quinta-feira, 24 de março de 2011

'NUNCA TRAÍ MINHA CONSCIÊNCIA"

PONTES DE MIRANDA
Virgílio Moretzsohn Moreira
Ele se espanta quando alguém quer saber sobre sua vida. Fica pensativo quando não inclui Rui Barbosa entre os maiores juristas brasileiros ("Ganhei várias questões dele").
"Se me perguntam como cheguei
a esta idade, respondo: nunca traí minha consciência". Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, considerado a maior figura jurídica viva do Brasil, acaba de completar 83 anos. E, na casa onde mora há 48 e trabalha, invariavelmente, de 5 da manhã às 8 da noite, ele narra fatos de uma maneira que, segundo os amigos, faz dele um simpático contador de histórias curiosas.

'NUNCA TRAÍ MINHA CONSCIÊNCIA"
A casa, de estilo escocês, fica na Rua Prudente de Mo­rais, em Ipanema. Foi comprada em 1927 de Fred Clinton. "Ele viveu aqui, com uma brasileira, durante muitos anos; quando ela morreu, Fred não conseguiu mais dormir na casa. Vendeu- me, então."
Os vários cômodos, todos muito bem decorados, pre­param o visitante para a sala das corujas. Essa ave representa a Filosofia, o pensamento especulativo. Como lembra Hegel, é a ave que sai somente após o crepúsculo, quando os inte­resses subalternos desaparecem.
    Tudo o que eu faço em Direito é na base da Mate­mática. Levei muitos anos classificando as ações com o uso da lógica matemática. O Tratado das Ações, de que ainda fal­tam dois volumes, foi o resultado de mais de 20 anos de pes­quisas, sempre governado pelo espírito diretivo desta ciência exata — afirma Pontes de Miranda.
    A minha primeira tendência, rigidamente expressa, não foi o Direito e sim a Matemática. Meu avô paterno, Joa­quim Pontes de Miranda, formado em Direito mas grande ma­temático, preparou muitos nordestinos para os concursos que se realizavam nas escolas de Guerra e nas faculdades do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Sempre foram aprova­dos. Meu pai também era advogado, mas foi a Matemática a sua maior atração.
OXFORD: O PRIMEIRO DESTINO
Quando terminou o ginásio, com 17 anos de idade, seu pui deu-lhe uma passagem para ir estudar em Oxford. Estu­daria Matemática e Física na universidade inglesa.
    Despedir-me da família foi um ritual. Ao encontrar- me com a minha tia, Francisca Menezes, ela me disse: "Você lisa botas Bostol e sapatos Ali Cover que não poderá importar com o ganho das matemáticas. Dentro em breve o Governo proibira a importação pelo Norte de maquinarias para enge­nhos. Por que não estuda Direito, que tanto seduz sua aten- Çlo nas conversas de mesa? Se fosse no tempo do Império VOcê se formaria em Física e Matemática, descobriria uns teo­remas, o que é o seu ideal, e isto seria um problema para a Corte, mas ela o resolveria. Você acabaria, pelo menos, Ba- rflo de Frecheiras."
No quarto ano da faculdade, com 18 anos, começou a ••crever o seu primeiro livro, À Margem do Direito. Remeteu on originais para Francisco Alves, escritos à mão. O editor ilninorou a responder. Finalmente, o trabalho foi impresso em Piris
    Quando me formei, em 1911, recebi um convite para •ar diretor da Caixa Mercantil, o único banco em Alagoas. Rncusel-me. Pedi ao meu pai uma determinada importância |imn manter-me no Rio de Janeiro por três meses, e vim para ii Capital. Hospedei-me no Hotel Avenida. Escrevi um artigo •ohro o Canal do Panamá e mandei-o para a redação de o Ihmi.iI do Comércio. Depois de alguns dias, recebi um con- vltn para comparecer à portaria do jornal. Recebeu-me o Adão, i|iin me entregou o cachet com a seguinte observação: "O se­nhor está recebendo o dobro dos outros. O Dr. José Carlos nmlrúiues pede-lhe para comparecer em seu gabinete." Fui e
S
nnhoi um escritório para advogar no prédio do jornal, além * lor aceitado a condição de colaborador.
Posteriormente, foi morar em Santa Teresa, onde come- 9011 n escrever o Sistema de Ciência Positiva do Direito, uma •1« nuas obras mais importantes, entre as mais de 200 que pu- lilh nu, nos campos jurídico, filosófico, sociológico e poético.

Os estudos de alemão que fez em Recife, com o professor Paulo Wolff e Frei Matias Teves, franciscano, possibilitaram- lhe produzir várias obras em língua alemã. Pelos franciscanos, a quem disse dever "mais do que se possa imaginar", foi con­vidado para fazer a oração magna dos festejos comemorativos do 3.° Centenário da Independência da Ordem Franciscana. Fa­iou, na oportunidade, da obra maior daquela Congregação: a criação das Universidades de Oxford, Lisboa, Coimbra e Paris.
O AMBIENTE E AS CORUJAS
Raul Floriano, seu amigo há muitos anos, fala dos há­bitos e dos requintes de Pontes de Miranda.
    Sua casa em Teresópolis reproduz a do grande en­genho de Mutange, tendo, logo na entrada, um pé de carva­lho, oferecido pelo Embaixador da Grécia, muda tirada do mi­lenar carvalho de Platão, que sobrevive ainda no Jardim de Academos. Em Ipanema, os "gobelins", os estofos de "Au- busson", os capacetes de Toledo, os cristais de Auvelais, as cerâmicas de Cazaux e as tapeçarias de Cachemira se distri­buem por toda a casa.
Sua biblioteca, com mais de 70 mil volumes, de Direito mundial, ciências matemáticas, físicas, biológicas, antropológi­cas e sociológicas, distribuída em dois andares, é uma das mais completas que já percorri. No setor de Direito, os ve­lhos clássicos portugueses assumem posição de destaque. Desde o célebre livro de Pedro Barbosa, de 1554, De Judiciae, o único exemplar existente além do que está na Torre do Tombo. Raridades também são o primeiro Tratado das Exe­cuções, de Morais, todo o Gluck Pandeckien, do primeiro ao último volume.
    São muitas as corujas. A talhada em madeira brasi­leira, que a Princesa Kalachinka, de nacionalidade russa, es­culpiu para oferecer ao Pontes. E a coruja anárquica. Uma vez ele foi visitado por um Embaixador alemão que lhe disse: "O senhor possui uma coruja anárquica (russa) e outra adminis­trativa (alemã), mas não tem uma coruja "coquete" (francesa) como esta que ora lhe ofereço" — conta Raul Floriano.
"Kebequer, francês da Normandia, pintor das grandes damas paulistas, visitou-o certa vez e lhe levou um presente: um quadro com pinturas superpostas e adaptadas a um sis- toma de iluminação. Apagado, vê-se um jaguar preto de olhos nzuis. Aceso, vê-se a coruja em cima do jaguar. E o inter­pretou assim: "Dans la lumière la sagesse, dans les ténebres l'Instinct"
Djacir Meneses conta que "desde 1932, quando recebi, fiinda no Ceará, carta de Pontes de Miranda sobre meu livro l'roblema da Realidade Objetiva, que me aproximei, como dis­cípulo um tanto indisciplinado, desse extraordinário jurista, filósofo e pensador. Dois anos depois, candidato-me à cadeira de Introdução à Ciência do Direito com a tese Teoria Cientí­fica do Direito de Pontes de Miranda. E daí por diante posso considerar-me um estudioso pertinaz de tudo que ele vem es­crevendo e assombrando pelo alcance, pela qualidade e pela grandeza pela produção literária nos variados domínios do co­nhecimento."
Pontes gosta de falar nas grandes amizades con­tinua Djacir Meneses Tem cartas de Duguit, de Zitelmann, de Geny, de Petzoldt, de Radbruch, para falar apenas nas que me presenteou com cópias xerox. Parece que foi o primeiro, no Brasil, ou no mundo, a conceituar a n-dimensionalidade do Espaço Social e referiu-se aos problemas da espaciologia social.
Já Antônio Carlos Villaça afirma que Pontes é "autor prolífico, tem a obsessão, a volúpia da síntese. Da palavra simplificadora. Define o homem: o ser que simplifica. Seu grande mestre na filosofia é Nietzsche. O super-humanismo está subjacente na sua visão. Seria curioso aproximar o bio- logismo jurídico de Pontes da filosofia biológica de Silva Melo. O esteticismo de Graça, com a sua concepção espeta­cular do Universo, e o pragmatismo nietzschiano de Pontes possuem uma raiz comum: a solidariedade de Goethe."
Franklin de Oliveira afirma que no "âmbito da ciência, Pontes de Miranda luta contra a indeterminação e a tendên­cia aproximativa. Reinvidica a reflexão precisa, rente aos fa- cia aproximativa. Reivindica a reflexão precisa, rente aos fa-

vir a língua do real, a linguagem das coisas. É, portanto, um pensador com a consciência da grandeza dos problemas com que se defronta — a consciência, e a humildade nela subja­cente "Pensar, diz Pontes, é submeter-se." Mas a sua sub­missão é rebelde. Insurge-se contra o desalinhavado da em- pfria e as generalizações do apriorismo. Propugna, por con­seguinte, por uma ciência positiva. Como os grandes filóso­fos, ele pensa com verbos e substantivos. A sua frase tem espessura concentracionária, concisão diamantífera: poder de cortar no duro aço dos fatos. Um exame minerealógico a re­velaria constituída de carbono puro. Centrada em incorruptí­vel núcleo de clivagem."
Depois de A Margem do Direito, seu primeiro trabalho, publicou em 1920 A Sabedoria dos Instintos, recebendo um primeiro prêmio por erudição. Em 1924, seu livro Introdução à Sociologia Geral "foi julgado infinitamente superior, pelo fundo, pela forma e por intuitos, a quaisquer outros trabalhos apresentados. Encarando a Sociologia como verdadeira ciên­cia, qual a Biologia, levando-a por outros caminhos, ao ponto em que os antigos pitagóricos e herméticos a colocaram, como Biologia Social, o autor se embrenha na intrincada floresta da complexidade dos seus fenômenos com passo seguro e olhar firme, apoiado nas melhores leis científicas."
Publicou algumas monografias e artigos na Alemanha. Principalmente, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht, em que fez o estudo sociológico do primitivismo que há em se falar em "espírito da lei", "vontade do legislador", trabalho que muito repercutiu nas teorias contemporâneas de interpre­tação das leis, para se afastarem tais conceitos tribais.
Tendo feito algumas restrições à teoria de Einstein, esse sugeriu que Pontes de Miranda escrevesse uma tese so­bre Representação do Espaço, para o Congresso Internacional de Filosofia, que se reuniria em Nápoles em 1924. "O Brasil não tinha representação e o trabalho, feito em alemão, foi en­viado pela Kaiser Wilhelm-Stiftung e aprovado no Congresso* com o título de Vorstellung vom Räume, diz Pontes de Miran­da. A íntima convivência com Einstein é uma de suas imen­sas satisfações.
Em 1922, publicou o Sistema da Ciência Positiva do Di­reito, que recebeu de Clóvis Bevilácqua os mais extensos elo­gios: "Admiro em vós a inteligência superior, que ilumina e escolhe, que aprende e produz. Sem vossa excepcional capa­cidade de trabalho, sem a vossa mentalidade superiormente organizada, e sem a coragem que vos dá a confiança em vós mesmo, não poderíeis escrever esta obra, amostra magnífica de altura a que atingiu o pensamento jurídico brasileiro."
Rápido em suas conclusões e com o olhar ágil, Pontes de Miranda fala de seus hábitos mais permanentes. "Adoro jantar fora. Recentemente, tendo voltado do Ballet Holandês, fui jantar com um casal de amigos no restaurante Open. Na hora de pagar a conta, o meu amigo adiantou-se para fazê-lo. Então, o garçon disse que não aceitava, pois "o Dr. Pontes é nosso sócio". Quanto às novelas, ele diz que assiste a todas, "pois são melhores que todas as outras que vi no estrangeiro. Considero extraordinário o trabalho dos atores e das atrizes brasileiros."
— Não sei escrever à máquina. Todas as minhas obras, e são mais de 200, eu as escrevo à mão. Depois, o trabalho é das secretárias. Também nunca soube dirigir automóvel. Não tenho carro. Quando preciso, alugo um. Dizendo que é impossível registrar a sua maior emoção, "pois foram várias", aponta rapidamente a sua mais intensa tristeza: "Não ter po­dido voltar à Alemanha, depois que este país caiu sob o do­mínio de Hitler. Recusei, por esta razão, ser embaixador lá, como também não aceitei dar um curso." Fica grave e tenso ao referir-se a este assunto. Logo depois, sustenta que "não há melhor lugar para se almoçar domingo que no Clube Cai­çaras ."
(transcrito do "Jornal do Brasil", 17/05/1975).

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