quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A delicada questão da vigência das medidas provisórias

A delicada questão da vigência das medidas provisórias

1. Um dado histórico recente sobre as medidas provisórias.

Em abril deste ano de 2009 o advogado Walter Ceneviva publicou artigo no jornal Folha de São Paulo sobre as Medidas Provisórias. Falava do “Atoleiro da medida provisória”. Também que sem elas é difícil preencher lacunas da lei em sentido estrito. Por outro lado, diz, o processo democrático subverte-se com elas até mesmo quando se cuida de matéria de urgência. Uma das razões disto está no fato de ela não ser edictada pelo poder legislativo e sim pelo presidente da república. A respeito deste conflito o articulista teceu considerações de cunho político, incluídas considerações sobre o poder da mídia para influir no público no prol do poder executivo federal. Textualmente: “Tem acontecido até de a pauta do Congresso ficar bloqueada pelo número de medidas provisórias do Executivo na "fila" para serem discutidas. O Executivo pode servir-se de várias medidas provisórias encaminhadas ao Legislativo para impedir a votação de projetos quando isso lhe convenha. Trazia como exemplo o caso da Medida Provisória de número 82/02 por causa da “deterioração de rodovias federais, com enorme prejuízo para o transporte de carga”: mais de dez rodovias federais passaram para a responsabilidade do Estado-membro interessado nelas. Eis, porém, que o Congresso não aprovou essa M.P. 82/02 e nem a União queria recebê-las de volta e os Estados pleiteavam indenização pelos gastos feitos com elas. Ou seja, o problema jurídico mal resolvido pelo abuso do Executivo Federal criou situação econômica de dificultosa solução para o país todo.

2. A questão da vigência das Medidas Provisórias.

A vigência das Medidas Provisórias parece ser uma matéria ainda pouco estudada. É matéria que anda despercebida da atenção dos estudiosos. O caso da Medida Provisória de número 82/02 é apenas um exemplo, o de não-aprovação de uma delas.

Tem-se aqui de examinar com extremo cuidado o que se passou com uma Medida Provisória não convertida em qualquer outra forma constitucional de normas.

Se qualquer Medida Provisória não for convertida em lei, nem for expressamente rejeitada, nem vier a ser objeto de decreto legislativo no prazo previsto na Constituição Federal de 1988, neste caso ela perde a sua eficácia própria. Por via de conseqüência só terão surtido efeito jurídico os contratos celebrados durante o breve tempo da sua vigência.

Por quê?

1- Leia-se na Constituição atual a norma do artigo 62 § 3º:

As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. [sublinhado nosso].

2- Voltemos o olhar agora para o estabelecido no art. 62 § 12:

Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. [idem]

3- De imediato, porém, temos no mesmo artigo no § 11, que também sublinhamos em parte, mais um complemento do pensamento anterior:

Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

O que se extrai, portanto, dessas três redações de regras jurídicas é que:

(a) há prazo para a Medida Provisória alterar-se, deixando de ser o que vinha sendo — ou se transformar em lei, ou ao menos surgir projeto de lei para ser edictada a lei correspondente a ela, ou se converter em decreto legislativo;

(b) uma vez aprovado o mero projeto de lei (o projeto de conversão dela em lei), a Medida Provisória já vigorará e regerá os fatos; suas normas incidirão sem limitação sobre os suportes fáticos aludidos (até o momento em esse projeto venha a ser ou sancionado ou vetado);

(c) não havendo nem uma coisa nem outra — nem aprovação nem rejeição do projeto em questão —, somente se regerão pela Medida Provisória aquelas relações jurídicas oriundas dos atos praticados no período de tempo em que ela vigorou, isto é, durante o tempo passado entre a edicção dela e o momento em que havia de ser aprovada ou rejeitada, ou durante o tempo em que fosse aprovado (ou rejeitado) o projeto da sua aprovação, ou sobreviesse o decreto legislativo.

Por outras palavras, este dito “conservar-se-ão por ela regidas” (parte final do § 11 do artigo 62 da Constituição Federal de 1988) é uma locução que só pode ser entendida assim: a mantença da eficácia jurídica da Medida Provisória subsiste apenas durante esse tempo inicial da vigência dela, e não pelo tempo posterior, indefinidamente. A Medida Provisória não é dotada de eficácia jurídica de norma de direito sem que (1) ou sobrevenha a lei, (2) ou o decreto legislativo (3) ou o projeto de sua aprovação.

3. Conseqüência teórica e prática.

Pode mesmo ser que muitas das Medidas Provisórias não hajam ainda sido convertidas nem em lei etc. simplesmente por não ter havido consenso a esse respeito até ao presente momento entre os membros do Poder Legislativo. Ou então, salvo engano, eles se esqueceram do assunto...

Vamos a exemplos: as Medidas Provisórias de no 2.229-43, de 6 de setembro de 2001; 2.219, de 4 de setembro de 2001; 2.227, de 4.9.2001; 2.226, de 4.9.2001; 2.227, de 4.9.2001 não consta terem sido convertidas em lei, ou em decreto legislativo, nem que tenha surgido o projeto de sua aprovação.

Segue-se então que, por incidência das normas do artigo 62 §§ 3º, 11 12 da atual Constituição (supra), essas Medidas Provisórias:

(1) existem, mas já perderam a eficácia própria de regra jurídica;

(2) não vigem e, pois,

(3) não podem ser aplicadas;

(4) toda vez que qualquer aplicação que delas se fez, ou se fizer, depois de terem caducado, não surtiu efeito jurídico algum.

A razão disto já ficou dito: o suporte fático ficou sem a incidência das normas de direito que antes incidiam, ou seja, quando ainda tinham vigência essas Medidas Provisórias. A grave omissão legislativa não faz irradiar-se o efeito de a Medida Provisória caduca viger depois de ter caducado. Passados cento e vinte dias da publicação delas pelo Presidente da República, e sendo continuada a inércia legislativa, perderam elas o efeito de norma de direito. Caducaram, caíram para fora do direito brasileiro.

Persiste a sua eficácia tão-somente durante os 120 seguidos à sua publicação primeira, antes da caducidade.

Repetindo, esta caducidade dá-se ao modo seguinte:

(a) sem a sua transformação da Medida Provisória em lei (ou revogação legal);

(b); sem o surgimento de projeto de lei, em que Medida Provisória se converta;

(c) sem transformação dela em decreto legislativo.

A situação jurídica criada pela caducidade da Medida Provisória assemelha-se (digamo-lo só para efeito didático), assemelha-se à coisa julgada recaída eventualmente sobre qualquer regra jurídica cuja invalidade tenha sido corretamente decretada por órgão competente do Poder Judiciário.

4. Complicações para alguns fatos jurídicos.

Suscitamos aqui matéria sobre que não nos manifestaremos por ora. Exigem estudo mais profundo dos pontos ligados a ela. Cumpre pensar nos dois campos, do direito material e do direito processual, ambos com possível implicação do direito constitucional.

Algum negócio jurídico pode ter sido celebrado, ou algum ato jurídico stricto sensu pode ter sido praticado, com a aplicação de certa Medida Provisória já caduca. Como não se pode pensar em anulabilidade, a pergunta daí exsurgida é se qualquer desses dois fatos jurídicos é inexistente ou se é nulo, e se há aí matéria constitucional. É questão atinente ao direito material.

No campo do direito processual cabe indagar como será tratada a coisa julgada material que tenha declarado existente ou válido qualquer deles, ao menos em parte. Exemplo: quid inde se a dita coisa julgada material já tem mais de dois anos, sem ser possível, pois, a ação rescisória?

Há que estudar além de outros, pontos tais como: se esses dois fatos jurídicos são inexistentes ou se são apenas nulos; em qualquer das duas hipóteses, se é mister ação para a decretação de sua nulidade, ou de declaração da sua inexistência perante o Poder Judiciário (ou se algum dos outros dois poderes, por provocação ou sem ela, podem fazer o mesmo que o Poder Judiciário faria); se essa ação prescreve e em quanto tempo; se o prejudicado tem ação contra o Estado por ter havido omissão de algum dos poderes — Executivo e Legislativo; que ação seria essa (declaratória, condenatória, mandamental).

Na órbita do direito processual levantam-se também perguntas como, por exemplo, se há mesmo pretensão à tutela jurídica estatal in casu; qual o juízo ou o tribunal competente; se a matéria inclui necessariamente o direito constitucional; se eventual recurso extraordinário é daqueles em que “o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei” — artigo 102 § 3º da Constituição — (e que lei é esta) etc. etc.

Santos, Estado de São Paulo, 11 de agosto de 2009.

Mozar Costa de Oliveira

(Mestre o doutor em direito — USP).

Um comentário:

Anônimo disse...

Prezado Dr. Mozar,

E quanto à Medida Provisória inconstitucional convertida em Lei constitucional que não trata de fatos ocorridos na vigência da Medida Provisória, mas só de fatos ocorridos a partir da data de sua publicação? A inconstitucionalidade permanece eternamente atingindo os fatos celebrados durante a vigência da MP?

Conheço um caso onde isso parece estar ocorrendo. Se tiver interesse em discuti-lo, escreva-me diretamente: quilim@gmail.com .

Abraço,

Quim Ho.