente do que imaginamos que seja a "coisa", ou que ele se mova ou não.
Um pouco de metafísica a esgueirar-se. Em Parmênides (470 a.C.) deparamo-nos com o binômio ser-nada. Certamente ele construiu metafísica, e não ciência. Mas o encontro ser-nada, posto de relevo, serve à objetividade do positivo-negativo. Pense-se na teoria da eletricidade e na cibernética e, já muito antes, no conceito de quantidades negativas. De novo aparece, no pensar o mundo, o elemento quantitativo, a esboçar-se e a esgueirar-se no espírito com função de exatidão e segurança. É a potencialidade humana de adaptar-se pela Ciência do que está posto (positividade), ciência positiva.
Algo de matemática e física. Empédocles (432 a.C.) dá-nos os concertos de "elemento" e de "força", que a física usará largamente, após. Confirma-se a prestância cognitiva que está encaixada preciosamente no exame prévio dos fatos extramentais, antes de volteios filosofantes quaisquer.
Em 496 morre Pitágoras, no qual nos deparamos com as idéias de determinado (πέραϛ) e de indeterminado (α´πειρον) que se ligam ao pensamento matemático.

3) De Demócrito a Epicuro (noções de "relatividade" e de "adaptação").
Observação da natureza. Demócrito (370 a.C.) é um espírito universal. Estudou a natureza,e amplamente: os planetas, o espírito, a sensação, as cores, o átomo (descoberta, ou mera intuição notável), a lógica formal, o número, o ritmo, a medicina, a agricultura, as artes. Ocupou-se até com a vida depois da morte. Concebeu o átomo como espesso, impenetrável, pesado, indestrutível, indivisível, igual a outro átomo, em número infinito. Mereceu no nosso século a maior admiração de A. Einstein.
Enxergou Demócrito um pouco da relatividade. Percebe a subjetividade das sensações (νόμω), de modo que das coisas sabemos o que conhecemos. Põe ênfase na "natureza das coisas" (ϕu´σει). Acentua o quantitativo, e o quanto há de mecânico no fundo do vital. Nota-se aqui parentesco de pensamento com os aspectos mecânico e biológico, que Pontes de Miranda no nosso século veio a sublinhar no Direito como processo natural de adaptação. O Direito está muito mais à base dos fatos do que o permitiria o voluntarismo. É enganosa a "livre" escolha de regras jurídicas dentro da sociologia geral. Uma política autoritária terá contra si, mais cedo ou mais tarde, a rebelião dos fatos.
Para Demócrito a natureza são átomos em redemoinho. Notória vizinhança de pensamento com a moderna concepção do cosmos co­mo um enxame de conglomerados de galáxias, e estas como enxame de sóis (B. Russell, com apoio em Einstein e em Minkowsky).
Saber e vida na amplitude do social. Encontra-se em Epicuro (270 a.C.) a idéia de que não tem sentido a pura ϑεωρια τἤϛ αλἤϑειαϛ de Aristóteles. A sabedoria, o pensar, tem de ter um sentido adaptativo de mais felicidade. Lembra-nos a "adapta­ção, na conceituação precisa de Ernst Mach. Antecede também o vitalismo de Nietzsche ou de Bergson. Foram idéias que se repetiram em W. James. Vemo-las desenvolvidas com inexcedível clareza sistemática em Pontes de Miranda (os sete principais processos sociais de adaptação). Para Epicuro é infalível o conhecimento sensível (είδωλα); o erro surge e na opinião (δόϛα). "O nada não pode nascer do nada, e nada se reduz a nada": é um princípio que será formulado físico-matematicamente por Carnot-Clausius, com a conservação da quantidade e a alteração da qualidade da energia física. É pensamento que toca ao conceito de diminuição do "quantum despótico", de Pontes de Miranda. A atual concepção de causalidade estatística, prende-se à idéia de "acaso" (τuχη) do mesmo notável pensador grego.
4) Hibernação da positividade.
Longo período de mentalidade metafísica. Na história (conhecida) da filosofia, sobrevém depois de Demócrito um longo período de metafísica e de religião desde a patrística até a alta escolástica, sob os influxos do pensamento filosófico de Aristóteles e de Platão, sendo que o admirável gênio que estava em Aristóteles se comprometeu quase que inteiramente com o pensar "filosófico", com a mentalidade racionalista. É um fenômeno que ocorreu com muitos outros gênios do futuro, cujo pendor mais forte não era o da fase científica do pensamento. Ainda demoraria a arrancada maior e mais nítida do modo de pensar cientificamente. Mas não se cogite da inutilidade dessas fases.
5) De Grosseteste a Francisco Suárez.
Os fatos, o singular nas "ciências exatas". Em 1253 dá-se a morte do bispo inglês Robert Grosseteste, da chamada escola de Oxford. Teceu críticas ao aristotelismo com base nos comentadores árabes. É matemático e físico. Nesta última qualidade interessa-se pela óptica: linhas, ângulos, figuras, refração, cores, calor, movimento, tempo. São temas claramente centrais para as chamadas ciências exatas, que darão grande arranque ao tatear mais seguro do "pensar cientificamente".
Roger Bacon (1294), frade franciscano, manifesta interesse pela gramática e pela ciência da linguagem. Bem assim, cogita de achegar-se à matemática e à físi­ca. Mostra o valor cognitivo de "verdadeiro-falso", que pode advir-nos da ciência experimental. Procede à demolição do argumento de autoridade, que foi definitiva em ciência. Demonstra também aversão pelo saber espetacular que se pretende estar nas grandes construções cósmico-teoréticas, sem bases exatas (como mais tarde em Kant ou Hegel).
Migração da ciência positiva para o pensamento das filosofias. Falece em 1280 Santo Alberto Magno, que desenvolveu pesquisas de zoólogo e de botânico, sem se desprender contudo da preocupação metafísica. E seguem-se-lhe grandes nomes de pensamento metafísico: Santo Tomás, São Boaventura, Duns Scoto, N. Cusa e muitos outros.
Em G. Bruno (1600) vamos encontrar, ao lado do intuicionismo místico (influências de Cusa), uma atenção que se deixa atrair pela astronomia e por suas leis. É o pensamento próximo aos fatos, catando-os.
Atenção ao singular em contraposição com o "universale", insuficientemente crítico. Francisco Suárez (1617) é metafísico. Mas a sua construção desemboca na fundamentalidade ôntica do "ens singulare", de modo que o seu pensamento vem de encontro ao pensamento científico dos dias de hoje por outros caminhos. É direção coincidente, e já é admirável para aqueles tempos. [7]

6) De J. Kepler a F. Bacon (acontecimento, matematização e indução-experimentação).
Há em J. Kepler (1630), astrônomo, a importante idéia do simples acontecer como base da qual há de partir o conhecimento. Repete-se essa idéia em B. Russell, ao estudar a relatividade geral de Einstein. Essa idéia do "acontecer" retorna também em Pontes de Miranda, ao colocar no fato (ou seja, na relação) o objeto do conhecimento e o critério de aferição do valor "objetivo" do conhecimento. É o caso, por exemplo, da necessária análise segura do conteúdo das relações sociais (de Religião, de Moral, de Estética, às vezes do Direito mesmo, de Política, de Economia e de Ciência) para se chegar a correta interpretação (relativa) do sentido e da orientação das regras jurídicas — dentro de cada círculo social existente no mundo.
G. Galilei (1642) é nome marcante na história da positividade. Aplicou o método inductivo-experimental para descobrir a lei da inércia. Matematizou a lei física da queda dos corpos. Procedeu à prova experimental da descoberta de Copérnico contra Ptolomeu. Enfatizou o valor objetivo da generalização proveniente da indução, bem como o desvalor científico — de pesquisa, de progresso — do dedutivismo aristotélico. Cai o axioma "a priori" (formal, não efetivo-biológico) de que "a particulari ad universale non valet illatio". Está em Galileu o quantitativizar-se do conhecimento como base para as proposições verdadeiras sobre o mundo físico. É o que vemos hoje em Pontes de Miranda: a naturalidade do fenômeno social (é, pois, da experiência jurídica). O conhecimento social é matematizável ao menos em parte: tal é o caso, por exemplo, (1) do peso de frenação (freio para estabilidade da vida social) e de despotismo (autoritarismo, mando no fluir da vida social) de cada um dos processos sociais de adaptação; (2) o peso dos elementos declaratório, constitutivo, condenatório, mandamental e executivo — nas ações de direito material, nas sentenças e nos atos jurídicos administrativos "stricto sensu" —, (3) o peso de democracia, liberdade e de igualdade no crescimento do Estado. (4) Os cinco novos direitos do homem e seu grau de estabilização social. Além disso (também em Pontes de Miranda), a exata descritividade de dados genético-psicológicos, rigorosissimamente feita, como único método seguro para se chegar a gnosiologia segura (não hipostasiante, a priori, racionalista). Vai muito mais além que Husserl ou em Merleau Ponty.
P. Gassendi (1655) revela interesse pelo atomismo de Demócrito e dá-nos a idéia de movimento eterno, em espaço vazio. É uma idéia que se vai repetir em J. Locke.
R. Boyle (1691) reafirma a validade do método experimental para provar a existência do átomo (Demócrito) e do elemento (Empédocles), mostrando como matéria (όλη) e forma (μορφἤ) são "palavras vazias". É momento importante para crítica segura do hilemorfismo, ainda em voga na cosmologia escolástica do século XX.
Mas já encontráramos F. Bacon em 1626 a atrelar fortemente o pensamento aos fatos, ao real relacional. O conhecimento serve à vida. Note-se mais tarde o pragmatismo de W. James, e o vitalismo, bem como a "Existenz" — todos em oposição à dialética escolástica (mentalidade racionalista). É preciso estarmos a descobrir realidades para a vida continuar. Impõe-no a própria vida, como fato que é, com suas leis. Atente-se mais tarde em Pontes de Miranda, com a prova de ser o conhecimento um processo biológico. A ciência é um dos processos sociais de adaptação (com o máximo de indicatividade e quase zero de despotismo). É na ciência positiva que adquirimos o mais alto grau de livre disponibilidade do espírito. Baixa muitíssimo o enrijecimento das relações no interior da psiqué, causado pelo substancialismo, pela hipóstase (também pelas ideologias).
É apreciável em Bacon a descoberta crescente do valor transubjetivo da indução: não se pode, com acerto, dar lugar às idéias vagas; cumpre formar as idéias gerais a partir do real, com segurança, rigorosamente captado e induzido. Estes são momentos do pensamento que se repetem um pouco na fenomenologia de Husserl, na lógica do círculo de Viena, da psicologia e na lógica norte-americana, e em Plumpton Ramsey, Wittgenstein. Andou bem desenvolvido em Pontes de Miranda o conceito de ciência positiva. [8]
7) De Descartes a Hume (descritividade, sensação, pensar com segurança, o "dado fático").
Nessa linha histórica fica-nos, de Descartes (1650), o começo do método descritivo na observação dos movimentos do espírito; no fundo não é outra coisa o "cogito". Vem-nos dele também outro notável esforço pela matematização do corpo ("extension"). Semelhantemente quanto à segurança da apreensão matemática. Estas contribuições foram relevantes para aguçar a percepção dos objetos de tal modo que os conceitos formados foram a pouco e pouco se tornando mais exatos, mais rigorosos, mais precisos: aperfeiçoamento precioso do avanço no ato vital de conhecer. [9]


Deparamos em T. Hobbes (1679) o materialismo crasso: só há o corpóreo, o mecânico. Foi quiçá fruto da sua má compreensão de Galileu e de Descartes. De construtivo para a ciência aparece nele, contudo, a aversão à mancha escura do racionalismo metafísico-escolástico. Acentua, embora em demasia o sensismo: ele procura explicar o co­nhecimento como uma soma e uma subtração de imagens, mecanicamente operadas. Nega os universais (volta a G. Ockam, pois), co­mo nega igualmente qualquer lei natural de ordem. Portanto, para ele o direito seria arbitrário.
Curioso, como nesse empirista "puro" se chega, na busca da compreensão do direito, à mesma concepção arbitrária em que, a seu modo, sucumbem os racionalistas: um produto cerebral, mais ou menos arbitrário. É como se não pesasse definitivamente a natureza das coisas, o determinismo relativo, oriundo do princípio da "determinação única" (J. Petzoldt, Einstein e Pontes de Miranda [10]): o teorema de Gauss (a menor força) é expressão analítica deste fato experimental — os fenômenos da natureza são determinados de modo único e todas as propriedades de qualquer complexo são rigorosamente dependentes da sua estrutura energética, a qual influi necessariamente no próprio observador desse sistema, que é o homem (eis aí parte da relatividade ponteana, mais geral que a einsteiniana).
Contra a abstração vaga, a generalização infundada. Em 1704 foi a morte de J. Locke: para ele — "no characters" na alma; a "sensation" (externos), a "reflexion" (internos). A "idea" da "mind" é conteúdo de representação. Nota-se-lhe o método descritivo, que deve levar o pensamento a "precise naked appearances". Frisa a importância da memória e da lembrança, que põe a psicologia junto à gnosiologia (genética e dados concretos). As "general ideas" vem de comparação dos semelhantes (nesse sentido, antes, Francisco Suárez). "Substance" é o que desconhecemos. [11] Os juízos "a priori" (conceitos universais), as proposições lógicas e todas as abstrações são vaguidades cujo conteúdo haverá de ser conferido com o físico para verificação da sua consistência cognitiva.
Note-se como o espírito do homem retoma este mesmo caminho mais tarde: as geometrias não-euclidianas, a filosofia da matemática; de igual modo o teorema de Goedel, ou seja, a incompletude ou indecidibilidade — nenhum sistema pode ser entendido e justificado senão por referência a outro, externo ao primeiro; ora, a este segundo sistema ocorre o mesmo, de modo que assim será indefinidamente. [12]
Tira-se daí a consciência de quão modesto é o conhecimento humano. Cabe todavia um reparo contra o derrotismo cético. Conhecemos muito pouco, e de quase nada, sim, mas algo sabemos. Só que com a certeza humana. Diz-se com acerto que verdade é a proposição ou o conjunto de proposições que, num certo pedaço de espaço-tempo-energia (mundo), se tem como tal. A convicção pode alterar-se e conseguir-se-á mais acerto, contanto que a mudança se dê com base em dados novos. Verdade é aquilo que, em certa época, os mais preparados estudiosos conseguem demonstrar como tal. Não houvesse algum conhecimento seguro, não experimentaríamos os avanços da tecnologia na vida atual. Negar a escrita, o aprendizado de idiomas estrangeiros, o automóvel, a aviação, a observação por satélites, a televisão, a internet, a medicina etc. etc. equivale à perda da saúde mental.
Outras insistências no valor da observação dos fatos. De Locke é o psicologismo que preparou Hume e Comte, em tateamentos do pensar científico a se desenvolver: não há idéia trans­cendental verificável. Ela é apenas opinática, segundo o processo seguro e exato da adaptação cognitiva do homem. Eis aí um toque na ciência em sentido estrito, na ciência positiva de que estamos a falar.
D. Hume (1776) ocupou-se em explorar o caráter vago que há na "ciência aérea", isto é, no pensar metafísico da ontologia clássica como na filosofia escolástica. Há os "feelings" e as "ideas". O raciocínio é um tipo de "gravitação" (associação). É grande a importância no progresso do conhecimento, das proposições de "matters of fact", que não são porém, "necessárias": o sol nascerá, a água afoga quem não souber nadar.
Limites do só fato empírico. Tem-se em Hume, entanto, mais um pensador inglês que não conseguiu ultrapassar o empirismo: a lei física é indeterminada; é só mera expectativa (donde o ceticismo). Não percebeu Hume que toda a lei é, para nós, estatística, mas há igualmente o princípio ora demonstrado da determinação única ("Eindeutigkeit" de J. Petzoldt), que os dados vão confirmando, e de que a tecnologia atual se aproveita com êxito confirmatório. Esta última convicção da ciência é da maior importância para a Sociologia (e portanto para o Direito): a regra jurídica, se for um fruto de indicação não-científica, é errada e tumultuária. Não se pode pois extraí-la de raciocínio apriorístico, racionalista (ex.: "direito natural"), nem pode ela resultar de despotismo algum. Ela está na natureza das coisas, em determinado espaço-tempo do círculo social. Cumpre descobri-la, revelá-la com extremo cuidado, e não "inventá-la" livremente, segundo a convicção filosófica pessoal, ou ao sabor de ideologia acrítica. Não: temos de lidar com as realidades mundanais de acordo com os dados extra-subjetivos recolhidos — caminho mental da ciência positiva.
Muitas são em Hume as assertivas que não se compadecem com novas aquisições mais seguras do pensamento. Ele teve a impressão de que tudo quanto sabemos só provém de nós próprios; somos "a bundle or collection of different perceptions... in a perpetual flux and mo­vement". Parece ser esta uma questão bem superada pela atual filosofia da existência, pela psicanálise de Freud e de Jung, pelos trabalhos de Piaget. Ha um ego "central", que tende a captar o ser como ser. O esforço filosófico é inapagável no homem por causa da sua dimensão racionalista — que tem parentesco com a propensão ideológica e com o processo místico da adaptação religiosa, igualmente ineliminável no ser humano. [13] É momentoso porém não tomar as convicções da filosofia (e das religiões e da ideologia) como se fossem dotadas da precisão e segurança próprias do enunciado da Ciência. Há na religião uma vivência humana de outra natureza, e não desprezível para a vida.
Mas não é de menosprezar em Hume o destaque dado por ele ao fático, ao dado — dado que, no fundo, desgosta ao homem metafísico, no seu tanto... Pois Hume acentua os cuidados que se hão de tomar contra os saltos juvenis do pensar racionalista, da especulação metafísica. Em ambos os casos, as "proposições" são inconferíveis com o real. São resultados incertos, ao contrário dos conseguidos pela prudência e humildade da Ciência: mais segurança, mais exatidão, mais clareza, mais confiabilidade cognitiva, mais progresso efetivo no gnoscere (ato de geração de conhecimento). parq
3) Augusto Comte — teologia, metafísica e positividade; imobilismo comteano).
A. Comte (1857) é tão-somente um dos momentos, de alguma importância preliminar, na história da positividade. Como Kant diz ele o que se nos apresenta é o φαινόμενον νοu´μενον, o desconhecido da "coisa em si"' (para Pontes de Miranda, da "coisa em si" nós sabemos apenas a existência geral, no sentido matemático). Comte formou-se em ciências exatas aos 18 anos. Manteve contactos continuados com os membros do "Institut des Sciences". Para ele a filosofia tem de ser a "positiva": nem "natural" nem "das ciên­cias". Tampouco a filosofia científica, que ele não chegou a prever com a especificidade de hoje. Mas, de algum modo ele a tocou: a filosofia tem de ser o estudo das conclusões gerais das ciências particulares. Have­rá ela, por fim, de submeter-se ao método único das ciências: observação, indução e experimentação. Tudo isso em lugar da teologia e da abstração, dois primeiros estágios da lei dos três estados (religião, metafísica ou abstração, e ciência positiva).
Ingenuamente Comte não contava com a evolução nem com a relatividade. Pensava ele ter fixado definitivamente a ciência. Imobilizou-se, pois. A ciência, entretanto, por ser processo social de adaptação, dentro do contexto real de espaço-tempo-energia, aumenta sempre em qualidade e em quantidade de elementos. E altera-se. As proposições verdadeiras vão sendo gradativamente corrigidas, com mais acertos, acertos crescentes, no fluir expansivo do espaço-tempo real. Não poderia Comte senão deixar-se ultrapassar (e com certa rapidez), apesar de ter contribuído para o avanço do espírito científico num certo compartimento do espaço-tempo social, que já ficou atrás.
Deve-se-lhe em parte a subordinação do sujeito cognoscente ao fato, depositando-se sobre esse jorros e mais jorros de luz — temos de afirmar —, para que o fato seja percebido em todos os seus contornos, inflexões, dimensões, aspectos, inspectos e relações. Mas dentre esses fatos estarão sempre também os religiosos. E não se extirpará nunca da natureza atual o critério de ultra-sensível, próprio da reli­gião tal como a encontramos em todas as épocas da história. Não uma religião positiva, mais ou menos coincidente com o Estado. O que, sim, ocorrerá é uma religião cada vez mais social. Parece que o fato de a Religião ser cada vez mais aberta aos problemas sociais comprova outra regra mais geral: o princípio da integração crescente dos círculos sociais.
Foi também útil a obra de Comte no sentido de diminuir a arbitrariedade do pensamento que, com ele, se prendeu a imposição necessária e salvifica dos fatos. O espírito humano, ao pensar e ao externar o pensamento — afirmamos hoje —, haverá de conter o máximo possível de indicatividade, e o mínimo crescente (talvez assintoticamente crescente) de impositividade do eu (imperatividade), em função dos dados relacionais, tanto sensíveis quanto intelectuais. Obtém-se assim — com eficaz proveito para a vida — o máximo de acerto possível, dentro da relativi­dade do espaço-tempo-energia. É o caminho da consciência, para que avance com segurança na adaptação geral, aumentando a felicidade possível dos homens. Na política jurídica o imperativo haverá que ser extraído dos in­dicativos, e não "da vontade de poder", ou de fatos dispersos, isolados, empíricos. O contrário é fonte de dificuldades e de crises.
Outro passo ainda para o qual colaborou Comte foi no acentuar a importância do rigor metodológico para que se possam aceitar as proposições como verdadeiras. O sistema destas é que constitui a ciência: conhecimento seguro, exato, preciso e, por isso, socialmente útil (para a religião, a moral, a arte, o direito, a economia e a política).
Não se confunde certamente o positivismo de Comte com o empirismo do tipo Locke ou Berkeley: mostra o filósofo francês ser possível induzir-se lei dos fenômenos naturais. Logo, é viável um conhecimento geral do real: matemática, física, biologia e sociologia (termo que ele foi dos primeiros escritores a empregar).
Ainda lampejos da indução. Stuart Mill (1873) explora o associacionismo. Frisa a indução, ao modo de F. Bacon. Influi na psicologia experimental: Weber, Fechner e Wundt na Alemanha; Lombroso e Ferri na Itália; W. James nos Estados Unidos.
9) De Feuerbach a Büchner (sem alienações; transformação possível do social; o cérebro).
Feuerbach (1872) criticou em Hegel a supremacia da idéia, produto mental. O que temos é a energia material. E nisso erra: exagerar o enrijecimento das relações até a só matéria bruta. Colabora, todavia, com o avançar da ciência quando procura mostrar os inconvenientes das divagações metafísicas sobre o universo: alienação do pensamento, primeiro, e da própria vida social, depois. A menos que a Ciência as depure ao máximo...
K. Marx (1883) não se basta com a volta ao real estático. É de mister transformá-lo, fazendo a história, diz ele. Reconhece a importância da política e da economia (e nesta comete erro de exageração) como processos sociais de adaptação. Descurou a importância que existe na natureza social das energias da estética, da moral e da religião. Não as percebeu com a argúcia moderna que esta num Pontes de Miranda.
Daí aliás a grande diferença entre o socialismo marxista e o socialismo científico de Pontes de Miranda: (1) democracia, liberdade e igualdades; (2) os cinco novos direitos do homem: ao trabalho, a subsistência, a educação, a assistência, ao ideal; (3) o Estado técnico-constitucional de fins precisos: são os cinco direitos humanos, subjetivados com pretensão e ação contra o Estado; não podem ser objeto de reforma da Constituição.
Faltou suficiente ciência a Marx quando se desapercebeu da tecitura social total, feita dos vários processos sociais de adaptação, susceptíveis de medida, quanto ao grau de frenação e quanto ao grau de despotismo (força, mando).
Na história do pensamento científico não se pode menosprezar a contribuição do chamado "materialismo científico", de Vogt e de Büchner, particularmente naquilo em que chamaram a atenção dos pensadores para a importância da função do cérebro. É matéria que muito vai interessar à psicologia, à psiquiatria e também à filosofia científica atual, não-monista.
10) De Darwin a W. James (Mach e "adaptação", hereditariedade, descrição das relações).
Darwin (1882) trouxe a enorme contribuição da descoberta da seleção e da evolução, que tanto enriqueceu a sociologia de hoje. E já Lamarck (1829) adiantara o conceito de "adaptação" que E. Mach desenvolveu. E mais ainda Pontes de Miranda, que a revelou, nítida e precisa, no Direito.
São também nomes de antimetafísica, mas já ligados ao antidealismo propriamente dito, os de Ziegler (1918) e Dühring (1921).
H. Spencer (1903) foi engenheiro. Sua contribuição valiosa situa-se na realidade da evolução, com o estudo na sucessão das formas, com os seus correspondentes sistemas nervosos. Sur­ge a tese, importante para a relatividade gnosiológica, de o próprio princípio de não-contradição ser aquisição social (a ciência como processo social de adaptação!), através da hereditariedade.
Com pensamento de certo tropismo assemelhado a Spencer vamos encontrar, em anos recentes, a obra de Teilhard de Chardin. É digna de atenção a interessante transcendência, para o campo da religião, que está na obra desse religioso e paleontólogo francês. [14]
Contemplação e ação. W. James (1910) e C. Peirce (1914) são dois nomes ligados a certo rigor de pensamento científico. Nem o indivíduo nem a sociedade contemplam apenas. Agem. O homem é animal que não pode deixar de, atuando, buscar o equilíbrio. Ora, o que leva a tal equilíbrio é o realmente vital. São fatos. Assim, a medida da eficácia dos movimentos de religião, de moral e de ciência pode fazer-se com o critério valorativo da ação. É o critério de verdadeiro (temos de dizer estar na experimentação a importância para a aquisição mais segura de proposições verdadeiras). São conhecidas as influências desse pensamento no inglês Shiller e em Bergson e em Blondel.
Pluralidade relacional na adaptação. Nem se poderia deixar no olvido o empírio-criticismo de R. Avenarius (1896), com o seu estudo descritivo das relações eu-tu. Em 1916 falece E. Mach, um dos notáveis analistas do pensamento com aprofundados estudos sobre a física e a sensação. Está neste pensador um dos avanços importantes na descoberta do conhecimento como processo biológico de adaptação, em que se observa o máximo de economia diante da pluralidade posta à experiência dos sentidos e da inteligência. Trata-se de perspicaz analista das relações não-sensoriais. Assoma, uma vez mais, a ênfase da relevância do método indutivo-experimental para as chamadas "ciências do espírito", cuja dicotomia com as "ciências da natureza", Pontes de Miranda vai longamente mostrar que é artificial.
Se o positivismo fosse hoje termo culturalmente apto para designar Ciência (sem que ela tivesse passado pelas mãos de Comte e de outros que não conseguiram pensar sem estarem influenciados por Comte), então E. Mach, seria, no dizer de Pontes de Miranda, o verdadeiro instituidor do positivismo (sem sentido pejorativo) porque não desconhece a evolução nem a relatividade com todas as suas conseqüências científicas.
11) No Brasil, antes de Pontes de Miranda:
Há a lembrar, no Brasil, o positivismo de Miguel Lemos (1916), de Teixeira Mendes (1927), sendo que morrera em 1889 um convicto repetidor das posições de Comte (sobretudo em matéria de política e de religião), que foi Pereira Barreto.
E em 1914 falecia Silvio Romero, critico literário, materialista irrequieto e instável. Viu ele, contudo, o que chamou de "fenômenos culturais", ou "criações fundamentais do homem", que são independentes e irredutíveis. Não foi exato em classificá-los, nem era homem de cultura científica suficiente para fazê-lo. Mas o que enxergou eram já os processos sociais de adaptação, que foram retomados e como que reencontrados reveladoramente por Pontes de Miranda, em sistematização e aplicação a toda a sociologia (de maneira ainda não igualada, pensamos). É uma descoberta insuficientemente conhecida por ora pelos círculos científicos mais adiantados da atualidade. É o caso, por exemplo, da escola de Piaget, a despeito da sua imensa bagagem científica e admirável rigor metodológico.
12) Do Círculo de Viena a metalinguagem (lógica material, semiótica, significado da linguagem, impessoalidade do conhecer científico, beleza da metafísica, metalinguagem).
Grande influência neste século tem tido a chamada escola de Viena. Referimo-nos à primeira delas, fundada em 1924 por M. Schlick (1936). Trouxe à filosofia científica os resultados construtivos da ló­gica material. Interessante observar como o conceito desenvolvido por M. Schlick de "reine Zuordnung" tem proximidade gnosiológica com a consciência de relação de Pontes de Miranda (em O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972; capítulo IV, p. 229 e seguintes).
Foram valiosas as investigações lógicas empreendidas por R. Carnap, H. Hann, L. Wittgenstein (este foi discípulo de B. Russell). Compõe-se de conceitos a proposição. Ao conceito corresponde o símbolo (sinal). Daí a importância gnosiológica do estudo dos si­nais, com os quais se exterioriza o pensar. Assim, o estudo da semiótica compreende a sintática (relação formal dos símbolos), a semântica (relação dos símbolos entre si) e a pragmática (relação dos símbolos com o intérprete).
Atente-se nessa matéria, na filosofia científica dos nossos dias, para a obra de Pontes de Miranda sobre a apreensão, nas suas raízes biológicas. Ao empreender o estudo dos sinais, leva as pesquisas so­bre o étimo até às vozes dos animais, das quais o homem tomou vários sinais sonoros (“Garra, Mão e Dedo", São Paulo, 1953).
Mas, também fora do chamado "Círculo de Viena" os estudos de logística e de lógica matemática abriram novos caminhos sobre o significado da linguagem. É fácil verificar a importância das descobertas por ocasião de tais investigações, diante do muito de subjetivo que se reconheceu estar na nossa linguagem.
Muito subjetivismo começou então a ser raspado, ganhando-se em objetividade, afastando-se antropocentrismos. Reconheceu-se o intrincado dos sete principais processos sociais de adaptação, que se entremeiam biologicamente uns com os outros. Há que se por atenção nesse cruzar de linhas e de impulsos, porque o critério religioso e o estético podem facilmente turvar a limpidez do conhecimento seguro da indicatividade pura, em que as projeções do eu (estética, religião, moral) se reduzem, por "Denkökonomie", a um mínimo desprezível.
Chegar a esse mínimo desprezível é o ápice suportável, possível da Ciência no avançar do homem a caminho de mais impessoalidade do seu co­nhecimento, no complexo real de Espaço-Tempo-Energia. É que a linguagem é, já por si, outro processo social de adaptação, embora sem a relevância ("pondus") dos outros sete, que são os principais. Outros processos de adaptação social existem ainda, como a moda (a "filha miúda do tempo", no dizer pitoresco de Pontes de Miranda), o bom-torn, a cortesia. Mas todos eles não têm a decisividade de "deformar"' (= conformar) o homem. O homem resultou da assembléia (e não "e converso"). São decisivos para entender Homem e Sociedade, os sete princi­pais processos sociais de adaptação: Religião, Moral, Arte, Ciência, Direito, Política e Economia (em ordem decrescente de estabilidade ou de capacidade de frenação — exceção feita da Ciência, que quase não frena nem instabiliza, porque tende apenas a indicar. A ordem decrescente de força de mando (= quantum) despótico é a seguinte: Política, Econo­mia, Religião, Direito, Moral, Arte e Ciência.
Ora bem, a estruturação verbal da linguagem funda-se na substantivação, que é porém função de sinais (meios de transporte de conceitos e de proposições). A linguagem não coincide sempre com a função cognoscente, que lhe fica à base. A vantagem da lógica-matemática é da logística (mesmo quando não enriquecida ainda pela genética) está em separar a ganga da função lingüística, desprendendo-a da solidez do pensamento na sua função biológica específica, de extrair o jeto (desligado do sujeito cognoscente e do objeto).
Em geral o metafísico enrosca-se, por assim dizer, nesse realismo ingênuo da linguagem. Por mais culto, versátil e perspicaz que seja o filósofo, se não proceder a essa depuração, cujos instrumentos foram tão bem desenvolvidos pelos movimentos de logística e pela "filosofia científica de Berlim''' (Kauffmann, Reichenbach, Dubislav,
Pontes de Miranda), então o filósofo cai no que mais lhe encanta e embevece: "transcender". No pensar metafísico o homem é biologicamente impelido a transcender e a hipostasiar — por força de religião, ou de moral, ou de estética. Na atividade de conhecer o prejuízo estará nos fatos, ou seja, na realidade...
Pensando estar a fazer ciência, a descobrir a verdade objetiva, o pensamento metafísico está a espelhar-se a si próprio no que busca exteriorizar objetivamente. Não se desvencilha da relação cognoscitiva no momento certo de extrair o jeto (sem a carga do sub e sem o peso do ob). Eis o fenômeno típico que está em toda atividade intelectual especulativa ("speculum") — o sujeito cognoscente vê a realidade objetiva através do reflexo da sua própria imagem. É como o homem que observa as algas e os peixes que estão no fundo do lago. Olha e simultaneamente vê o espelhar-se da sua própria imagem, que se formou à superfície do líquido.
Esta é a causa de as grandes e belas construções metafísicas (escolástica, Kant, Hegel, Leibniz, Spinoza, N. Hartmann e outros muitos) serem assim tão belas e tão grandiosas: é pelo que têm de conteúdo religioso, moral e estético. São fortes as cargas de ressonâncias e de imagens do eu quando anda à cata do ultra-sensível, do digno e do harmonioso. Atuam ai os processos de adaptação cujos critérios são exatamente os próprios da religião (mesmo a não-deísta), as da moral e da estética.
Ora, a linguagem, que também é biológica, vem carregada de sugestões inconscientes, que o sujeito (sub-jeto) nela destila. Claro, pois que, não decantada a linguagem, muito se constrói, mas sem verificabilidade objetiva: há o demasiado vago da linguagem inconscientemente sugestionada por processos místicos, ou estéticos, ou morais. Aí está o modo como se dá a especulação, e como se estrutura a mentalidade metafísica. Gênios e grandes talentos se entregam a essa inebriante ativi­dade intelectual (carregada de velado romantismo). É, sim, Vida mas não ciência: não há ai verificabilidade, exatidão, segurança no processo cognitivo.
Nesse ponto encontram-se as linhas do positivismo (no sentido de A. Comte) com as da filosofia científica (quais as da escola de Berlim, com Pontes de Miranda): as proposições da metafísica não se podem dizer certas ou erradas. São linguagem sem conteúdo e sentido de lógica material — são proposições inverificáveis.
A filosofia da ciência. Não se poderia deixar de mencionar aqui a "filosofia da ciência" que se desenvolveu nos Estados Unidos: Morgenbesser, Quine, Good­man. Sua principal preocupação é a justificação precisa do emprego do método científico.
Ainda na Europa, fora do "Círculo de Viena", são construtivos os estudos de B. Russell, Cantor, Whitehead: sentido de termos de proposições, busca de uma metalinguagem com o propósito de se afastarem as desvantagens da linguagem correntia, do discurso comum. Substituí-lo por linguagem ao máximo isenta de sugestão. Algo assim como a lin­guagem matemática, que é a única compatível com a expressão de certos fatos da natureza. Caso, por exemplo, do fato complexo da relatividade geral de Einstein.
Tentativas de filosofia científica no Brasil acham-se também em Euryalo Cannabrava (+1981), um antiaristotélico que já fora heideggeriano. [15]

III — PONTES DE MIRANDA: correções, superação, síntese, novos passos (grande altura da Ciência na filosofia, na sociologia e no direito).
Pontes de Miranda (1979) é o nome que nos parece de maior destaque na filosofia científica, até o momento. É até hoje (e parece-nos que continuará a sê-lo por muito tempo) o cume mais alto do pensamento científico filosófico mundial. Já em 1937, com "O Problema Fun­damental do Conhecimento" (a segunda edição do livro é de 1972), superava a logística pura das escolas de Viena e de Chicago, recolocando a psicologia (genética) no problema da gnosiologia, que fora esvaziado em demasia pelas investigações lógicas posteriores a Husserl (sendo ainda idealísticas as deste!).
Destaque-se o seu estudo da origem dos símbolos, buscados à zoologia e a biologia geral (para além da psicologia propriamente dita). São eles factualmente estudados na sua fonte e no seu derivar-se das vozes dos animais. Junta-se a isso o estudo biológico da apreensão, no decorrer da história animal (a garra, a mão, o dedo).[16] Assistimos com ele a história natural do pensamento, feita pela sucessão evolutiva dos dados biológicos.
O "jeto" é típico da filosofia científica de Pontes de Miranda. Ele é o "universal” que está no real, basicamente. Não só dos substantivos e dos adjetivos se extraem os jetos. Também das preposições, advérbios e verbos. A extração do jeto nos devolve a pureza da relação original ser-ser, da qual nos afastamos na formação gené­tica de apreender o real, eivados dos vícios que milenarmente a acompanham. Em verdade, o conhecer é um sujeitar-se: tem-se o jeto quanto se tira o sub (conhecimento do eu, consciência do eu) e o ob (prescindir da oposição do ob-jeto, daquilo que lhe é específico), e da própria idéia de relação (o hífen).
A minuciosa e rigorosa descrição lógica, e suas constantes depurações, não bastam para se chegar a exatidão de gnosiologia. A carga psicológica, que nos liga ao bio-zoológico, é elemento complexo a que Pontes de Miranda está atento, nos pormenores mais delicados e sutis da sua análise descritiva, de excepcional rigor.
A esse estudo dedica-se Pontes de Miranda com o mesmo método rigoroso da indução-experimentação, que caracteriza o estudo da física e da biologia. Vê-se aí uma posição metalógica origi­nal. Ela parecerá mesmo uma filosofia "bárbara" ao metafísico que não estiver a par dos mais penetrantes recursos da lógica matemática, da microfísica e da psicanálise.
E é dentro da mesma metodologia, de descritividade, e com crítica sutil, que Pontes de Miranda analisa as questões da sua extensa obra jurídica, e a sua inspiradora obra sociológica. Sem procurar fazer "ligações filosóficas" (luta ele contra todo artificialismo substancialista), a obra ponteana se caracteriza por perfeita coerência. É sistema induzido do real. Nada há nele de construção antropocêntrica. É, pois, trabalho de Ciência.
Nessa perspectiva de exatidão e de precisão imposta pelos fatos, apreendidos estes com os métodos seguros da matemática e da mi­crofísica (Pontes de Miranda domina amplamente esses dois ramos do saber) e que é feita a descoberta dos sete principais processos de adaptação, da estruturação do Estado moderno, dos cinco novos direitos do homem, da análise sócio-psicológica, das cinco classes de ações e sentenças, das cinco classes dos atos jurídicos "stricto sensu" etc. etc. etc.
Também quanto ao direito, é pela lógica material, ou seja, pela organização do pensamento segundo o resultado estabelecido pela análise do conteúdo das relações sociais, é pela lógica material, repito, que se pode penetrar cientificamente no mundo jurídico, sem subjetivismos (por mais atraentes que sejam). O direito é um processo de adaptação próprio da Natureza, de que o homem faz parte. Na sua análise ter-se-á de atender à orientação e ao sentido das relações sociológicas. Elas atendem às leis mais gerais da Natureza: a de integração crescente dos círculos sociais, a de diminuição do "quan­tum" despótico, a de simetria, a de determinação única ("Eindeutigkeit").
Temos de afastar toda pesquisa referente à vontade do legislador (mistura da adaptação jurídica com a adaptação política) e retirar qualquer preocupação com o "espírito da lei" — conceito vago, metafísico, hipostasiado. Os fatos mesmos, com base nas descobertas da física e da biologia, é que nos dão o critério impessoal: para onde anda deterministicamente a Natureza. A energia (também a sociológica) mantém-se em quantidade, mas altera-se na qualidade, por causa da expansão do cosmos. O universo em expansão não é apenas o físico. Há a mesma prova (não princípio metafísico!) para as energias sociológicas, cujas classes principais são: Religião, Moral, Estética, Ciência, Direito, Política e Economia (em ordem decrescente de capacidade estabilizadora). Essas mesmas energias da natureza tem o seu quanto de despotismo, de "mando", de imperatividade das suas leis, de impositividade na sua regração sobre os seres humanos, na seguinte ordem decres­cente: Política, Economia, Religião, Direito, Moral, Estética e Ciência (nesta, quase zero).
Esse dados, tirados da natureza (pelos métodos de observação, classificação e experimentação), além de explicarem muitos fenômenos, tornam-se instrumentos mais dóceis à intervenção consciente do homem para atuar com acerto no trato com o complexo das energias sociológicas.     
A movimentação geral no espaço-tempo dessas energias todas, atuando inclusive sobre o sistema nervoso central de cada observador, constitui a relatividade mais geral que se conhece (mais geral que a segunda teoria da relatividade de Einstein, de 1915). À medida que o método científico avança, diminui o subjetivismo do conhecimento e tende a dissipar-se a quantidade de mando, de violência, de arbítrio nas interações humanas. Jurista é aquele que entende certo sistema jurídico. Cumpre notar porém: a lei é apenas uma pequena parcela do direito, uma técnica (=fixação de posições) na adaptação jurídica. Por isso, o jurista tem de trabalhar com os dados da ciência do direito, sem lhe importar a imaginação criadora de suas preferências metafísicas, estéticas, políticas, econômicas etc.
Ora, o direito é apenas um dos processos sociais de adaptação, dos sete mais importantes. Sofre ele a influência interativa dos outros todos. E também, de seu turno, influi nos outros seis. Evidente pois que, para se saber do sentido e da orientação de determinada regra jurídica, o jurista (como o juiz, o advogado, o consultor etc.) tem de levar em conta o conteúdo de todos os processos sociais de adapta­ção. É impossível uma teoria pura do direito, como pensou H. Kelsen. Seria um direito vazio: lógica de conceitos, formal, abstrata, desligada da realidade existencial. Não seria Vida, que tem a compactude de todos os processos de adaptação, e em que entram todas as forças físicas e biológicas da Natureza, na qual somos e nos movemos.
Mais especificamente, entrando-se ao exame da adaptação jurídi­ca, haverá de levar em conta o jurista (sociólogo especializado) os cinco aspectos do direito: o mecânico, o biológico, o sociológico, o ideológico e o técnico. Sem isso, não entenderá a natureza do direito, e nem portanto a de um determinado sistema jurídico. À base do ju­rista tem de estar o sociólogo. E quem diz sociólogo, diz lógico, matemático, físico e biólogo. Eis o caminho fecundo e promissor da Ciência do Direito, que deve tomar o lugar das inúmeras e infrutíferas preocupações dos "filósofos do Direito". Assim é se queremos servir à Vida, e vivê-la mais integral e integradamente.
A função adaptiva do direito atende à garantia mais do que à coercibilidade. Essa garantia ou segurança é dupla: a intrínseca (o acerto das regras de direito) e a extrínseca: a certeza (estatística!)[17] de que as regras serão aplicadas como as entenderem os aplicadores. Aí está o drama: por o direito não ser estudado com bases científicas, é comum que a exegese das normas saia errada, distorcida, de tormentosa suportabilidade. Cumpre lembrar que a estatística funda-se na probabilidade de ocorrer algum evento dentre muitos aparentemente possíveis. Diante de uma multiplicidade de dados selecionam-se os "favoráveis", os que apresentam traços de serem mais admissíveis à inteligência, isto é, que têm especial significação de certeza mais segura. O conjunto dessa seleção de elementos da pluralidade constitui a freqüência dos dados, ou seja, a possibilidade maior de eles se repetirem. Com esse material recolhido desprezam-se os elementos dissonantes e formam-se as proposições. Elas são aquilo que, na relatividade do espaço-tempo-energia, a ciência (precisão, exatidão, segurança) revelar o que tem de ser, para funcionar como adaptante. A regra jurídica tem portanto de ser revelada no seu sentido e na sua orientação. Não se pode porém prescindir da lingüística e da lógica, sob pena de se perder a segurança extrínseca. As regras jurídicas têm de ser ou A ou B, ou C, segundo as indicações globais do círculo social em que elas têm função de regulação de adaptação. A deficiência científica da grande maioria dos magistrados distorce o sentido do sistema jurídico. O importante é que, tudo considerado, a revelação das re­gras jurídicas se faça com exatidão, precisão e segurança próprias da lógica material, para que sejam aplicadas como são (salvo os casos de anomalia orgânica — que também somente a ciência poderá detectar com segurança maior). Somente a correta aplicação das regras, como são, é que deixa o Povo em paz. E fornecerá dados precisos dos seus acertos e dos seus erros, para que a política as modifique.
A filosofia conseguida pelo método indutivo-experimental por seu turno vai atender ao conhecimento, analisá-lo, e procurar a coerência possível entre as regiões dele. Sua fun­ção é compreensiva, e não extensiva. A função da filosofia científica é co-exaurir: não acrescenta novas proposições às ciências, mas procede a novas ligações com as proposições já conhecidas.
Nessas novas ligações é que forma o seu corpo de proposições novas, com as quais o saber avança com segurança e precisão, como exige esse processo específico de adaptação social, acolhendo deterministicamente a ânsia do homem, ser biológico, na sua necessidade de se mover para além de si (consegue-o pela ciência positiva).
O que assegura esse progredimento, esse avançar do conhecer, não é a "filosofia" no sentido de metafísica, de hipóstase, ou de construção estética — por mais que pareça precisa, senão a filosofia científica: esta, cujas proposições sejam verificáveis nos fatos, e retificáveis pelas repetidas experimentações nos fatos. Como o direito, tampouco a filosofia científica pode desvincular-se dos fatos, isto é, dos demais processos sociais de adaptação, todos em constante movimento, sem esgotarem a realidade conhecida (teorema de Goedel).
Nós não podemos saber mais do que o mundo relacional. Sabemos aqui­lo que sabemos, e o que sabemos está-nos em relação. Não precisamos, em ciência, de um absoluto. Nem podemos tê-lo, no processo científico de adaptação social, já que o absoluto é, por hipótese, não-relacional. Ao Absoluto decerto atendemos sim, mas por outros processos de adaptação social: Religião e Arte. Estas são, aliás, em certos momentos da rela­tividade do espaço-tempo-energia, mais importantes para a vida do homem que o direito, a ciência, etc. E assim ocorre também aos outros processos, em relação aos demais. A "antena" científica, o tentáculo humano da Ciência, não cogita de existência ou não-existência de Deus. A convicção sobre Deus tem raízes no tentáculo perceptor do ultra-sensível (metafísica, religião) que, pela via científica, não se pode dizer mais "fundado" ou menos "fundado" que os restantes processos de adaptação humana. De modo que a filosofia cognitivamente confiável só pode ser o pensamento de uma consciência volvida para o mundo e para si como parte do mesmo mundo  — o mundo envolvendo a consciência. O "transcender”, o sair cognoscitivamente de si e do mundo é, para o processo científico de adaptação (para o conhecimento seguro, preciso, exato), é um sair combalido, sem base. A consistência das respectivas proposições é inverificável, sem sentido, embora possam ser eventualmente úteis para outros fins da Vida.
E a "coisa em si” (“Ding an sich” de Kant) é o que ainda não conhecemos no seu conteúdo, talvez provisoriamente. Mas o sábio (o cientista que está em todos os seres humanos) afirma o ser, afirmando o que consegue saber sobre o ser.

IV — CONCLUSÕES: a relevância prática da teoria do conhecimento em diferentes experiências existenciais (processos sociais de adaptação). Muitos campos dos sentimentos são influenciados pelo pensamento. Idéias erradas levam a conseqüências práticas destrutivas. Exemplos: (1) a ideologia política pode ter resultados errôneos quanto às realidades do exercício do poder; falta-lhe poder crítico, age-se com aparente ingenuidade e as dissensões podem ser dolorosas. (2) Confiança metódica na intuição pode ser uma ação-reação instintiva capaz de construir ilusões de que depois virá arrependimento tardio. (3) A formação abstrata de conceitos comumente leva a discurso vazio, sem base, às vezes vaidoso, imaturo. (4) Apego costumeiro somente a dados fáticos, sem capacidade de indução e de posterior experimentação, produz o hábito de um pensar indolente, incapaz de avançar em conhecimentos; no profissional do direito este vezo é percebido no acumular fontes de jurisprudência, "doutrina" e outros argumentos de autoridade, de aferrar-se a elas, sem critério de ciência que os expurgue para a aplicação a dado caso individualizado ("concreto") — repetem-se erros numerosos, ruins para muita gente, sobretudo quando originados nos tribunais. 
O valor e limite da Ciência, sua importância no Direito é superior ao papel da filosofia. A Ciência é o único conhecimento seguro, gnosiologicamente confiável. A metafísica, embora possa ter notável eficácia social (da natureza da Religião, ou da Arte), não tem verificabilidade, nem demonstrabilidade. Já o método da Ciência, inicialmente descritivo das relações, autoriza a extração de leis, mais e mais gerais (princípios) porque a natureza tem regularidades, em si e por si. Essas regularidades constantes (leis) sujeitam-se porém à verificabilidade (evolutiva), mediante a aferição dos seus enunciados com o conteúdo das relações concretas — sempre no interior do Espaço-Tempo-Energia, que é dinâmico, fugidio,"mutante", relativo.
Com essas características, a ciência é o estágio vencedor do empirismo, como também do "positivismo" — que é estático no dinamismo plural dos objetos do mundo. A ciência é o plano mais alto da positividade. Está no ponto máximo atingível no humilde conhecimento humano.
Tudo isso se passa, também, com a ciência do direito. A preocupação maior do profissional estudioso tem de centrar-se na ciência do direito. A filosofia do direito é apenas um dos seus aspectos (o ideológico). Não é o componente de maior importância que a importância dos outros aspectos: o mecânico (e mais profundo), o biológico, o sociológico e o técnico. Mas, claro está, também a fi­losofia não-científica tem o seu peso de eficácia na formação e no desenvolvimento das séries sucessivas e crescentes das energias em equilíbrio. Nessa filosofia disseminam-se sentimentos e ideais, opções ideológicas inconscientes, intuições (nestas mais atua o instinto que a inteligência, age mais o sentimento que a ratio). [18]
Tudo isto atua nos próprios instintos, os quais pesam muito atividade pensante. É este "processus" amplo que constitui a adaptação social geral. Na adaptação social global consiste a vida dos seres humanos. Compendia ela a vida humana nos processos sociais de adaptação, de que os mais determinantes na existência são os de Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência.
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[1] Este trabalho foi publicado em Revista assim: “Positivismo e ciência – escorço histórico, dos pré-Socráticos a Pontes de Miranda”. Revista de Estudos e Comunicações – Leopoldianum [revista da Universidade Católica de Santos], volume VII, nº 20, p. 19-34, 1980. Foi aqui remodelado.

[2] A maioria das aplicações das lições de ciência aqui inseridas foi feita no campo do Direito. Servem, claro está, também às relações de religião, moral, artes, política, economia, ciência e ao dia-a-dia. São lições adequadas a conceitos formados e a juízos proferidos em qualquer assunto em que a atuação humana não seja puramente instintiva.

[3] Sobre A. Comte, ver dele: COMTE, Augusto. Catecismo positivista. Trad. Miguel Lemos. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996 e Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. Trad. José Arthur Giannotti. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996.  

[4] Ver GÉNY François. Science et técnique en droit privé positiv, Paris: 1921, Société du Recueil Sirey, 1922,  p. 97-98

[5] O trabalho de Pontes está em Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia. Napoli, 1925.

[6] Cuida o gênio brasileiro de acompanhar esse obscuro ato do ser vivo no seu processo de conhecer, observando e registrando, para ver "o que a coisa é". Leia-se o trabalho original, a nosso ver de extraordinário valor cognitivo. Está em Pontes de Miranda, O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, pp. 22 a 24, 54, 72, 104, 131, e 1953, e Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins, 1953, pp. 5 a 17.

[7] Obra filosófica básica de F. Suárez está em Disputationes Metaphysicae, op. omnia, 1861. Paris, tomos 25 e 26. E estudos sobre o pensamento jurídico de Suárez ver em SICHES, Luis Recaséns. La filosofía del derecho de Francisco Suárez. México: Editorial Jus, 1947.

[8] Acha-se, sobretudo, no Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

[9] Conhecer vem-nos do latim co-gnoscere. O gnosco é paralelo ao grego em gnéo (γνε´ω). Para alguns lingüistas, remontando-se ao sânscrito (uma das línguas da Índia antiga), este verbo significou gerar (também nascer) — ver ERNOUT, Alfred e MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001, página 446, 1a. coluna —; entremostra-se destarte, por outra via, como é biológico o ato de conhecer.

[10] Escreve Pontes de Miranda a esse respeito: ""Deve-se a JOSEPH PETZOLDT a clara exposição do princípio da determinação única, no livro Maxima, Minima und Oekolomie (Altenburg. 1891): "Em todo o movimento, o caminho realmente percorrido aparece sempre como caso distinto entre outros imagináveis em número infinito. Mas, analiticamente, isto não diz outra coisa senão que: é sempre possível achar expressões cuja variação igualada a zero ministra as equações diferenciais do movimento, pois a variação somente pode desfazer-se quando a integral toma valor de uma só maneira determinado". Assim, os teoremas de EULER e HAMILTON, como o de GAUSS, são expressões analíticas do fato experimental da unideterminação, isto é, de que os fenômenos da natureza são determinados de modo único. Foi um grande nome, o de JOSEPH PETZOLDT, que a fátua superficialidade vulgar não exaltou como devia: espera que algum descobrimento caia na moda, como as teorias de EINSTEIN, para apressadamente, sem a familiaridade do assunto e a indispensável continuidade filosófica, ir estudar os resultados (o conseqüente) sem o exato conhecimento do antecedente, das origens da teoria. Rigorosamente, foi precursor de EINSTEIN e de outros. Pertence à estirpe intelectual ERNST MACH e de RICHARD AVENARIUS". (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972; tomo I, p. 197-198).

[11] Semelhantemente veio a dizer depois J. Petzoldt que "substância" nada mais é que um artifício mental ditado pela necessidade de darmos estabilidade ao nosso pensamento.
Ver >>

[12] "Teorema da incompletude de Gödel, às vezes também designado por teoremas da indecidibilidade, é o nome atribuído a dois teoremas demonstrados por Kurt Gödel:
Teorema 1: "Se o conjunto axiomático de uma teoria é consistente, então nela existem teoremas que não podem ser demonstrados (ou negados)" e Teorema 2: "Não existe procedimento construtivo que demonstre que uma tal teoria seja consistente". A primeira proposição indica que a "completude" de uma teoria axiomática não pode ser alcançada; a segunda diz que não há garantia de que não surjam eventuais inconsistências (não afirma que elas existam - apenas não se pode decidir). A consistência só poderia ser demonstrada a partir de uma teoria mais geral, a qual necessitaria de outra ainda mais ampla e assim por diante, "ad infinitum"". Ver http://br.answers.yahoo.com/question/index?qid=20061209063844AAcjtMk

[13] A ideologia generaliza princípios, como faz aproximadamente a fé religiosa acrítica — é sem apoiar-se na autoridade dos fatos extramentais. São eles que autorizam conclusões mais confiáveis. Assim, em 29.08.09 escreveu alguém ser a ideologia [...] um conjunto de ideais e princípios, ou seja, idéias acerca do modo como as coisas deveriam ser, nomeadamente na política. [...] “qualquer sistema abrangente de crenças, categorias e maneiras de pensar [...] fundamento de projetos de ação política e social [...] um esquema conceptual com uma aplicação prática.” [...] um conjunto de preconceitos, de idéias anteriores à experiência e à análise crítica e racional [...] “uma espécie de óculos que distorcem e dissimulam” a realidade. [...] leva a ajustar os fatos à teoria e não a teoria aos fatos, ou seja, é uma maneira de pensar que deturpa e ilude. [...] os próprios defensores [...] agarram-se tão cega e teimosamente aos seus ideais que estes se tornam meros preconceitos - idéias cristalizadas incapazes de explicar o mundo e as suas mudanças, repetidas com convicção e paixão mas de modo acrítico. [...] há muitos fatos óbvios que andam a ser negados. Em nome de elevados ideais e princípios, claro". (Está em >>


[14] Ver CLARET, Martin (coord.). O pensamento vivo de Teilhard de Chardin. Trad. José Luiz Archanjo, Ph. D. São Paulo: Martin Claret Editores, 1988.
[15] Deste autor, ver CANNABRAVA, Euryalo. Filosofia como síntese reflexiva. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Departamento de Arte e Ciências Humanas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, v. 1, nº 1-4: 36-61, 1951; Introdução ao objetivismo crítico. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Departamento de Arte e Ciências Humanas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, v. 2, nº 5-8: 48-76, jan./mar. 1952; Lógica, moral e dedução. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Departamento de Arte e Ciências Humanas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, v. 5, nº 17: 60-68, jan./mar. 1955; Notas e Comentários (WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Bemerkungen. Frankfurt: Suhrkamp, 1964, 348 p.). Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo: Departamento de Arte e Ciências Humanas da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, v. 3, nº 5-8: 592-593, 1953.

[16] Ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.  Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins, 1953. Também: A sabedoria dos instintos. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960, p. 9 - 140; Epiküre der Weisheit. 2. Aufflage. München: Griff-Verlag, 1973 e Meditações Anti-cartesianas. Revista Brasileira de Filosofia [Instituto Brasileiro de Filosofia]. São Paulo: Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, v. XXXI, nº 121: p. 3-13, jan./mar., 1981

[17] Vários estudos sobre os cálculos de probabilidade acham-se no Google em alemão sob o título Wahrscheinlichkeit.

[18] "A intuição que dirige o ideal do sábio não é a de que terá a verdade, mas a de que, com os seus ingentes esforços, pode, cada vez mais, aproximar-se dela" (Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do direito, tomo I, p. 73).

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