sexta-feira, 21 de maio de 2010

A RELEVÂNCIA PRÁTICA DA "QUASE-VERDADE" OU "LÓGICA PARACONSISTENTE".


A RELEVÂNCIA PRÁTICA DA "QUASE-VERDADE" OU "LÓGICA PARACONSISTENTE".
Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

Á guisa de introdução. Escreveu alguém que
A Lógica Paraconsistente inclui-se entre as chamadas lógicas não-clássicas heterodoxas, por derrogar alguns dos princípios basilares da Lógica clássica, tais como o princípio da contradição: segundo a Lógica Paraconsistente, uma sentença e a sua negação podem ser ambas verdadeiras. A Lógica Paraconsistente apresenta alternativas a proposições, cuja conclusão pode ter valores além de verdadeiro e falso, tais como indeterminado e inconsistente. [1]

A formação intelectual da maioria das brasileiras e dos brasileiros funda-se na velha lógica aristotélica. Os princípios mais importantes dela são os da identidade ("A é A, e não B nem b etc."), o princípio da não-contradição ("três e não-três ao mesmo tempo e quanto à mesma coisa não é possível") e o do terceiro excluído ("esta pessoa ou é estudante ou não é um estudante"). Depois foram surgindo novas lógicas: a lógica filosófica, a lógica de predicados, a lógica de vários valores, a lógica matemática e muitas outras mais. Uma destas novas lógicas começou no Brasil — a lógica paraconsistente ou lógica da quase-verdade. A lógica paraconsistente foi desenvolvida a partir de 1963 pelo brasileiro nascido em 1929, Newton Carneiro Affonso da Costa.[2] Ele era, até 1997, o único brasileiro pertencente ao Instituto Internacional de Filósofos, de Paris. Formou escola sobre a lógica paraconsistente, com membros no Brasil e no Exterior. Essa lógica é hoje largamente estudada, mormente na Rússia.
Esta lógica admite “contradições”, dizem os especialistas, no sentido de que admite várias verdades simultâneas. Porque a formalização de sentenças depende da função lógica escolhida, e elas podem conviver.
Estas afirmações e negações têm relevo, até relevo prático para quem se dedica à filosofia, ao direito, à educação, ao ensino, às aplicações tecnológicas.
A nossa apoucada capacidade cognitiva. Quer nos parecer que é, em parte, por causa da diminuta capacidade do Homem de esgotar a contextura da Natureza, sempre a mover-se (e os nossos neurônios também a moverem-se nela), razão por que tem de valer-se de aproximações, que biologicamente lhe bastam para continuar a viver e evoluir um pouco (e também regredir...). Por mais que nos aproximemos da ciência, empregando o método indutivo-experimental — e grande vantagem há nessa conquista —, em realidade temos noções ainda um tanto vagas das coisas. Parece um "como se": como se elas fossem mesmo assim, ao modo de Vahinger na sua "Philosophie des Als Ob". [3] É de notar-se que toda e qualquer abstração, que não puder ter alguma correspondência fora do eu pensante, é só imaginosa: não está no mundo extramental, não é. Não tem valor cognitivo algum, embora possa ter sentido estético (como nas abstrações metafísicas de ordem medieval); talvez embeveça, mas não ensina realidades.
As limitações do conhecimento humano. Quadra também pensar que é extremamente limitado o nosso campo de cognição na sua extensão e na sua profundidade; sabemos muito pouco de quase nada, tanto dentro como fora de nós. Este não-saber é assim desde a própria colheita de jetos (qüididades, "essências") e na formação dos nossos conceitos, e na junção deles em proposições, e no emprego da linguagem a mais correspondente possível a todas estas operações anteriores. Vivemos em meio a relações, desde a mais simples (lógica formal, aristotélica) até as crescentemente mais complexas, a saber, as relações da matemática, da física, da biologia, das relações sociológicas nas sete classes mais determinantes do pensar e do obrar humano — Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência (há outras, embora com menor potencial de atuação existencial no homem: linguagem, moda, gentileza, boas maneiras). Estes processos sociais de adaptação entrelaçam-se na vida, sem que seja necessariamente por escolha do homem. A nossa liberdade é limitada Esta é uma complexidade extra-subjetiva da realidade mundanal. Um ato de devoção religiosa não contradiz a conseqüência, dele advinda, de o homem pio ser duro com o praticante de injustiça (relação e moral). A fome pelo saber, encontradiça no homem de ciência, pode conviver com senso prático de ele comerciar proveitosamente o produto das suas pesquisas (ciência mais economia). Um bom músico quiçá tenha vocação política (sensibilidade estética junto à vontade de poder).  
Quer isto dizer, pois, — pensamos nós — que não pode ser puramente formal a lógica de vivência no mundo. Faltam-lhe elementos bastantes para tal. Organiza ela o material recebido, não o pesquisa. Nem toda contradição formal é um erro lógico. A lógica a ser admitida, caso por caso, é a correspondente ao arranjo ou desarranjo das coisas tal como as encontramos fora da criação humana. Eis o que temos de denominar lógica material. Por outras palavras, a lógica clássica não é instrumento adequado para se lidar mentalmente com a pesquisa das realidades, sempre maiores que o homem. O que se nos apresenta ao saber é mais denso que o nosso pensamento. Simplificando: Homem < Saber (segundo fórmula de intelectual brasileiro do século XX — Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda). Fundamental teorica e praticamente para o saber, isto sim, é organizarmos o pensamento ao modo como as realidades extramentais estão marcadas, ao nosso jeito ou contra o nosso jeito. Agradando-nos ou não.
 Há, pois, segundo N. da Costa é uma verdade pragmática: serve ao homem como ele a constrói, sem podermos dizer que abrangeu toda a realidade examinada. Daí considerar M. Paty que essa teoria de N. Costa é a própria filosofia da tolerância no sentido de as verdades serem provisórias. É também uma filosofia da inquietação: os conhecimentos científicos são construídos por nós. Esta circunstância dá flexibilidade aos sistemas de conhecimento (ex.: computador com mais recursos que o sim e o não, com anotações complementares). A lógica paraconsistente traz-nos alternativas às proposições: além de uma conclusão poder ser verdadeira ou falsa, surgem mais estas possibilidades: o resultado do raciocínio pode ser indeterminado ou inconsistente. A rigor, pois, a dúvida sobre a verdade definitiva persiste. Um exemplo didático é: "o homem é cego, mas vê". Esta oração não nos traz a determinação a respeito do que esse cego vê. Tal como soa isolada, é logicamente inconsistente, sem sentido para poder ser entendida com segurança cognitiva.
Uma exposição acadêmica sobre lógica paraconsistente. Nosso escrito posto a seguir é resumo de trabalho técnico do doutor Décio Krause, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina. Pertence ele ao "Grupo Multidisciplinar de Estudos em Lógica e Fundamentos da Ciência-UFSC/CNPq".[4] Por nossa conta é a respiga dos trechos que nos pareceram mais diretamente reveladores do conceito nuclear de "lógica paraconsistente". Eia, pois.

[...] Lógicas admitindo inconsistências (lógicas paraconsistentes, lógica discussiva etc.), agregando uma variedade maior de sistemas. [...] matemáticos como George Boole (1815-1864),  Gottlob Frege (1848-1925) e Giuseppe Peano (1858-1932) deram contribuições significativas para a criação da [...] lógica matemática. [...]a lógica tornou-se uma disciplina com características matemáticas,  [...] Entre os princípios básicos da lógica hoje dita ‘clássica’, de tradição aristotélica, figura o princípio da contradição, ou da não-contradição [...]. Em resumo, em um tal sistema,  prova-se tudo. Um sistema deste tipo é dito ser trivial.
Se A e se ¬A (a negação de A) forem ambos teoremas de um sistema dedutivo S fundamentado na lógica clássica, então toda fórmula B da linguagem de S é teorema de S.
 [...]S. Jaśkowski [...] apresentou em 1948 uma  lógica que poderia ser aplicada a sistemas envolvendo contradições, mas sem ser trivial. O sistema [...] conhecido como lógica discussiva, ou discursiva, limitou-se a [...] cálculo proposicional, [...] Newton C. A. da Costa [...]  iniciou a [...] desenvolver sistemas lógicos que pudessem envolver contradições, motivado por questões de natureza tanto filosóficas quanto matemáticas. [...]  muito além do nível proposicional. [...] reconhecido internacionalmente como o criador das lógicas paraconsistentes [...] o termo 'paraconsistente',[...]  literalmente significa "ao lado da consistência", [...] cunhado pelo filósofo peruano Francisco Miró Quesada em 1976, [...] [...] uma lógica é paraconsistente se pode fundamentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam teses contraditórias, e em particular uma contradição) mas que não sejam triviais, no sentido de que nem todas as fórmulas (expressões bem formadas de sua linguagem) sejam teoremas do sistema. [...]
Em um sistema dedutivo  S baseado em uma lógica paraconsistente, pode haver  dois teoremas da forma   e  ¬A, sem que com isso toda fórmula da linguagem de S seja derivada como  teorema do sistema.
[...] Para da Costa, a lógica clássica, [...] ‘mãe de todas as lógicas’, tem valor eterno em seu particular campo de aplicação, [...] não assevera que as lógicas paraconsistentes devam ser as únicas verdadeiras, usando-as no entanto quando se mostrarem convenientes para se alcançar um melhor entendimento ou tratamento de certos fenômenos ou áreas do saber. [...] Por exemplo, as lógicas paraconsistentes prestaram-se [...] uma visão mais clara do significado da negação [...] Com elas, podemos entender melhor a possibilidade de se sistematizar de modo rigoroso teorias envolvendo a noção de complementaridade (proposições complementares são aquelas que, se tomadas em conjunto, acarretam uma contradição) [...], bem como para  sistematizar sistemas envolvendo vagueza e mesmo contradições estrito senso.  [...] As aplicações da lógica paraconsistente não se limitam a aspectos teóricos ou filosóficos. [...], podem-se imaginar situações em que um paciente pode 'entrevistar-se' com um computador e, mediante perguntas e respostas, o computador pode chegar a diagnosticar e até mesmo medicar o paciente [...]na elaboração de tais sistemas [...], os cientistas em geral entrevistam vários especialistas (médicos).  [...]  os médicos podem ter opiniões divergentes (e mesmo contraditórias) sobre um certo assunto ou sobre a causa de um certo mal.  [...] se no banco de dados há duas informações  que se contradigam, refletindo opiniões contraditórias de dois especialistas, se o sistema operar com a lógica clássica, pode ocorrer a dedução de uma contradição, o que inviabiliza (tornando trivial) o sistema como um todo. Para se poderem considerar bancos de dados amplos,  [...] informações contraditórias e sem que se corra o risco de trivialização, a lógica  [...] deve ser uma lógica paraconsistente.
  [...]  a lógica é, hoje, uma disciplina de mesma natureza que a matemática.  [...] Para tanto, basta recordar os teoremas de incompletude de Gödel, [...] valendo-nos desta analogia, podemos olhar a lógica da mesma forma como usualmente se faz com a matemática, dividindo-a [...] em lógica pura e em lógica aplicada.
 A lógica pura pode ser desenvolvida in abstrato, independentemente de qualquer aplicação. Assim, estudam-se certos tipos de estruturas abstratas, tais como as linguagens formais  [...] A lógica aplicada [...]  tem um duplo sentido: primeiro, pode-se  aplicar um determinado sistema lógico a uma certa área do saber, visando certos  propósitos.  [...] Um segundo sentido seria o do desenvolvimento de algum sistema lógico para dar conta de alguma situação para a qual a lógica clássica, ou os sistemas conhecidos, apresentariam limitações  [...]. A lógica clássica constitui  um campo fantástico de estudo, permanecendo válida em seu particular domínio de aplicações, não precisando, pelo menos por enquanto, ser substituída por qualquer outro sistema.
 Em síntese, não há uma lógica verdadeira. Distintos sistemas lógicos podem ser úteis na abordagem de diferentes aspectos dos vários campos do conhecimento.  [...] uma forma de pluralismo lógico, no qual vários sistemas [...] podem conviver, cada um se prestando ao esclarecimento ou fundamentação de uma determinada [...] área do saber sem que isso nos apresente qualquer problema; [...] a metalógica que rege tudo isso é paraconsistente.

Ponderação nossa. Talvez com a lógica clássica seja por ora impossível uma visão holística sobre as ocorrências da Natureza, sem aí encontrarmos conflitos, contradições, contrariedades, linhas inesperadamente tortuosas. Não nos é dada uma resposta universal sobre um mesmo determinado problema como se não pudesse haver exceções à regração lógica própria do seu campo. Exemplo: o que é melhor para uma vida mais plena em determinado sistema ético? Qual a melhor solução jurídica para o caso concreto em que tantos valores surgem, uns contrapostos a outros — qual o quantum da pena a impor, num crime hediondo e num crime de corrupção não classificado por ora como crime hediondo? Etc. etc.
Conclusão parcial. O que se pode concluir por enquanto é que vão surgir situações nas quais algumas questões não se podem resolver pela inteligência e sim pelo instinto "cognitivo", isto é, pela aparente arbitrariedade da intuição, ou seja, sem certeza de acerto segundo os critérios da ciência. A intuição vem a ser uma experiência não provocada no momento em que surge a resposta espontânea a alguma indagação obscuramente surgida na mente.
Como a dignidade (campo da Moral) é, no estágio atual da cultura, o melhor critério para se estabelecer com segurança social o que seja uma conduta boa, aprovada, e outra ruim, reprovável, parece relevante que o estudioso das questões de improbidade ou corrupção cultive em si a importância social desse bom hábito — o da dignidade. O julgador há de ser, em si próprio, um exemplo de ética. Também o membro do Ministério Público e os agentes policiais cumpre que sigam a mesma senda. É esperável sempre um conjunto de falhas. Resta ao homem de responsabilidade diminuir o âmbito do arco das condutas socialmente destrutivas: educando-se incessantemente no ideal de bem social e colaborando continuadamente com as autoridades na preservação da Moral dos costumes privados e públicos.
Consistência limitada da lógica clássica. Quando não nos é dado perceber o sentido geral da vida relativamente a A e a B dentro de um círculo social, dentro da sociedade, diante de certa situação etc., aí a razão é ambígua e indecisa. A intuição pode variar de um momento para outro porque num determinado ponto do sentir-pensar humano as funções cerebrais variam, e o homem não as escolhe com acuidade e distinção. Nossos "enfoques" e tendências são necessariamente múltiplos, mas são práticos porque servem à preservação de uma vida tolerável por certo tempo.
Daí ser multidedutiva a nossa inteligência, ou seja, a velha lógica, posto seja útil ao nosso dia-a-dia, é aproximativa, imperfeita, pouco sólida, de consistência limitada — numa palavra ela é, para a construção científica, paraconsistente. A Ciência tem que ser tolerante (“filosofia da tolerância”). Quanto mais complexo é o campo examinado, mais contradições podem surgir nas proposições deduzidas, na busca de ordem do pensamento, isto é, na Lógica.
Relação desta mais com o princípio da incerteza de Werner Karl Heisenberg. Isto se deve em parte aos redemoinhos contínuos do cérebro em meio à expansão incessante do Universo em alta velocidade. O nosso ser, produtor de idéias, é atravessado continuamente por bilhões de neutrinos. Em assim sendo, nunca somos idênticos a nós mesmos nos distintos momentos da nossa vida. Algo assim como a teoria da incerteza de Heisenberg — sempre nos movemos diante da mesma coisa examinada. Ao observar o físico um elétron não lhe é dado ao mesmo tempo saber o local e a velocidade dessa partícula. Tem de escolher: ou uma coisa ou outra.  Só estatisticamente consegue prever a possibilidade de uma partícula surgir mais vezes num lugar do que em outro, sem certeza aritmética, porém. Além disto, as ditas partículas ora se comportam como corpos, ora como ondas, ou —, mais difícil —, uma e outra coisa de uma só vez... O Universo é feito de partículas e o nosso cérebro também; o mundo pequeno não se sujeita às leis deterministas da física clássica. Hoje a física é probabilística e, por via de conseqüência também o é o conhecimento do conjunto das relações sociais; isto em grau muito mais elevado porque as relações sociais contêm em si as relações lógicas, também as numéricas, as físicas, as biológicas e as de relacionamento humano — que são as relações sociológicas, isto é, de Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Recordemo-nos: estes sete processos sociais de adaptação são os mais fortemente determinantes do ser humano, a nos compendiarem a toda a vida até agora conhecida.
O mundo clássico ou o tradicional dia-a-dia. Temos de conserva a tradição clássica. Serve-nos sim para a grande maioria das atividades da vida prática, mas podemos corrigi-lo, precisá-lo, torná-lo mais exato. A lógica clássica abriga, no fundo, um conjunto inexorável de contradições, que o formalismo esconde e nós como que preferimos comodamente esquecer, por medo do novum. Notemos que "verdade" tem várias acepções como a de correspondência (Tarski) — o autor considera esta como ideal a buscar. É também pragmática (Pierce e James) com algo de coerência (Neurath). A pragmática trabalha igualmente com hipóteses, já que não serve tampouco para esgotar o real. Talvez seja daqui que o autor da para-consistência retirou o conceito de quase-verdade.
Mudanças determinadas pela ciência. Experimentando e testando estas idéias, alguns conceitos sofreram muita modificação a partir do século XX. O conhecimento, por exemplo, passou a ser recebido como uma "crença verdadeira” no sentido de estar hic et nunc justificado, satisfatório, a proposição traduz aqui e agora o dito conhecimento em símbolos lingüísticos. Seria uma loucura pensar diferentemente (por enquanto, todavia...). De outro lado, porém, temos de romper com uma nova modalidade de realismo ingênuo e de orgulho intelectual. (a) A aparência engana também na formação de jetos, conceitos, juízos. (b) Sabemos bem pouco, e de pouca coisa, do universo real. Nem por isso se nos impõe uma concepção existencial de desespero. Os progressos da ciência são, bem ao contrário, um incentivo para o pensamento, para a pesquisa. Esta convicção vem alicerçada também por princípios éticos e religiosos, como este: "vale a pena o nosso esforço para melhorar a vida das pessoas etc.".
Sobre alguns temas. Nas conclusões de pesquisa ou mesmo de meros raciocínios todo pensador há de levar em conta quão modestos deve considerar as suas aquisições. Cumpre evitar, pois, a tola vaidade de achar que está com a definitiva "verdade" e que as contrariedades nem se devem levar em conta. Tal comumente ocorre em decisões, sentenças ou acórdãos — mundo jurídico. Nos meios universitários igualmente, é intensa a vaidade. Também é muito freqüente em discussão política, notadamente quando um dos contendores tem tendência de direita e o outro se inclina para a esquerda. Nem é raro o fenômeno em assuntos religiosos: crença islâmica contra religiosidade cristã, conservadores versus progressistas, espíritas e não-espíritas etc.
Ou seja, o apego aferrado às próprias idéias é uma atitude sem fundamento. A humildade intelectual é que parece estar mais bem fundada. Quando estuam as paixões em qualquer matéria, o cuidado haverá de ser também objeto de muito esforço. As discordâncias aí, até em pessoas de alguma idade, por vezes destroem amizades antigas.
Transcrevemos a seguir partes de um escrito recente de um físico brasileiro.[5] Ei-las.
[...] Einstein dizia que nossas teorias são "ficções", [...] podem existir duas ou mais explicações equivalentes sobre o mesmo fenômeno. "O caráter fictício das [teorias científicas] fica óbvio quando vemos que duas diferentes, cada qual com as suas conseqüências, concordam em grande parte com a experiência"[...].
O físico americano Richard Feynman [...]: "como nada pode ser expresso precisamente, toda lei científica, todo princípio cientifico, toda asserção sobre os resultados de uma observação é uma espécie de sumário que deixa de lado os detalhes". Ou seja, nossas teorias são apenas aproximações da realidade. Os filósofos Karl Popper e Thomas Kuhn vão ainda mais longe [...]. Popper escreveu que teorias científicas "não são um resumo de observações, mas invenções-conjecturas propostas para serem julgadas e, se discordarem das observações, eliminadas".
Entrando no debate, o que podemos dizer sobre as leis da natureza? Não há dúvida de que observamos padrões regulares na natureza, do micro ao macro. Alguns desses padrões podem ser expressos matematicamente. Porém, quando físicos afirmam, por exemplo, que "a energia é conservada", sabem que essa lei só é estritamente válida dentro da precisão de suas medidas. E mesmo que a precisão de nossos instrumentos e medidas melhore [...], sempre haverá um limite. Conseqüentemente, jamais podemos afirmar que a "energia é conservada" em termos absolutos. [...]  na prática não existem asserções de caráter absoluto, nem mesmo no contexto das ciências físicas. Construímos modelos que descrevem a realidade, que medimos da melhor maneira possível.
[...] vemos o mundo sempre fora de foco. Os óculos que inventamos melhoram a qualidade da imagem, mas sempre existirão detalhes que escaparão ao nosso olhar. O mundo é o que vemos dele.
O nosso cérebro. Merece mais e mais estudo o funcionamento do nosso cérebro como, por exemplo, quando alguém está a estudar matemática ou em arroubo místico, ou a planejar atos de corrupção (buscando em todos estes casos as situações nas quais o ser examinado não tenha consciência de estar sob observação). Mesmo sendo as coisas assim, como parecem ser, o ceticismo não tem lugar como escola filosófica: o senso comum mora na lógica clássica, e precisamos dele para viver porque sem um mínimo de bom senso sobreviria a loucura, um desequilíbrio, uma doença. A própria vida se vale da ciência, confiante a Humanidade em muitas das suas conclusões por largos anos, retirando dela proveitos construtivos para uma existência melhor ("primum vivere, deinde philosofare").
Conclusões. Nem toda contradição formal encerra necessariamente um erro de pensamento. Parece estarmos ainda distantes de poder esgotar os seres — a natureza do que é. Nos processos sociais de adaptação, em todos eles, podemos incidir em ilusões. Embora o processo adaptativo pela ciência positiva pareça ser o menos infenso a essa invasão de devaneios, não é de todo livre porque o Homem é um compositum. Se correta esta nossa última proposição, muito cuidado se há de ter no método indutivo-experimental: observação (empiria), generalização (armação de proposição de conteúdo mais vasto), experimentação — realizar testes de volta à realidade fática (empiria). Outra cautela relevante parece ser a atenção que se há de dar entre os dados extramentais (ou mais extramentais) e as nossas construções eidéticas, erguidas pelo sujeito pensante (donné et construit,  natureza e cultura). Ocorre muita vez que pensamos estar atuando com a razão, mas é paixão que nos está a dominar inconscientemente — parece que somos isto "instinto-inteligência = Homem". Em se tratando do conhecimento científico, podemos obter proposições verdadeiras, não "a verdade". Estas têm de ser consideradas tais até que se demonstre o contrário. O contrário pode surpreender. Para se errar menos, quanto maior for o cuidado com a precisão, a exatidão, o rigor, tanto melhor. Daí o apreço devido aos métodos das chamadas ciências exatas (=mais exatas...) e com a terminologia mais rigorosa. Parece que o método melhor para se descobrirem realidades, pensá-las e expressá-las é o método indutivo-experimental.
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Bibliografia e referências
          COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento científico. São Paulo: Discurso Editorial-FAPESP, 1997.
____, Ensaio sobre os fundamentos da lógica, São Paulo, Hucitec, 2a. ed., 1997.
____, Introdução aos fundamentos da matemática. São Paulo, HUCITEC, 1992.
____, Lógica indutiva e probabilidade. São Paulo:Hucitec-Edusp, 1993;
____, Logiques classiques et non classiques. Paris: Masson, 1997.
____, O conhecimento científico, São Paulo, Discurso Editorial, 1997.
____, Sistemas formais inconsistentes, Curitiba, Editora da UFPR, 1994.
CONIDI Rosanna Bertini; CONCI, Domenico Antonino, DA COSTA, Newton C. A.  Mostri divini — fenomenologia e logica della metamorfosi. Napoli: Guida. 1991
A. Y. Arruda, N. A. Vasiliev e a lógica paraconsistente, Unicamp, Coleção CLE ,7, Campinas, 1990.
GLEISER, Marcelo. A natureza das leis. Folha de São Paulo, 6 de maio de 200, Caderno Ciência.
*Santos, 20 de maio de 2010.


[2] Ver COSTA, Newton C. A. da. O conhecimento científico. São Paulo: Discurso Editorial-FAPESP, 1997; N. C. A. da Costa , Ensaio sobre os fundamentos da lógica, São Paulo, Hucitec, 2a. ed., 1994;  ____ O conhecimento científico, São Paulo, Discurso Editorial, 1997 e Sistemas formais inconsistentes, Curitiba, Editora da UFPR, 1994.
Outras obras a esse respeito: Sistemas formais inconsistentes. Universidade Federal do Paraná, 1994; Lógica indutiva e probabilidade. São Paulo:Hucitec-Edusp, 1993; Ensaio sobre os fundamentos da lógica. São Paulo: Hucitec, 1980; Introdução aos fundamentos da matemática. São Paulo: Hucitec, 1974; Logiques classiques et non classiques. Paris: Masson, 1997; Rosanna Bertini Conidi, Domenico Antonino Conci, Newton C.A. Da Costa.  Mostri divini — fenomenologia e logica della metamorfosi. Napoli: Guida. 1991; A. Y. Arruda, N. A. Vasiliev e a lógica paraconsistente, Unicamp, Coleção CLE ,7, Campinas, 1990;

[3] Sobre a filosofia do Als Ob e as suas aplicações, da matemática às ciências sociais, ver  UEBERWEG, Friedrich. Grundriss der Geschichte der Philosophie (tomo IV) Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1951, p. 410-416.

[5]  Está em MARCELO GLEISER (professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "Criação Imperfeita"), sob o título A natureza das leis. Folha de São Paulo, 16 de maio de 2010, Caderno Ciência.

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