segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A PLENA VALIDADE CONSTITUCIONAL INTRÍNSECA DA LEI COMPLEMENTAR DE Nº 135, DE 04 DE JUNHO DE 2010 (“Ficha Limpa”).


A PLENA VALIDADE CONSTITUCIONAL INTRÍNSECA DA LEI COMPLEMENTAR DE Nº 135, DE 04 DE JUNHO DE 2010 (“Ficha Limpa”).

Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor aposentado de direito (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

Introdução

Tem havido opiniões, nem sempre convergentes, acerca da validade constitucional desta Lei Complementar. Ela entrou em vigor no próprio dia da sua publicação, ou seja, em quatro de junho de 2010. As eleições seguintes a esta vigência são as do 2º semestre deste mesmo ano. Não se esperou um ano da sua vigência para sua aplicada. Já foram propostas ações contra essa situação jurídica.
Entendem muitos estar toda ela eivada de inconstitucionalidades. Vamos aqui tomar um exemplo dessas manifestações contrárias à dita lei. A partir dele traçaremos algumas considerações. Todas elas são divergentes no tocante à lei em si mesma considerada; para nós a lei em si mesma, intrinsecamente é sem defeito de invalidade. A aplicação dela não pode, contudo, ser feita nas eleições deste ano de 2010. O ato jurídico de aplicá-la extemporaneamente infringe a Constituição Federal de 1988.
Este estudo trata do dito por Eros Grau, ex-professor titular da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. Cuida-se de entrevista dada aos jornalistas Fausto Macedo e Felipe Recondo. Traz por título “Lei da Ficha Limpa põe em risco o estado de direito”. Nelas os entrevistadores inseriram um resumo inicial com as seguintes palavras:

Eros Roberto Grau deixou ontem a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) convencido de que a Lei da Ficha Limpa põe "em risco" o Estado de Direito. Ele acusa o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ignorar o princípio da irretroatividade das leis. "Há muitas moralidades. Se cada um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual com seu porrete. Estou convencido de que a Lei Complementar 135 é francamente, deslavadamente inconstitucional" [1].


De nossa parte vamos respigar alguns trechos, ao parecer os mais expressivos da matéria, e teceremos comentários sobre eles. O assunto está dividido em §§, esperando sejam esclarecedores. Sobrevirão muitos parágrafos em letra itálica dividindo ainda mais a matéria. Ao final traremos algumas conclusões — as mais práticas para os profissionais do direito.
Cuida-se de uma reportagem, ou seja, perguntas do jornalista e respostas do ex-ministro como consta aqui da nota de rodapé de número 1. A numeração posta no texto, pois, não é do original. Do mesmo modo toda e qualquer linha sublinhada. Foram transcritos os trechos mais pertinentes da entrevista. Pusemo-los com indicação de algarismos entre parênteses (x), e com formato nosso para se lograr mais clareza na leitura.
Eia, pois.

§ 1 — A questão da corrupção na política

Diz o eminente ex-ministro do Supremo o seguinte:

(1)   Políticos corruptos não são uma ameaça aos cofres públicos e ao estado de direito? — Sim, sem nenhuma dúvida. Políticos corruptos pervertem, são terrivelmente nocivos. Mas só podemos afirmar que este ou aquele político é corrupto após o trânsito em julgado, em relação a ele, de sentença penal condenatória. Sujeitá-los a qualquer pena antes disso, como está na Lei Complementar 135 (Ficha Limpa), é colocar em risco o estado de direito. É isto que me põe medo.

 

Comentário.
Casos novos de inelegibilidade. Temos de pensar que a lei eleitoral pode criar outros casos de inelegibilidade, mesmo sem o trânsito em julgado de condenação, desde que seja por acórdão proferido pelo Poder Judiciário, e que o ilícito praticado pelo candidato àquele tempo seja por “ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito”, como consta do 1º, alínea l dessa Lei Complementar. Se alguém é condenado por um colegiado, mesmo que inteponha recurso, já exsurge o perigo de o candidato ser pessoa incompatível com a ocupação de cargo público. Este ilícito é um ilícito típico de corrupção. Escandaliza a grande maioria dos brasileiros.
Vantagem do julgamento em colegiado de juízes. No colegiado, como numa câmara ou turma julgadora e outros, há mais possibilidade de acerto, tanto quanto à validade do julgamento como quanto ao seu mérito — no tocante ao seu conteúdo jurídico. Concorrem nele vários magistrados (ao menos três deles) com os seus escritos e a sua discussão do recurso, tanto no tocante à matéria de fato como à de direito. Pode haver eventualmente exposição oral, seja de advogados ou de membro do Ministério Público de segunda instância. O debate dá-se, pois, entre profissionais já com mais alargada experiência no estudo e na aplicação do direito. Aumenta a possibilidade de acerto na condenação criminal de um candidato a cargo eletivo, havido como enodoado por ilícito de corrupção.
A perigosidade do condenado, quando anda não formalmente “culpado”. Assim é, então, que a condenação já entreabre um horizonte jurídico de perigosidade criminal do condenado, e da sua eleição. Este perigo já terá sido razão suficiente para a inelegibilidade, hipótese pensável para o legislador, como ocorreu na Lei Complementar de que nos estamos a ocupar. Ela é sociologicamente um acerto no mundo da ética e da política.
Segue-se daí que etica e juridicamente já se torna supérfluo o conceito formal de culpado estabelecido pela Constituição, artigo 5º- LVII, isto é, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Enquanto não tiver passado em julgado o dito acórdão ainda não se terá a figura jurídica de culpado. Tem-se outra: a de perigoso para a política segundo a ética.
Por outras palavras, o condenado pelo colegiado judicial terá entrado na situação jurídica de inelegibilidade. Quer isto dizer, pois, que não há inconstitucionalidade na L. C. de número 135 de 4 de junho de 2.010 ao estabelecer um novo pressuposto de inelegibilidade, ou seja, o pressuposto ora inserido no seu artigo 1º, alínea l), assim:

l) os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, por ato doloso de improbidade administrativa que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito, desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena; [...].


Quando se dá o início temporal dessa inelegibilidade. Esta situação jurídica inicia-se com a dita condenação desde a publicação do acórdão, antes mesmo da intimação dele aos interessados. Nem importa ter o acórdão sido condenatório só por maioria de votos, que não por unanimidade. Com a publicação do acórdão completo já existe como ato jurisdicional, a condenação já ocorreu. É ato estatal e não mais ato dos juízes como tais. Publicado o acórdão, os juízes não o podem alterar, a menos que esteja incompleto e deva ser completado (a) no provimento a embargos declaratórios (quando “o acórdão é ambíguo, obscuro, contraditório ou omisso”, como reza o Código de Processo Penal no artigo 620 caput), (b) ou para correção de meras inexatidões materiais, ou para retificar algum erro de cálculo; há de admitir-se neste caso por analogia a regra jurídica processual civil, artigo 463-I — esta norma abrevia todo e qualquer julgamento. Tem de ser empregada a analogia, portanto. Incide decerto a norma constitucional sobre eficiência do serviço estatal (Constituição atual, artigo 37- X caput).
Os embargos declaratórios e o momento exato da inelegibilidade. A só maioria de votos, a condenar o candidato, o faz inelegível. Cumpre saber quando tal se dá. Pode imaginar-se para tanto a publicação do acórdão em mãos do chefe da secretaria da turma julgadora, por ser este o momento em que a condenação deixa de ser ato pessoal dos julgadores e passa a ser ato estatal imodificável a líbito deles. Não parece ser este o momento, porém. Contra o decisum, que contiver erros de cálculo (por exemplo, no tocante à pena imposta), ou inexatidão material (escreveu-se “há dois anos” quando em verdade deveria ter sido escrito “dois meses antes”), ou se tiver sido ambíguo, obscuro, contraditório ou omisso. Se no acórdão se escreveu que o réu agiu com culpa e dolo, a expressão é ambígua; se diz que houve o dolo, mas a culpa foi máxima, a proposição é obscura; em ocorrendo redação segundo a qual a prova é insuficiente para a condenação, mas esta sobrevém, patenteada está a contradição; no caso de se afirmar ser de reclusão a pena, sem determinar-se por quanto tempo, terá o julgamento ficado omisso. Logo, precisa ele, em todos estes casos de ser completado.
Completação ou complemento da expressão, não do conteúdo. Há ainda dificuldades no conceito preciso do recurso de embargos declaratórios. Os trabalhos do próprio Pontes de Miranda neste particular mostram isto.[2] Destaque-se que esse recurso se opõe ao julgamento por ele ser incompleto, quando for eivado de imperfeições decorrentes de distração no ato de redigir-se o voto, razão de haverem passado erros de cálculo ou inexatidões materiais.
De modo quase idêntico se tiver sido ambíguo, ou obscuro, ou contraditório ou omisso. Nestas particularidades acumulam-se as agruras teóricas, notadamente por surgirem casos nos quais a correção, digamos da contradição, leva necessariamente à alteração mesma do núcleo, ou conteúdo, ou mérito da coisa material. Se foi escrito que a prova é insuficiente para o réu ser condenado, mas houve condenação, ao corrigir-se a redação para se escoimar a contradição, o resultado se alterará — de absolvição para condenação. O candidato não perderia o direito de concorrer às eleições no primeiro caso, e passa a perdê-lo na segunda hipótese, que tomou o lugar da primeira. É um caso, mais raro, em que a redação, como forma da linguagem, veio a identificar-se com a matéria, com o núcleo, com o mérito do julgamento. Fundiu-se uma e outra coisa, eis a razão. Para conseguir-se a justiça segundo a Constituição Federal de 1988 (Preâmbulo e artigos 1º-5º), aí os embargos declaratórios têm de ser recebidos com alteração do julgamento.
De modo que, sendo opostos os embargos declaratórios, e providos para completar-se o acórdão condenatório, a data da perda do cargo é a data em que o julgamento desse recurso for publicado em mãos do funcionário da secretaria da turma julgadora. Se as eleições ocorrem no dia 3 de outubro e o julgamento dos embargos declaratórios tiver sido publicado na véspera, dia 2, o candidato não pode concorrer. Eventual voto que receber para eleger-se será voto nulo. A priori, portanto, não se pode afirmar que a condenação em si mesma, anteriormente ao prazo de oposição dos embargos declaratórios, já terá operado a perda do cargo. Terá ela ocorrido, sim, se passar em branco o prazo dos embargos, ou se eles não forem providos.
Se houver no ínterim ajuizamento de mandado de segurança. Outra questão jurídica pode ainda surgir (e talvez outras mais), se o não recebimento dos embargos, ou o seu não provimento, violar direito líquido e certo a que a ação de mandado de segurança dá remédio quando julgada procedente. Na hipótese de esse julgamento da ação mandamental ser posterior à realização das eleições, com prejuízo do candidato, essa eleição tem de repetir-se, terá sido nula. Assim parece por causa das normas contidas na lei n.º 4.737, de 15 de julho de 1965 (Código Eleitoral) e em outras como a lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabelece normas para as eleições.
Validade da regra jurídica sobre novos casos de inelegibilidade. É muito de notar-se que uma Lei Complementar pode estabelecer outros casos de inelegibilidade. Di-lo a mesma Constituição no artigo 14 § 9º:

 

Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.


Quando se cuida da admissão de candidatos a concurso público é comum a exigência de folha corrida (inexistência de antecedentes criminais). Com isso afasta-se de algum modo o perigo de se submeterem a exames, ou testes, indivíduos intelectualmente competentes, mas eventualmente perigosos para a vida proba da administração pública brasileira. Com maioria de razão quando se insere legalmente o pressuposto de um candidato a cargo eletivo não ter sido condenado por um colegiado de membros do Poder Judiciário.
Onde pode ocorrer o defeito de invalidade relativamente à Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010. De modo que não há invalidade em nenhuma regra jurídica dentro da lei de 2010. Nem sequer por entrar em ela vigor na data da sua publicação. Inconstitucionalidade existe, sim, mas só no ato de aplicá-la nas eleições deste ano de 2010 em vez de ser em eleição que se realizar um ano depois da entrada em vigor dela. Esta nulidade é de ato administrativo e não da Lei Complementar aludida. Assim é porque a dita L. C. 135, de junho de 2.010, altera o processo eleitoral. Acrescenta um caso de inelegibilidade não existente antes dessa Lei Complementar. Ora bem, está aí um conceito apropriado ao de processo eleitoral. Não se cuida de mero procedimento e sim de uma sucessão de estado ou mudança tocantemente à escolha do candidato. Passou a regrá-lo também o conjunto de regras jurídicas da Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010. Entrou ela em vigor, mas este ano não pode ainda ser aplicada. Cumpre advertir para as diferenças entre existência, validade, vigência, incidência e aplicação de normas jurídicas. Essa lei existe, vale, vige e incide, mas não pode ser aplicada por ora. Na eleição que houver um ano após a existência dela sim deverá ser aplicada, sem necessidade de uma nova Lei Complementar de mesmo conteúdo. Falamos de um ano contado da publicação, por isso que atualmente, no Brasil, uma lei só existe depois de ser publicada.
Por que está a viger sem poder aplicar-se neste ano de 2010. Não permite a aplicação dela, neste ano, a própria Constituição Federal de 1988 no artigo 16:

 

A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência.


§ 2Os impiedosos apelos populares.
Tornando aos textos por nós escolhidos temos mais o seguinte, do professor Eros Grau.

(2)   Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.

Comentário.
Clamor justo, clamor construtivo. O clamor foi justo, à cata de aumento da moralidade no Brasil. O erro popular figura quando não se conforma a gente com a não aplicação dessa lei às eleições deste ano em curso. Aí o reclamo popular sai da razão sábia e entra a ser razão louca. A esse respeito nós próprios escrevemos alhures:

A razão irá perdendo o seu caráter de "razão sábia" para se tornar "razão louca" à proporção que for trocando julgamento por defesa de posições. Na razão louca a reflexão que ainda aparece vem montada em decisão prévia, extremamente passional. Ajuda à eficiência final, mais que à crítica e à racionalidade material. A pulsão fundamental com que tem a razão sábia de lidar, é a polaridade eros-thánatos (amor-vida X ódio-morte). Pode a razão, aí, balouçada pela movimentação "atração-fuga", sobretudo em relação ao poder e às utilidades materiais, corromper os conteúdos de consciência. A falsificação da consciência assim operada pode levar a grandes desatinos na história de pensamento, inclusive na exegese e na respectiva aplicação do sistema jurídico. Sabota-se com isso a normalidade dos processos adaptativos determinados pela “natureza das coisas” (leis da Natureza) [3].


Característica do direito. A nota característica do Direito, um dos setes principais processos sociais de adaptação, é a impessoalidade das suas normas, cuja incidência é absoluta neste exato sentido: supera as subjetividades, queiram ou não os indivíduos, ou todos eles, há ser de aplicado como incide (como rege o suporte fático). Quando não for aplicado ao modo como incide, ocorre erro, o que infelizmente é desastre sociológico de todos os dias e todos os povos do mundo. Exemplo típico é o caso dos ilícitos por corrupção sem pena aplicada, em que o Brasil ocupa posição muito ruim na escala mundial segundo a organização “Transparência Internacional”. Em julho de 2010,

75ª é a posição ocupada pelo Brasil no ranking da corrupção mundial. 3,7 é a nota obtida pelo País no ranking de 180 países, classificados de 0 a 10. A nota mais alta foi obtida pela Nova Zelândia (9,4), e a mais baixa, pela Somália (1,1). R$ 69 bilhões/ano é o custo médio da corrupção no Brasil, o que representa 2,3% do PIB. 5,5% é o percentual em que a renda per capita do país seria mais elevada caso não houvesse os desvios de verba”. [4]


No caso de paixão popular aloucada, o Poder Judiciário simplesmente aplica a norma jurídica incidente. E o sistema democrático continua ileso, mesmo quando descontentes muitas pessoas do Povo [5]. Nada a temer, pois, diante do fenômeno. Este é, em si, um bem público. Posta a mesma ideia em termos correntios, vemos aí mesmo as “exigências do bem comum” tal como regrada no artigo 5º do Decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. É uma norma geral de “direito sobre direito”, ou seja, regra jurídica de sobredireito; este “sobre” não leva consigo aqui o sentido de superioridade e sim apenas de “a respeito de”, “acerca de”. O termo está em Pontes de Miranda, que o retirou à ciência alemã (Überrecht). Nesta passa-se o mesmo fenômeno linguístico com o seu “über” (= “acima de” e também = “acerca de”). Tem-se portanto na nossa tradicional “lei de introdução ao código civil” uma norma de sobredireito a incidir também sobre o direito  constitucional brasileiro.
Ainda a matéria de sobredireito. Havemos de dizer que a chamada “LICC” (“lei de introdução ao código civil”) é um conjunto de regras jurídicas cuja função é a de ensejar acertada exegese [6] e correta aplicação de todas as outras, quaisquer que sejam (não apenas no código civil). São normas a respeito das outras normas, um direito a respeito do direito objetivo, razão por que Pontes de Miranda as denomina de “sobredireito”, contraposto ao “direito substancial”, isto é, ao direito material e ao processual, seja o direito constitucional ou o infraconstitucional.[7]
Parece serem regras jurídicas da maior importância para se acertar no conhecimento e na aplicação cientificamente admissível do nosso sistema jurídico. A dificuldade do conteúdo delas situa-se nos conceitos precisos (sem pseudofilosofias pedantes), de lei omissa (por causa da grande quantidade de regras jurídicas, não escritas nem costumeiras), de analogia, de costumes, de princípios gerais de direito, e de fins sociais a que ela se dirige, e exigências do bem comum (artigos. 4º e 5º).
            O estudioso, como todo profissional do direito tem nela uma vasta matéria de ciência jurídica, a preceder o seu trabalho com a dogmática jurídica propriamente dita.
 Democracia e liberdade. As livres manifestações do Povo, dentro da ordem democrática e libertária como a nossa, são um bem, notadamente porque a própria constituinte é formada para ser a representante do Povo (Preâmbulo da Constituição Federal de 1988), Povo de quem emana ou deriva todo o poder (artigo 1º, § único). Hoje o Brasil é um “Estado Democrático de Direito” (artigo 1º). Torna-se sociologicamente saudável fazer deste conceito um lema que entre na prática das relações sociais da nossa gente, um mote para o dia a dia da moral e do direito.

§ 3 — O Poder Judiciário no estado democrático de direito.

Outro excerto da mencionada entrevista dada pelo mesmo ministro emérito vem a seguir, com a indagação do jornalista e a resposta a ela.

(3)   Não teme que a Justiça decepcione o País? — Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.


Comentário.  
Não há golpe algum contrário à eleição, nem sacrifício ao direito dos candidatos pelo fato de a lei ter sido edictada e estar em vigor este ano, com um acréscimo de pressuposto eleitoral estabelecido pela Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010. A democracia e as liberdades fundamentais continuam intocadas neste ponto, sem perigo algum para o estado de direito no Brasil. As outras considerações são, como se diz, firulas de retórica, dispensáveis em buscadores de proposições extrassubjetivas, em cultores da ciência positiva — a atividade cognitiva que se nutre de fatos, de dados postos pela “natureza das coisas” e, pois, com o mínimo possível de construções mentais, “filosóficas”, imaginosas, subjetivas.

§ 4 — “Vontade da lei”. “Razoabilidade da lei”

Continuando, temos o que adiante vai.  

(4)   As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.


Comentário.
“Razoabilidade”. Temos de concordar sobre esta surrada tese, e tão obscura — a da “razoabilidade” ou “não razoabilidade” de norma de direito. Todavia, sempre que se alude a algo da ratio sem um cuidadoso exame dos fatos extramentais, fica-se com generalidades. Nestas tudo cabe, sem mais. Não consultam elas ao dado, ao fato, ao produto da natureza anterior às elucubrações mentais. Por isso são abstração no pior sentido — o oco de sentido real efetivo, vacuidades, inanidades, futilidades.
O conceito de “razoabilidade” fica muito mais claro se aludirmos à impossibilidade humana de se cumprir alguma regra jurídica. Se for assim, fica muito simples a solução: ela será inconstitucional porque estará investindo contra algum dos "direitos humanos", tutelados também eles pela Constituição Federal de 1988 e pelo atual Direito das Gentes. E então qualquer juiz deve lhe decretar a invalidade: deixar de aplicá-la, afastá-la pelo menos só incidentemente, como deve atuar alguma turma julgadora de um Tribunal de Justiça, por exemplo. Escusado dizer da importância da fundamentação nesse respeito, claro está.
O saber humano é aproximativo. E é muito de notar-se que o nosso saber, também o jurídico, é rigorosamente aproximativo. Examinada com toda a precisão, a coisa A, A agora e A depois, é apenas um “como se”. O meu A de agora é tão somente como se fosse o A de um milésimo de segundo atrás. Nesse intervalo mínimo de tempo (em verdade Espaço-Tempo-Energia), mudou A e mudei eu, observador, pensador, julgador. Note-se bem: não é “Fiktion” ao modo de um como se (o “Als Ob" de Hans Vaihinger), porque a criação feita no A de agora correspondeu transubjetivamente aos dados: aos dados colhidos na “coisa” e aos dados experienciados em mim próprio — sem invenção ficta. O mesmo se deu no átimo anterior. Logo, a ciência positiva (humana!) é possível. E modesta...
“Vontade da lei”. Aí está mais um conceito perturbador. Lei regra (verbo regrar). Lei regula, indica caminhos e processos, de tal modo que a vontade de quem é abrangido por ela não consegue o feito de ela não incidir, regrando. Quando ela é publicada deixa de ser ato de quem colaborou com a sua edicção, de modo que a vontade necessariamente ficou no passado, no ato político. Ela, lei publicada, é estranha aos atos de vontade do mundo político: o que quiseram os legisladores ou deixaram de querer.
Razão e paixão. O mito da intenção, ou vontade do legislador, ou vontade da lei. A natureza do homem é razão sempre mesclada de paixão. Esta matéria foi estudada pelo brasileiro Pontes de Miranda desde o seu “Sistema de ciência positiva do direito”, com a 1ª edição de 1922, então em dois tomos. Aliás, a proscrição desse critério de “vontade do legislador”, como o da “vontade da lei”, já tinha sido profusamente estudada, com aceitação na Alemanha de então, em 1921. [8]
Portanto, intenção, ou vontade do legislador, ou vontade da lei, são fetiches. Estas relações subjetivas não alcançam a realidade extramental a que os termos da norma estão aludindo. O que se apreende com segurança maior, menos intimista, são as relações em que os fatos se nos apresentam, aos quais as normas aludem. Estas relações são, em conjunto real amplo, os processos sociais de adaptação. Parcelas deles são recortadas no suporte fático da regra de direito. A análise das relações sociais propicia uma visão menos enganadora sobre o conteúdo da norma, fim mesmo da interpretação, ao passo que a vontade de alguém é simples mediação, repleta esta por complexas necessidades, por fatos, pois. Estes em determinado momento da realidade são classificáveis como A; mudam, porém, continuadamente, certa classe mais que outra. O tempo B, futuro, é de contextura multifária e pode ser muito distante do momento B quando está a viger a mesma norma.     
Fenômenos do passado. A vontade passada (“vontade do legislador, da lei, intenção do legislador”) não tem como prever o que seja imprevisível. E o intérprete (como o juiz e qualquer cidadão) tem de revelá-la no momento da incidência — sobre fatos cambiantes — para captar-lhe o conteúdo a indicar certo e determinado sentido e concreta orientação. Temos de ver a quem a norma beneficia e com que bem de vida (vantagem de vida) isto acontece. [9]
Dificuldades. Parece que, a todo o rigor, a nossa ciência (a ciência positiva), também ela, atua sobre nós de maneira quase igual ao “como se” (ao “Als ob" de Hans Vahinger). A própria leitura da norma, relativa a certo assunto, deixa transparecer um conjunto de ideias. São elas instrumentos do pensamento humano. Ele as tem de organizar segundo lhe dita combinação dos próprios fatos, sempre nos limites de cada pedaço de espaço-tempo cada qual com as suas necessidades. Um desses fatos é a reação social vivida em circunstâncias repetidas. E isto se consegue pela ausculta da concepção geral do Povo. [10]
Exegese e interpretação. Interpretação” é termo em geral aplicado para se entender qualquer fato jurídico: um negócio jurídico, um ato jurídico stricto sensu, um ato-fato jurídico, um fato jurídico em sentido estrito, um ato ilícito. Exegese é termo mais correntio para se aludir à regra jurídica mesma, à norma, qualquer que seja a sua classificação. (Frequentemente é usada para os livros sagrados). Chamam-na alguns de “hermenêutica”, que um autor alemão denomina Rechtsanwendung embora Anwendung seja aplicação, uma operação mental posterior.
Hermenêutica. Sobre “hermenêutica” escreveu-se ser ela o processo de descobrir o significado, expressando-o ou traduzindo-o, sempre para entendê-lo:

Die Hermeneutik (von griech. ἑρμηνεύειν (hermeneuein) mit den Bedeutungen: (Gedanken) “ausdrücken“, (etwas) “interpretieren“, übersetzen“) ist die Lehre vom Verstehen, Deuten oder Auslegen.  [11]


O termo grego indica o ato de seguir algo de perto para fazer-lhe a explicação, exposição. Ou seja, conseguir interpretação, comentário, elucidação pormenorizada. Cabe bem para elucidação de termos de linguagem. [12]
Sim, o verbo grego ἑρμηνεύειν contém esta ideia de explicar o pensamento e expressá-lo em palavras, de modo tal que possa ser comunicado. Logo, pela etimologia (ou seja, pelo começo da história de um termo) “hermenêutica” diz respeito à busca de sentido de palavras — como as palavras encontradas em uma norma qualquer. [13]
Sentido e orientação das regras jurídicas. Relevante é o método da intelecção dos textos jurídicos; trata-se de encontrar o caminho a seguir para se descobrir o sentido e orientação de princípios e normas (uns e outras são regras jurídicas, os princípios mais vastos ou abrangentes e as regras). Nem é matéria fácil, o que nos faz tornar ainda mais atentos no trabalho jurídico. O homem, mesmo quando conhece no exercício científico, também sente. Quando conhece, também está o intérprete respirando, fazendo digestão, funcionando todo o seu ser biológico. Não estranha, em matéria de interpretação, a busca entranhada de conhecimento para colher o sentido e orientação da norma; para alcançar este objetivo é insopitável o conjunto dos recursos artísticos. Quer isto dizer, pois que essa atuação humana de conhecer o sentido e orientação da norma envolve o organismo todo, necessariamente empolga o trabalho com linguagem, com lógica clássica, com lógica matemática, com ratio legis, com construção a simili, com a comunnis opinio, ou seja, os com muitos “topoi”. [14] Empreendimento difícil, dizemos nós, mas possível a quem emprega o método indutivo-experimental.
O método para a interpretação. A questão do método é primeira a ser estudada, como se disse. Na opinião de Larenz a finalidade da interpretação é descobrir o conteúdo dos dizeres da norma. Muitas são as teorias que lhe disputam a melhor solução. Para se interpretar há de mister comparar e discutir. Faz-se isso desde a linguagem comum e técnica até se ter encontrado o real, variável este no espaço-tempo. Serão incluídos julgamentos de valores, tanto com recursos científicos como também com os de “Arte”. O espírito humano é capaz disto, como ensinou Savigny. Assim, o fim da interpretação é a descoberta do fim da lei. Aqui o autor como que identifica o fins legis com a “vontade do legislador”, que ele admite como método aceitável (!?) e sempre levando-se em linha de conta, diz, a coisa regulada na norma pelo critério “objetivo teleológico”, além das relações sociais.
Estudando o pensamento da Aufklärung (=Iluminismo), Ernst Cassirer entra no estudo da ciência jurídica. Diz que essa época reabilita a metafísica platônica: é o valor do direito puro, o direito em si — dedutível da ideia de “justo”. Seria, porém, um direito posto fora da realidade do mundo, tal como ele é na natureza antes de o homem organizá-la em conceitos “puros”.
(Diferente disso, temos de dizer nós, é a descoberta da exegese livre, ou seja, a busca do sentido e orientação da norma cujo objeto de investigação são os dados do mundo e não a análise do pensamento organizador, como se aprende com o brasileiro Pontes de Miranda. Tampouco pode ser o argumento de autoridade como, por exemplo, o da “jurisprudência dominante”).
Na mesma corrente iluminista produziu-se a discussão que ainda perdura nos dias atuais (aplicáveis na matéria de improbidade e responsabilidade de qualquer agente dos três poderes da República). Exemplo disto é Rousseau quando discorre sobre o papel do sentimento no direito cuja irracionalidade, inserida no conflito entre o eu e o social, vem a suscitar a descoberta salvífica da razão. O autor discute, como era de esperar-se, a distinção iluminista entre o direito natural e o direito positivo. Interessante notar como o autor alude aos modernos sete processos sociais de adaptação (os revelados por Pontes de Miranda), que denomina, segundo Ueberweg [15], de “esferas de ser” entre si dependentes. O “justo” é, em todas as coisas, a medida do que ultrapassa a situação concreta, a qual nos vem fechada em formas da racionalidade comum. Tal transcendência ocorre na percepção do que seja o elevado do mundo estético. Foi o concebido por Burkes (1756). [16]
Homem e sociedade. Pronunciar simplesmente, como o clássico romano Celsus, o “jus est ars boni et aequi[17], é admitir ser a escrita formal das regras jurídicas uma captação imperfeita da natureza das coisas. O homem só é na sociedade; dela recebe em si as ressonâncias da ambiência total. Quanto mais o interior do intérprete se enriquecer de dados do mundo, então mais entenderá ele o conteúdo das normas de direito. Estará esse intérprete levando no seu íntimo os elementos na Natureza mesma. É bem este o modo como consegue proceder o gênio quase espontaneamente. Parece ser a razão de verdade e beleza se relacionarem intimamente. Na busca da sua ars haverá o intérprete de estar sempre atuando livre, como que integrado nas suas leis interiores, retirando de si o máximo possível de ideologias (notadamente o pendor político), [18] de afeições “doutrinárias”, ou preconceitos religiosos, ou seja, afastar em alto grau todo tipo de apriorismo. [19]
É porque, pensamos nós, na pesquisa do sentido e orientação da norma há um movimento intenso, interminável mesmo, do ser humano e das suas circunstâncias, próprias dele e do ambiente geral — material e vivo. É um movimento incessante, de modo que é onde a velha dicotomia direito natural X direito positivo lança as suas raízes. Ora bem, o método mais seguro até ao momento parece ser o da livre abertura ao dado. Os dados imprescindíveis para o conhecimento do direito são aquele com que temos necessariamente de trabalhar, ou seja, com os pertencentes aos sete principais processos sociais de adaptação. São, com efeito, as mais relevantes vivências do homem. Deixados de lado aqueles quando se faz pronunciamento sobre inconstitucionalidade leis, de mistura com julgamentos políticos, corre-se o risco de erros sem conta. Ocorre o mesmo quando se analisam “princípios” legais, e inspirarem regras jurídicas legais. Princípio constitucional é proposição a servir de base para a estruturação do Estado; tem portanto no seu bojo conceitos amplos, gerais, que presidem a elaboração das outras normas internas. [20]
Justiça. O “justo” é o que, atuante, lateja na natureza das coisas, de acordo com a sua concepção atual: é quanto se colhe quando se examina a própria relação social a que os dizeres da norma aludem menos embaraçadamente.[21] É exagero racionalista dizer que o direito natural, carregado de ética, em si e por si nulificaria o direito posto no mundo com regras jurídicas contrárias ao primeiro. Cada tempo tem concepção de conveniência segundo a dignidade da pessoa e de grupos. Passa-se o mesmo com o espaço (brancos mais cultos, índios, esquimós, negros do fundo da África etc.). Se certo círculo social relativamente autônomo aceita regra jurídica contrária ao seu próprio direito, esse Povo ou parcela de Povo, terá legislado indiretamente positivando essa aceitação. Esta circunstância revoga a norma jurídica que vigia até então: todo poder emana no povo. Este, se estão mudando os fatos, vai alterando os seus sistemas de valores, incluído o mundo jurídico.
A função ampla da “aequitas”. A serventia da aequitas é imprescindível tanto para se completar algo que ficou deixado fora da escrita da regra, como também para lhe corrigir o sentido e a orientação. O conteúdo de relações implicadas, a quem a norma favorece e à custa de quem favorece, é elemento diante do qual se pode verificar o conteúdo revelado. Corrige a regras jurídicas escritas no que contenha de redação defeituosa por erro, consciente ou inconsciente, de quem a tenha redigido. A compreensão da equidade pede que seja esta localizada em arco mais geral de conhecimento: é o da teoria do conhecimento, onde se estuda a limitação da linguagem escrita e falada. Atrás da expressão articulada está o conceito e, no interior deste, o phainomenon procurado pela interpretação. Estamos falando, neste passo da expressão articulada de uma norma do chamado direito natural sistema. [22]
Algo de criativo, bem próprio da ars, lateja na regra jurídica sempre. É inarredável a presença da construção mental mesmo nas mais aperfeiçoadas teorias científicas positivas (o “construit”, contrário ao “donné”). [23] A aequitas está no mundo do homem, no mundo posto; “positivismo jurídico”, porém, no sentido de literalismo é, pois, atitude cognitiva muito distanciada da interpretação. Nada tem de “ciência positiva” (=ciência do mundo posto, conhecimento preciso do “donné”).
Resumindo. Eis, portanto, aí razões bastantes (e relevantes) para qualquer intérprete se livrar desse subjetivismo um tanto infantil.  
Prosseguindo com os trechos comentados, temos:

 

(5) Grandes apelos populares são impiedosos, podem conduzir a chacinas irreversíveis, linchamentos. O Poder Judiciário existe, nas democracias, para impedir esses excessos, especialmente se o Congresso os subscrever.


Comentário.
Como dissemos acima o clamor foi justo, à cata de aumento da moralidade, que tanto anda a faltar no Brasil. O erro popular figura quando não se conforma a gente com a não aplicação dessa lei às eleições deste ano em curso. Aí o reclamo popular sai da razão sábia e entra a ser razão louca, como deixamos dito acima.

Continuando:

(6) Não teme que a Justiça decepcione o País?

Não temo. Decepcionaria se negasse a Constituição. Temo, sim, estarmos na véspera de uma escalada contra a democracia. Hoje, o sacrifício do direito de ser eleito. Amanhã, o sacrifício do habeas corpus. A suposição de que o habeas corpus só existe para soltar culpados levará fatalmente, se o Judiciário nos faltar, ao estado de sítio.


Comentário.
Não há golpe algum contrário à eleição, nem sacrifício ao direito dos candidatos pelo fato de a Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010 ter sido edictada e estar em vigor este ano com um acréscimo de pressuposto eleitoral. Ela não pode ser aplicada neste ano de 2010. De modo que a democracia e as liberdades fundamentais continuam intocadas neste ponto. Afirmações em sentido contrário são destrutivas. Obnubilam a inteligência, em vez de lhe conferirem luzes de melhor saber.

Por fim, um último excerto da entrevista que iniciamos a comentar:

(7) As circunstâncias históricas ensejaram que o Judiciário assumisse uma importância cada vez maior. Isso pode conduzir a excessos. O juiz dizer que uma lei não é razoável! Ele só pode dizer isso se ele for deputado ou senador. Os ministros não podem atravessar a praça (dos Três Poderes, que separa o Supremo do Congresso). Eu disse muitas vezes isso lá: isso é subjetivismo. O direito moderno é a substituição da vontade do rei pela vontade da lei. Agora, o que se pretende é que o juiz do Supremo seja o rei. É voltar ao século 16, jogar fora as conquistas da democracia. Isso é um grande perigo. Inúmeras vezes o tribunal decidiu, dizendo que a lei não é razoável. Isso me causa um frio na espinha. O Judiciário tem que fazer o que sempre fez: analisar a constitucionalidade das leis. E não se substituir ao legislador. Não fomos eleitos.


Comentário.
Repetindo, temos de concordar com esta obscura e vazia “tese”— a da razoabilidade ou não razoabilidade de norma de direito. O conceito fica muito mais claro, dizíamos, se aludirmos à impossibilidade humana de se cumprir alguma regra jurídica. Neste caso ela será inconstitucional porque estará indo contra "direitos humanos", tutelados que são assim pela Constituição Federal de 1988 como pelo Direito das Gentes. E então qualquer juiz deve lhe decretar a invalidade, deixando de aplicá-la.
* * * * * * * * *


Algumas conclusões
A tarefa de conhecer o direito tem de realizar-se, para se errar menos, com os dados da ciência do direito.  Não é ciência fácil, mas a incumbência é possível. Requer-se para ela de esforço ingente e atitude vigilante de modéstia.
O direito é um dos sete principais processos sociais de adaptação, cuja característica marcante é a garantia extrínseca. Se o estudioso não consegue enxergar com clareza a diferença dele com os outros (por exemplo, com a política), vai enlear-se decerto em devaneios sem fim. Se quiser mesclá-lo com a arte (por exemplo, com a literatura — no falar supostamente elegante, sonoro, bonito), poderá empolgar-se com algo estranho à atividade cognitiva simples e segura. São enganos perniciosos, por vezes pedantes. O filósofo (ou o pseudofilósofo...) encanta-se com a ordem das ideias na sua interioridade de pensador; o cientista (ou quem busca sê-lo) tem sofreguidão por apreender “o que a coisa é”, independentemente de outros sentimentos — enquanto tal ato mais puro for possível à natureza humana. Um exemplo entre milhões é que pesquisa para saber se uma norma é inconstitucional, ou se é válida.
A teoria geral do direito, científica, é um pressuposto indispensável para o estudo do direito, nem se pode confundir com “filosofia do direito”. Em matéria de filosofia, afora a teoria do conhecimento, encontram-se constantemente na história do pensamento entradas mentais (e sentimentais) pela razão vazia de fatos extramentais. Tal é o caso da metafísica clássica e das filosofias existenciais de toda ordem. Nestas o pensador é quase sempre muito mais um literato que um homem de ciência. A sua colaboração para o avanço do conhecimento do direito é bem apoucada.
As filosofias tradicionais são proveitosas à vida humana, porém, em outros âmbitos de alta relevância sociológica. Servem como substitutas da religião e da estética (romance e poesia). São algo assim como um consolo altamente profícuo para a paz de espírito, e produtora de relações morais de elevada aprovação social. Inserem-se, sim, na cultura. Por vezes veem robustecidas pela própria ciência sem, todavia, se confundirem com esta. Ora bem, o jurista haverá de distinguir estes diferentes processos sociais de adaptação. Quando a sua função for a de encontrar sentido e orientação para alguma regra jurídica, tudo lhe pode servir. Contanto que por fim prevaleça a ciência positiva, valendo-se do método indutivo-experimental.
Há diferença entre (1) a nulidade de uma regra jurídica de lei por ela contrariar a Constituição e (2) a nulidade da sua aplicação — se for levada a regra fatos, encobrindo-os, antes da data legalmente prevista. Tal o que se dá com a Lei Complementar nº 135, de 04.06.2010. Ela está conforme a Constituição Federal de 1988; nada contém de inconstitucionalidade. Nulo será o decisum que a aplicar às eleições realizadas antes de decorrido um ano, contado este a partir do dia 04.06.2010.
 Por arremate: convém a todo estudioso de Direito ler as obras principais de Pontes de Miranda, em vez de estar a mencionar outrem (só por ser de outro país) e, pior, com leitura de segunda mão. Pontes ainda não foi entendido pela maioria dos profissionais. Mesmo no seu tempo, também quando foi juiz de carreira, era mais apreciado na Alemanha que no Brasil. Há os que nunca o leram e “a priori” como que já não gostaram. É bem como se costuma gracejar — “não li e não gostei”. Quadra ainda relembrar o velho e sábio dito, retirado ao evangelista Mateus, (capítulo 13, versículo 57) “ninguém é profeta em sua terra”.
                                          * * * * * * * * *

Bibliografia

 

 CASSIRER, Ernest. Die philosophie der Aufklärung. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1998.

CREIFELDS, Carl. Rechtswörterbuch. 13te. Auflage. München: C. H. Beck’s Verlagsbuchhandlung, 1996.

FÁVARO, Diocélia da Graça Mesquita. A formação do jurista, in FREITAS, Vladimir Passos (coord.). Direito em Evolução. Curitiba: Juruá. 2000.

FERREIRA, Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 5ª ed. amp. at. 2 v. São Paulo: Revista dos Tribunais.

GÉNY, François, Science et Technique en Droit privé positif, Paris, 1921, III [apud Pontes de Miranda, Sistema de Ciência Positiva do Direito, 2ª. ed., tomo III, página 252].

JUSTINIANUS. “Corpus Juris Civilis. Digestum Novum seu Pandectarum”.
LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Berlin: Springer, 1991.
NÁUFEL, José. Novo dicionário jurídico brasileiro. 4ª ed. rev. at. amp. 3 v. Rio de Janeiro: Editor José Konfino, 1965, tomo II.

OLIVEIRA, Mozar Costa de. “Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo)” — resumo da tese de doutorado na USP —: Revista de Estudos e Comunicações – Leopoldianum {revista da Universidade Católica de Santos}, volume XX, nº 56, Santos, abr./1994.

______ Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo). RT-678, abril de 1992.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

______Comentários ao código de processo civil. 3ª ed. rev. aum. (atualização legislativa de Sergio Bermudes), tomo V, 3ª edição, Forense, Rio, 1997.

______Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti.
______Os novos rumos do direito. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, 1923.
______ Introdução à política científica. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983.
______Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

______Rechtsgefühl und Begriff des Rechts (em homenagem ao Prof. E. Zittelmann no seu ano jubilar). Berlin, 1922.

______Subjektivismus und Voluntarismus im Recht.  Sonderdruck aus Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grunewald, 1921.

______Begriff des Wertes und zociale Anpassung (1922); Brasilien. Rechtsvergleichendes Handwörterbuch für das Zivil- und Handelsrecht des In- und Auslandes. Erster Band. Berlin, 1929. 

SCHRÖDER, Jan. Recht als Wissenschaft. München: C. H. Beck, 2001.

SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. Sociologie politique: éléments de science politique. 30ª ed. Paris: Montchrestien, 1977.

UEBERWEG, Friedrich. Grundriss der Geschichte der Philosophie, (tomo IV) Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1951; (tomo V) Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1953.


http://64.233.167.104/search?q=cache:EKZKY4ShG1wJ:de.wikipedia.org/wiki/Hermeneutik+Hermeneutik&hl=en&ct=clnk&cd=1.



[1] Está publicada no jornal digital de “O Estado de São Paulo”, como se vê em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100803/not_imp589608,0.php; agradecemos à Dra. Maria Freire, juíza de direito do Estado de São Paulo, a remessa da matéria em 04.08.10.

[2] Ver a respeito PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao código de processo civil. 3ª ed. rev. aum. (atualização legislativa de Sergio Bermudes), tomo V, 3ª edição, Forense, Rio, 1997, páginas 82-87 e tomo VII, ano 2000, páginas 313-343.


[3] Ver o nosso Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo). RT-678 — abril de 1992, página 69.
[5] Ver inúmeras passagens sobre o assunto em obras de gênio — PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. O problema fundamental do conhecimento. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972; Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Os novos rumos do direito. Rio de Janeiro: Livraria Editora Leite Ribeiro, 1923; Introdução à política científica. 2ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983; Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed., 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972 (sobretudo o tomo I, passim).

[6] Sobre escolas de exegese — “hermenêutica”, “dogmática” e “zetética” — em obra menos científica, ver COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2ª ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.177-200 e 203-224.


[7] Tocantemente a estes assuntos há muito que estudar no nosso gênio em obras como: Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. 4 v. Rio de Janeiro: Borsói, 1972; Rechtsgefühl und Begriff des Rechts (em homenagem ao Prof. E. Zittelmann no seu ano jubilar). Berlin, 1922. Subjektivismus und Voluntarismus im Recht.  Sonderdruck aus Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grunewald, 1921, p. 522-543. Begriff des Wertes und zociale Anpassung (1922); Brasilien. Rechtsvergleichendes Handwörterbuch für das Zivil- und Handelsrecht des In- und Auslandes. Erster Band. Berlin, 1929, p. 810-840.

Estas duas primeiras obras são, sobretudo, de ciência do direito. Foi muito elogiada na Alemanha a primeira delas (na 1ª edição, de 1922); as outras seguintes são precipuamente trabalhos de “sobredireito”, bem acolhidos no mesmo país. Continuam sendo valores pouco estimados hoje em dia porque quase nada estudados entre nós. A sabedoria popular bem cunhou este fenômeno: “ninguém é profeta em sua terra”!...


[8] Ver Pontes de Miranda, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht. Sonderdruck aus Archiv für Rechts- und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grunewald, 1921, p. 522-543. Recentemente ver também CASSIRER, Ernest. Die philosophie der Aufklärung. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1998, p. 313-318 e 324-339.

Ernst Cassirer é havido como o principal representante da Escola de Marburgo, fundada por Hermann Cohen, como se lê em UEBERWEG, Friedrich. Grundriss der Geschichte der Philosophie, tomo IV, Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1951, página 443. Ver também SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. Sociologie politique: éléments de science politique. 30ª ed. Paris: Montchrestien, 1977, p. 475-659.


[9] Pontes, Sistema, III, 277-283.


[10] Pontes, Sistema IV, 77-78 e 82.


[12] Ver NÁUFEL, José. Novo dicionário jurídico brasileiro. 4ª ed. rev. at. amp. 3 v. Rio de Janeiro: Editor José Konfino, 1965, tomo II, página 318 e IV, 357.
[13] CREIFELDS, Carl. Rechtswörterbuch. 13te. Auflage. München: C. H. Beck’s Verlagsbuchhandlung, 1996, página 608 cc. 692-693. LARENZ, Karl. Methodenlehre der Rechtswissenschaft. Berlin: Springer, 1991 (longamente nas  pgs. 11-188 e 313-316).

[14] SCHRÖDER, Jan. Recht als Wissenschaft. München: C. H. Beck, 2001, p.29-48.


[15] UEBERWEG, Friedrich. Grundriss der Geschichte der Philosophie, (tomo IV) Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1951. (tomo V) Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt (13. Auflage), 1953.


[16] Ver CASSIRER, Ernest. Die philosophie der Aufklärung. Hamburg: Felix Meiner Verlag, 1998, p. 439-443.


[17] Imperador Justiniano, começo do “Corpus Juris Civilis. Digestum Novum seu Pandectarum”.

[18] Na ideologia as paixões estuam muito soltas, estorvando o pensamento livre. Ver a esse respeito o nosso artigo “Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo)” — resumo da tese de doutorado na USP —: Revista de Estudos e Comunicações – Leopoldianum {revista da Universidade Católica de Santos}, volume XX, nº 56, p. 65-77, Santos, abr./1994.


[19] A liberdade interior do intérprete varia de grau. A sua objetividade dependerá da sua educação ética e científica precisamente na análise dos sete processos sociais de adaptação. Não se pense ser uma posição fácil, nem uma previsão de resultados absolutamente certos. O que haverá, sim, é a perfeição possível ao ser humano, ou seja, diminuição do despotismo do intérprete. Tal é o caso do autoritarismo do juiz infantilizado pela embriaguez do exercício do poder. Ganham as pessoas do Povo com o contrário disto.


[20] Ver FERREIRA, Pinto. Princípios gerais do direito constitucional moderno. 5ª ed. amp. at. 2 v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971.vol I. p.46 (in medio) e p.50-54.
[21] Ver, a esse respeito, SCHRÖDER, Jan. Recht als Wissenschaft. München: C. H. Beck, 2001, página 222

[22] Ver Pontes de Miranda, Sistema de ciência positiva do direito, 2ª ed., vol 2, p. 89-101.


[23] Para tanto ver GÉNY, François, Science et Technique en Droit privé positif, Paris, 1921, III, página 18 (onde discute a dicotomia “donné” e “construit”) apud Pontes de Miranda, Sistema de Ciência Positiva do Direito, 2ª. ed., tomo III, página 252. Este cuidado de liberdade perante os fatos consta também de capítulo de livro: FÁVARO, Diocélia da Graça Mesquita. A formação do jurista, in FREITAS, Vladimir Passos (coord.). Direito em Evolução. Curitiba: Juruá. 2000.


Nenhum comentário: