terça-feira, 17 de novembro de 2009

DESCOBERTAS CIENTÍFICAS DE PONTES DE MIRANDA

DESCOBERTAS CIENTÍFICAS DE PONTES DE MIRANDA

Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor de direito aposentado (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

I — Algo sobre a vida de Pontes, o pesquisador brasileiro.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda está para os pesquisadores da matemática, física, biologia, filosofia, sociologia e direito como o gênio está para os bons talentos: abre-lhes novos caminhos. Trazemos aqui alguns dados a esse respeito — algo da vasta colaboração desse brasileiro para o avanço da Ciência.

Nasceu em Maceió aos 23 de abril de 1892 e faleceu no Rio de Janeiro em 22 de dezembro de 1979. Consta ter sido uma vocação de esquadrinhador da natureza desde a infância. Curso formal, com título, só teve o de bacharel em direito, estudado na então “faculdade de direito de Recife”. Aprendeu o começo da língua alemã (talvez também de latim e de grego) com frades franciscanos, quando era quase adolescente. Dotado de inteligência descomunal e de inesgotável curiosidade, lendo livros inumeráveis[1] e pensando organizadamente, o conhecimento de tudo o mais ele como que tirou de si mesmo.

Em síntese cumpre dizer que escreveu trinta e duas obras de dogmática jurídica (contando as várias edições) de vários volumes (a mais longa com sessenta deles), oito sobre ciência do direito, uma de antropologia, seis de filosofia científica, quatro de filosofia no sentido clássico (que o autor denomina “literárias), um trabalho isolado sobre lingüística, cinco de literatura (em quatro idiomas), dois livros de política, dezesseis de sociologia, duas sobre história do direito. [2] Percorramos alguns campos de sua atuação criadora.

II — Breve síntese de alguns resultados da pesquisa.

Matemática. No campo da Matemática ainda não veio a lume o que já produziu. Saiba-se que era para as Matemáticas a sua maior vocação — o matemático Gödel, autor da teoria da incompletude, amigo de Einstein, lamentou que Pontes não tivesse se dedicado a esta ciência ex professo. Entretanto é digno de nota o seguinte: a) foi sócio colaborador de uma revista norte-americana de pesquisa matemática (ALS — Association of symbolic logic); b) seus trabalhos de filosofia científica, sociologia e direito, são feitos à base de análise matemática. O melhor exemplo é o "Tratado das Ações", de sete tomos, que tem rascunho de cálculos matemáticos com lógica simbólica. Se publicados os rascunhos, abrangerão dois tomos; c) descobriu a causa epistemológica do número irracional.[3].

Física. Acompanhou ativamente as pesquisas da Física e da Química modernas, cujos passos de progresso aplicou corrigindo alguns deles em obras como "Sistema de Ciência Positiva do Direito" e "O Problema Fundamental do Conhecimento". Na Física é de interesse a sua descoberta da complementação à teoria da relatividade geral (Einstein), por meio do espaço-tempo-energia não de três, mas sim de n dimensões. Mais ou menos o seguinte — a relatividade tem de atender também ao complexo sociológico de "soma" mais "psiqué" do observador (Homem). Corpo e espírito também atuam e movem-se no mesmo universo físico dos corpos celestes; sujeitam-se às leis de atração e repulsão da matéria-energia. O que o Homem percebe no instante A não é rigorosamente idêntico ao apreendido no instante B: tanto o pesquisador como a coisa pesquisada sofreram alguma alteração no ínterim, por mínima que seja. Essas alterações biofísicas são determinadas também pelos processos sociais de adaptação, de que sete são os principais: Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Este trabalho do autor foi apresentado, através da Alemanha, ao congresso de filosofia de Nápoles em 1925, sobre a concepção de espaço.[4]

Biologia. A familiaridade de Pontes de Miranda com as finas e obscuras camadas da Biologia, para senti-la basta lerem-se as páginas do seu breve livro "Garra, Mão e Dedo". [5] Trata-se da história biológica do psiquismo, particularmente do Homem. É, aliás, o ponto de partida da teoria científica do conhecimento com o problema dos universais da filosofia clássica.

Filosofia. No domínio da filosofia destacam-se algumas descobertas: 1) pontos precisos acerca de erros seculares na solução do grave problema epistemológico, em que incorreram Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Duns Scot, os nominalistas, os idealistas, Edmund Husserl, B. Russel e outros notáveis filósofos do século XX (W. James, A.N. Whitehead, F.P, Ramsey, R. Carnap, L. Wittgenstein, J. Hjelmlev); 2) não é possível filosofar eficazmente sem começar pelos fatos (indução) com o método indutivo-experimental; 3) a metafísica, como tal, não é filosofia científica senão que pertence aos domínios típicos da Religião, à qual não se pode porém contrapor aprioristicamente indisposição com a Ciência ou desvalor adaptativo para o equilíbrio dos sistemas sociais (é impossível apagar a Religião e, com ela a metafísica — sem que isto seja um mal social); 4) a teoria científica do jeto (em lugar da "essentia", "species", "universale") apresenta-se como solução ao problema fundamental do conhecimento: não há "idéia" alguma inteiramente vazia de experiencialidade, de modo que por isso mesmo toda "idéia" exata é verificável no real; assim, é possível conhecimento abstratíssimo e científico, se corrigido sempre pela volta mental, rastejante na solidez das realidades fáticas existentes fora da mente humana; 5) cientificamente, embora seja impossível "transcender", a transcendência cognitiva é biologicamente desnecessária (nem sequer para “compreender” as alturas da Religião); 6) a educação moral, a psicanálise e a formação religiosa devem realizar-se com a ajuda de método rigoroso para se manter o Homem no caminho seguro do encontro consigo mesmo: sem os exageros da subjetividade e os do objetivismo; 7) conhecer é submeter-se ao real, não impor-se a ele ou contorná-lo metafísica ou literariamente; 8) o método dedutivo (mentalidade racionalista) só atende ao real (valor de conhecimento) se e quando tratar com jetos finos e precisos (não basta de modo algum o conceito abstrato, ainda que de 4º ou 5º grau da derivação lógica; 9) o jeto não será preciso se a sua extração não tiver sido colhida com exatidão do mundo real extramental; 10) tal operação mental só se consegue mediante o corte do "ob" e do "sub" no momento adequado; 11) o "ser" mentado (aproximadamente = jeto) é sempre denso (ao menos denso de subjetividade) e, por isso, toda "idéia" correspondente a ele já contém algo de ação; 12) a "idéia" é assintoticamente variável na sua significação própria, de modo que qualquer absoluto está acima do conhecimento cientifico — é matéria de outro processo adaptativo, o qual, em expansão máxima do espírito do homem, extrapola da biologia menos fina; 13) existem, sim, os "termos" como condição biológica do próprio pensamento, mas tudo quanto sabemos é em relações que o sabemos, de modo que (14) de outro lado, é possível o conhecimento mensurável das relações, incluídas aí as relações sociais e, portanto, (15) é-nos dado obter o conhecimento exato das relações jurídicas, ou seja, o direito cientifico — direito conhecido com o auxílio da ciência positiva); 16...) etc. etc.

Sociologia. Tocantemente à sociologia cientifica podem-se destacar: a) a descoberta fecunda dos sete principais processos de adaptação bio-sociológica (religião, moral, arte, direito, política, economia e ciência), com os seus valores humanos de equilíbrio na rapidez evolutiva, e de peso de violência na interação humana.[6]

Num livro desaparecido, Methodo de Analyse Sócio-psychologica, editado em 1925, mostra terem todos os seres humanos algum depósito de Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência, com quantificações variáveis. Ele desenvolve as idéias deste livro em algumas outras obras suas. A Religião compõe-se de relações mais duradouras e de mais difícil modificação no interior das pessoas. Tem grau seis de estabilidade emocional. A Moral vem em segundo lugar com essas propriedades (grau cinco de estabilidade do indivíduo e das sociedades). Em terceiro lugar, com grau quatro, situa-se a experiência das Artes. O Direito ocupa posição intermediária (3). A vivência da Política é ainda mais instável (2) e a Economia, com apenas um, é o mais instável, o mais mutável processo social de adaptação. A Ciência é a mais neutra (quase zero), a que menos causa instabilidade; não frena em quase nada as mudanças, nem instabiliza, porque com ela, para a sua segurança vital, o homem apenas procura indicar seres e situações (“dizer o que a coisa é”). Estes graus de força estabilizadora são o mesmo que a capacidade de frenação sobre as mudanças na vida humana, exercida sobre pessoas e sociedades.

Estes processos sociais de adaptação são matematicamente ainda definidos por outro critério — o grau da violência, mando, imposição, despotismo, que exercem sobre a pessoa e os seus círculos sociais. Ora, mostra Pontes, a ordem decrescente de força de mandonismo, de imposição psicológica, de violência emocional, de quantum despótico (na sua terminologia), dos sete principais processos sociais de adaptação, é a seguinte, com números aproximativos: Política (6), Econo­mia (5), Religião (4), Direito (3), Moral (2), Artes (1) e Ciência (0). Como os processos sociais de adaptação entram uns nos outros, em determinado pedaço de Espaço-Tempo-Energia, por exemplo, o Direito pode sofrer mais influência religiosa do que em outro. Será por isso um Direito de alterações mais dificultosas (direito mais conservador), e também um sistema jurídico assaz impositivo. A sociedade, quando altamente influenciada pelos interesses políticos e econômicos, será menos estável e mais perturbada por mudanças e batida por atos de violência, seja ela física ou simbólica. Já os indivíduos podem educar-se em equilíbrio pessoal, enxertando em si os elementos sociais de que mais estão a carecer (exemplo: se for mais propenso ao ganho de dinheiro, ou a cargos político, procurar viver com a inserção de valores metafísicos).

Tornemos à enumeração de outras descobertas, retomando a ordem anterior, como segue.

b) À medida que a ciência avança, diminui o despotismo; c) a sociologia é uma expansão da Física e da Biologia, de modo que as leis mais gerais do mundo físico são também leis da biologia; d) donde termos de afirmar que estão na Religião, Moral, Artes, Direito, Política e Economia os princípios da determinação única, da crescente estabilidade, da expansão dos círculos sociais, da diminuição crescente do despotismo social; e) esses princípios mais vastos indicam para onde se deve caminhar socialmente, sendo que o ato de contrariá-los é forçar regressão (=atrasar o progresso humano); f) para se lograr mais felicidade para o homem é indispensável cresça o Estado simultaneamente em democracia, em liberdade e em igualdades; f) a solução técnica para os chamados "direitos humanos" só se pode dar dentro do Estado solidário, ou seja, aquele que assegure constitucionalmente os cinco novos direitos do homem: à subsistência, ao trabalho, à educação, á assistência e ao “ideal” (algo assim como o “direito ao sonho”), e que sejam todos estes direitos dotados de pretensão e de ação contra o Estado; g) para que se tenha uma grande Nação o principal investimento (e indispensável) é o que se faz em beneficio direto do Povo: subsistência (alimentos, roupa, moradia), trabalho (ocupação produtiva, que é direito e dever), educação (escola de programa único nacional, gratuita (para quem não puder pagar) desde o primário até ao curso superior, sendo obrigatórios o primário e o curso médio, assistência (gratuidade de hospitais, médicos, dentistas, psicólogos e remédios) e “ideal” (direito, pretensão e ação para se obterem meios suficientes de realização pessoal, como o estudo e a prática de arte, prática de esporte, pastoral religiosa, pesquisa cientifica livre); h) nenhuma constituição pode permitir a não-existência dos cinco novos direitos do homem, de modo que a democracia e a liberdade devem estender-se ao máximo, respeitada porém a realização desses cinco direitos fundamentais; i) democracia, liberdade e igualdades (os três caminhos), com os cinco direitos humanos (subsistência, trabalho, educação, assistência, e ideal), serão uma mera pregação retórica (= inutilidade literária) enquanto não forem inseridos na Constituição federal, e se todos esses direitos não forem providos de ação para se compelir o Estado a propiciar efetivamente, e em cada caso, a dação do mínimo à subsistência, de ocupação produtiva, de educação completa, de assistência à saúde e de realização de ideal pessoal; j) um povo juridicamente organizado com a efetivação dos cinco direitos é um povo forte sob todos os aspectos — e mais estável e mais feliz.

Direito. No Direito temos uma parte integrante da sociologia; nele são também valiosas as descobertas ponteanas, sempre no caminho exato da Ciência. Citemos algumas: a) o fato jurídico é sempre resultante da incidência de regra jurídica sobre suporte fático; b) as regras jurídicas não-escritas são em grandíssimo número; c) ao jurista incumbe revelar o sentido e a orientação das regras jurídicas, valendo-se da ciência e não do "espírito da lei" ou — menos ainda — da "intenção do legislador", ou seja, é através da analise das relações sociais (a interpretação dos fatos alumia a senda da exegese da norma); d) na análise do conteúdo das relações sociais haverá que levar-se em conta o fato juridicizado (religioso, moral, estético, científico, intrajurídico, político ou econômico) e a sua orientação em função da crescente estabilidade (expansão dos círculos sociais e diminuição do quantum despótico); e) não é possível tratar-se o direito senão como sociologia especializada — porque ele é uma camada do mundo —, de modo que não tem sentido lógico o chamado "direito puro" com a “teoria pura do direito”. Seria o mesmo que "direito abstrato", "direito esvaziado"; f) a regra jurídica tem dupla função natural; a segurança extrínseca (convicção de que será aplicada como se editou validamente) e a segurança intrínseca (convicção de que a norma proverá à felicidade humana — realizando uma adaptação social crescentemente melhor); g) todo fato jurídico cabe em uma de cinco classes: negocio jurídico, ato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico, fato jurídico em sentido estrito e ato ilícito; h) do fato jurídico (em sentido amplo, que abrange os cinco acabados de mencionar) irradia-se necessariamente pelo menos uma de quatro classes de eficácia jurídica: direito (subjetivo, ou não-subjetivado), pretensão, ação e exceção; i) cada uma das quatro classes de eficácia jurídica situa-se numa posição jurídica exatamente definida, e é de muita valia para o acerto rigoroso na aplicação do direito; j) há cinco classes de ações (e de atos jurídicos stricto sensu), que são: a declaratória (positiva ou negativa), a constitutiva (positiva ou negativa), a condenatória, a mandamental (positiva ou negativa) e a executiva, sendo que em cada uma delas há certo peso dos efeitos de todas as quatro; l) a classificação é feita, pois, pela eficácia preponderante ou força; m) as sentenças são classificáveis como as ações (cinco classes), sendo que só se dá a eficácia de coisa julgada material quando haja na sentença pelo menos grau três de declaratividade (efeito declaratório mediato).

Trata-se de uma descoberta importante por isso que, para a propositura de uma ação rescisória de sentença ou de acórdão, há nela o pressuposto da coisa julgada material; n) sentença sobre prescrição, e sobre ilegitimidade de parte para a causa, é sentença de mérito e não de pressuposto processual ou pré-processual; o), p) etc. etc. etc.

O método. Deixamos para tópico final a fundamental descoberta ponteana — que explica todas as demais (das quais demos acima resumo magro e incompleto): é a do método indutivo-experimental, único caminho a um tempo seguro e fecundo para todas as chamadas "ciências humanas". Soa ainda como rebarbativo esse conjunto de assertivas. É, porém, pela própria mentalidade científica que esse brasileiro tomou consciência de si mesmo, e se dedicou à pesquisa teórica e à aplicação prática da matemática, da física, da biologia, da filosofia, da sociologia e do direito. Ora bem, essa mentalidade da ciência positiva (= conhecimento do que está posto no mundo, fora da mente) objetivou-se e afinou-se, a si mesma se descobriu e franqueou o caminho adequado ao conhecimento do mundo. Cuida-se de trabalhar cognitivamente sempre com sumo respeito aos fatos, à realidade extramental. Trata-se de só prescindir do concreto e lançar-se ao abstrato quando os fatos o permitam. A proposição abstrata, o "a priori", tem de voltar constantemente ao concreto para deixar que se teste a sua verificabilidade. Aprovada, então sim: a proposição, que de tal rigor resultar, será aceita como cientifico-positiva. O mais, não. É esse método que faz, da vasta obra ponteana, um instrumento notavelmente construtivo no favor da felicidade humana no equilíbrio social (organismo X meio).

III — Umas poucas aplicações práticas das idéias de Pontes.

O movimento dos nossos conceitos há de fazer-nos sempre cautelosos com as nossas conclusões ao pensar. As elucubrações cerebrais, ainda as mais “brilhantes”, se não forem testadas e aprovadas pelos fatos da natureza, são composições de ordem subjetiva. O universo é mais complexo do que o percebido pelos físicos, astrônomos e cosmólogos. Sabemos ainda pouco (intensidade), e de um quase nada (extensão), mas examinada na história, a ciência avança sempre; esta é, digamos, uma realidade encorajadora. A teoria do conhecimento (gnosiologia) é capítulo fundamental de todos os ramos do conhecimento, da lógica a qualquer dos ramos das chamadas ciências humanas. O abandono de categorias próprias da filosofia clássica é mais condizente com a atividade cognitiva de precisão e com as conseqüências dela (exemplos: “racionalidade”, “razoável”, “razoabilidade” — são elegâncias literárias vagas e prejudiciais). A ciência é a mais neutra das atividades mentais: a que menos prende, ou que empurra, interiormente os seres humanos nos seus programas de ações religiosas, morais, artísticas, jurídicas, econômicas e políticas, de modo que convém flexibilizar os pensares sobre estas matérias mediante a colheita de dados e mais dados, hauridos no conhecimento científico positivo. Toda pesquisa, pura ou aplicada, que prescindir de fortes doses de ciência, correrá riscos graves de erros, mesmo que tenha “reta intenção” o homem pensante (exemplos: decisões pessoais para o presente e para o futuro, reflexão religiosa, proposições de caráter moral, interpretações de obras de arte, exegese de regra jurídica ou interpretação de fatos jurídicos, debate político, disputa de teoria econômica). Cumpre, para se errar menos, levar em conta a questão matemática dos limites da natureza (o que é necessário e suportável para a existência ser mais agradável e producente para si e para os outros). Nossas proposições de cunho cognitivo são aproximações, sem medidas perfeitas; a estatística é um instrumento necessário para formulá-las com menos erros, de modo que a questão não é “ser ou não ser”; contrário: — ser mais ou ser menos, eis a questão. A lei generalíssima da relatividade pede que aumentemos em nós a desconfiança provisória das nossas certezas (= humildade) e que sejamos cautelosos com as proposições afirmativas ou negativas que produzimos (= prudência intelectual). É importante, para aumentar os acertos existenciais, termos consciência constante de o homem ser animal, sim, mas não só animal bruto: a sua possibilidade de acumular conhecimentos e a capacidade de doar-se aos outros, até mesmo com algum sacrifício próprio, são propriedades alheias ao bruto; definem o que é “dignidade” e propinam, assim, os conceitos de bem e de mal (moralidade). O avanço das descobertas científicas sobre a estrutura e as leis da natureza inspiram os artistas para eles percorrerem novos espaços interiores. O aumento de conhecimento mais preciso, exato e seguro dos fatos de interesse da vida humana, faz prosperar o acerto na exegese de regras inerentes aos modos de ser específicos da Religião, da Moral, das Artes, do Direito, da Política, da Economia e da própria Ciência. A atividade cognitiva não atinge o absoluto nem dispõe, de outro lado, de elementos bastantes para autorizadamente eliminá-lo como um absurdo existencial. Etc. etc.

IV — Conclusão final.

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, estranha figura[7] humana, revelou-se um resignado homem de ciência, de vida tranqüila — destituído do afã de honras, reconhecimentos públicos e celebridades. Recusou-se a ser um como que pássaro exibidor das suas penas vistosas no campo do conhecimento. É admirável como, ciente embora de que várias gerações ainda vão passar sem lhe entenderem a obra enorme, não se tenha preocupado com outra coisa que com continuar trabalhando diariamente horas a fio. Viveu longamente esse gênio, assinalado por insopitável vocação de desbravador de novos caminhos, novos e mais curtos. Visava com isso fossem mais felizes os seus semelhantes.

Numa palavra, parece ter sido um superior modelo de intelectual brasileiro, mesmo sendo de que de inimitável qualidade.


[1] Pontes lia no original os seguintes idiomas estrangeiros: espanhol, italiano, francês, inglês, alemão, latim e grego.

[2] Sobre Pontes de Miranda e suas obras há pelo menos trinta e um trabalhos publicados (oito são nossos), dos quais um no Japão.

[3] Número irracional é o número real que não pode ser obtido pela divisão de dois números inteiros. Ver, por exemplo, http://de.wikipedia.org/wiki/Irrationale_Zahl

[4] Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia. Napoli, 1925.

[5] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Garra, mão e dedo. São Paulo: Martins, 1953.

[6] Para quem se dedica à atividade jurídica quadra lembrar novamente ser o Direito um dos sete processos sociais de adaptação. Também cabe recordar que não há direito feito apenas de normas, sendo certo que as normas só se podem compreender adequadamente diante dos fatos a que aludem. Com uma frase emblemática desejou Pontes que no pórtico de todas as faculdades de direito estivesse escrito: “Aqui não entra quem não for sociólogo (e quem diz sociólogo, diz matemático, físico e biólogo)”.

[7] Dissemos ser uma figura estranha. Levava consigo idiossincrasias surpreendentes, até em matéria de desejo sexual já na sua idade avançada.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Ensino do Direito e perfil do jurista

Ensino do Direito e perfil do jurista

Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor de direito aposentado (Universidade Católica de Santos, São Paulo).

P

retendemos trazer nestas páginas algumas idéias sobre a expectativa do aluno de graduação em Direito, outras a respeito da relação entre a instituição e o estudante. Depois, a questão que envolve ideologia e ciência. A seguir, alguns pontos de reflexão no que tange a mentalidade científica e a liberdade intelectual. Após, uma que outra sugestão sobre essas matérias. Seguir-se-á uma tentativa de traçar um espectro dos bacharéis (sem excluir os formados na faculdade de Direito da UniSantos). Para encerrar, rápidas conclusões.

I - O que ocorre no ensino

Estaremos a falar da situação deste final de década. Veremos, todavia, que os mesmos problemas perduram há muitas delas.

1. A expectativa do aluno

As disposições preponderantes dos alunos, ao buscarem o curso superior para estudar Direito, podem fragmentar-se em três tipos:

a) os de ideal ético-político ou reformador. São os que nutrem em si uma necessidade inconsciente de trabalhar de algum modo, difuso, por um mundo que pode e deve ser mais justo. Tanto no respeitante a distribuição dos bens materiais, como numa maior pulverização do poder político, na democratização da cultura e no aumento do respeito interior pela dignidade humana, notadamente dos mais carentes.

b) Os de ideal intelectual. São em geral os jovens, de ambos os sexos, de moldes mentais mais adequados a pesquisa e a produção de artigos e livros, provavelmente aproveitáveis para a carreira universitária.

c) Os de ideal "profissional", isto é, com vista mais voltada para as conquistas econômicas: é o homem prático típico, no sentido do advogado que visa, sobretudo, ao enriquecimento.

Esses tipos não são puros, claro está. Desde que admitamos uma classificação por elementos preponderantes, sem pretensão outra senão a de colher a maioria dos casos, e, todavia um quadro realista.

2. A relação entre o estudante e a instituição

a) A figura do professor e dos dirigentes

É comum que os dirigentes, sentindo-se responsáveis pela estabilidade, isto é, pela ordem, tendam a ser intelectuais mais tradicionais que "orgânicos" (no sentido gramsciano). Acham-se menos comprometidos com a crítica ao direito vigente, com propostas de mudança em função do aprimoramento das liberdades fundamentais, da participação democrática e do aumento das igualdades sociais. Com isso o estudante se torna ou passivo ou indiferente - caso da maioria -, ou perplexo: imensa é a dificuldade de encontrar esperança, reduzir complexidades e conquistar mais harmonia na sociedade. A harmonia há de ser intrínseca pela pacificação substancial dos grupos e extrínseca no sentido de compreender outros grupos (de variados níveis de dilatação social), e construir com eles, ou a despeito deles, vida um tanto melhor para um número maior de pessoas. Essa indiferença causa traumatismos ponderáveis para a personalidade em formação e para o perfil do futuro profissional.

b) A relação professor-estudante

Nas disciplinas de formação geral, como Introdução, Filosofia, Sociologia, Economia, Problemas do Homem Contemporâneo, o professor em verdade não apenas informa ou discute livremente senão que acontece mais freqüentemente estar ele a transmitir até inconscientemente a sua própria ideologia (suas crenças, sua atitude cosmovisional). Ou seja, no fundo também persuade e doutrina o estudante. Mais raro é o mestre a cuidar da crítica aos valores predominantes, em meio aos quais o profissional vai atuar (como quer, entre outros, o Prof. F. K. Comparato). E poucos são os professores que passam a transmitir competentemente ao aluno o gosto pela pesquisa disciplinada e organizada, mormente a pesquisa da Natureza na sua dimensão social. Quase nunca se traz ao aluno a distinção entre positividade - a Natureza, o que está posto - e positivismo (este, sim, reducionista e abstraente), diferenciação que há décadas Pontes de Miranda ressaltou no Brasil e no Exterior. Entretanto, como o Direito é antes de tudo e fundamentalmente um dos processos de adaptação social, mais tarde o aluno, já feito profissional, vai sentir a perplexidade de não saber ao certo qual o seu lugar no mundo.

Nas disciplinas de conteúdo normativo (como em Sobredireito, no Direito das Gentes, Constitucional, Administrativo, Civil, Comercial, do Trabalho, Penal e os respectivos processos), geralmente o professor constrói a exposição dogmática a partir de princípios reguladores rígidos. As reflexões são feitas a partir da norma com o fito de transmitir quase só o seu significado óbvio: o gramatical e o lógico formal (ver J.E. Faria, in Encontros, infra, pp. 107-110). É, entretanto, de interesse para a compreensão vertical e transversal do sistema jurídico o podermos encontrar nele bases e travações políticas e econômicas, religiosas e éticas. E sabermos como influem na exegese da norma e bem assim na interpretação das cinco classes de fatos jurídicos — sobretudo nos órgãos oficiais (política) e das clas­ses dominantes (economia) nos variados recantos do país.

Sem estes pontos de vista, o aluno de perfil econômico preponderante tenderá a ser ainda mais tecnicista, e passa de costas pela fundamentação e pela justificação do sistema vigente, estudado nos fatos sociais. O discípulo de feição mais ético-política, e por fim o de índole mais científica incompleta, — privam-se ambos de experimentar a fecundidade da crítica livre, positiva, de atenção aberta às realidades mais extramentais, no maior número possível delas, sem exceção; é o que se poderia enquadrar, em categoria clássica, como “estruturalismo” social. Desta liberdade de pensar, sem a imposição das doutrinas abstratas e da jurisprudência asfixiante, pode surgir uma que outra construção menos subjetiva e menos dogmática. Quer isto dizer que poderá esperar-se uma construção mental (intelectual e emocional) muito mais rente aos fatos. Sim, pois é em meio a eles que o Direito efetivamente nasce, move-se e é.

Estamos a falar, sobretudo, dos sete principais processos sociais de adaptação (capítulos da sociologia): Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência, situados todos eles em percepções da lógica material, da matemática, da física e da biologia. Este é o mundo real, não abstraente, posto no universo extramental.

Por outra: dialetizando-se a inteligência de qualquer estudioso com normas e fatos, também o estudante aplicado aprenderá a trabalhar com mais precisão com a exegese dos textos, sempre cérceo aos acontecimentos do mundo extramental. Dentre eles os valores são uma vertente: nada são mais que o cálculo humano de graus de conveniência de seres (matemática), no complexo Espaço-Tempo-Energia. O intelecto do aluno lidará, sim, com termos e conceitos, mas relativizando-os diante da realidade transpessoalmente apreendida (diante dos fatos, diante do posto no mundo), em meio à positividade das relações captadas pelos tentáculos adaptativos do Direito e dos outros seis principais processos sociais de adaptação, os caminhos humanos de troca dinâmica de bens — Religião, Moral, Artes, Política, Economia e Ciência .

II — Ideologia e ciência

O traço mais típico do conhecimento é o de "posição mental limite", onde o Homem alcança o máximo possível de trans-pessoalidade, de vitória sobre os enredos da subjetividade e das aparências do objeto. É a posição ideal para se alçar, pela cuidadosa lógica material (o meticuloso e paciente percorrer dos fatos), ao nível dos saberes, ou seja, a apropriação das proposições mais neutras, menos passionais, menos infiltradas por projeções antropocêntricas. A experiência testada da vida científica ensina-nos, contudo, que não existe a ciência pura. As relações sociais constituem um tecido complexo de necessidades, pelas quais o ho­mem navega, norteando-se ou não pela mentalidade científica (ao rés do mundo mais des-subjetivado). Determinado em parte pelo destino pessoal e social, navega ele pelo mundo a que, sempre socialmente e com erros e acertos, se adapta.

Dado, porém, que a própria aquisição cognitiva é social, os conhecimentos científicos sofrem a influência da densidade do espaço so­cial, todo preenchido de campos físicos, de acontecimentos biológicos e de realidades feitas da natureza especificamente humana. Logo, na própria investigação científica do Direito, o pesquisador atua com a instrumentalidade passional dos seus depósitos sociais personalizados, genéticos uns, capitalizados outros ao longo da vida. A neutralidade e, pois, a verdade científica, relativiza-se e intrinsecamente o faz. Nem é só. A relatividade da Ciência reforça-se da própria necessidade vital de se firmarem posições em outras classes de vivência humana, nas ações inspiradas pela Religião, pela Moral, pela Arte, pelo próprio Direito, pela Política, pela Economia e outros processos sociais mais secundários de convivência social. (São secundários relativamente aos sete principais os seguintes: a expressão lingüística, a moda, o bom-tom ou boa-educação, a gentileza ou fineza de trato). Ora, estes movimentos sociais mais passionais, mais invasivos, são menos neutros que o ato de indicar, de conhecer-por-conhecer (Ciência). Marcam eles vários pontos vitais de arrimo, para o ser humano se rojar sociedade adentro realizando outras necessidades, fazendo, desfazendo, refazendo e renovando os tecidos de relações, antes traçados pelos mesmos meios e caminhos, ou seja, pelos tecidos das relações de Religião, Moral Artes etc., em que também o Direito terá atuado, sempre ou quase sempre. E assim rola o mundo, de que estudante de Direito não pode alhear-se. Se não cuida deles, se os não observa, se não reflete sobre eles, afasta-se qualquer estudioso da realidade do Direito. O estudante correrá o grave risco de, retraído inconscientemente e egoisticamente encaramujado, reter e brandir só conceitos vazios, amados pelo vaidoso colegial adolescente.

Bem, pois a construção mental dessa imensa complexidade da natureza (positividade) é a imagem que o estudante vai formando da sociedade de n espaços reais. Essas representações mentais pressupõem certa diminuição de dúvidas, alguma rarefação de complexidades. Como a atuação prática pré-exige simplificação de idéias (cuja variedade tem que ser substituída por síntese de concepções), isto significa que a mente investigadora precisa de pausas intermitentes para atuar, transformando. Este resfolegar exige da natureza a formação das posições fixas. Funcionam elas como plataformas para a ação (vivere). A ideologia resume idéias e motivações. Mas, cerceia de modo intenso a função científica, ainda que por algum tempo apenas. Tal processo natural de seletividade de valores condicionantes dispensa, a momentos, a neutralidade possível, de que seja capaz a inteligência no interior da natureza.

O estudante precisa estar atento a essa dialética entre razão e paixões, inteligência e instinto, ciência e ideologia. No contato professor-aluno será proveitoso, para um e outro, nessa relação, a atitude de sublinhar, de um lado, a inevitabilidade das sínteses ideológicas e, de outro, o aproveitamento da mentalidade cintífico-positiva no propósito de diminuir o impacto dos impulsos e dos interesses, canalizando-os construtivamente na formação do tecido das relações sociais, do mundo real. Também no preparo da futura prática profissional, onde e quando vai lidar quase diariamente com exegese de textos e com interpretação de suportes fáticos (onde entram tam­bém valores, fatos do espírito). Assim será como advogado, ou magistrado, ou membro do Ministério Público, ou como procurador de ente público (que, aliás, advogado é).

Programas, ou ao menos módulos de teoria do conhecimento e de sociologia científica (não literária, não retórica, não "filosofante"), trariam aos alunos e aos professores um cabedal mais eficiente de destruição de ilusões, e de reconstruções. Destruição de alguns edifícios ideológicos, mediante a análise detida e a crítica aberta. Reconstrução incessante de edifícios, provisórios, sim, mas muito próximo aos dados da Natureza humana nos seus processos naturais de adaptação ao mundo (positividade). Tais programas, ou módulos, poderão ir escoimando a formação dos bacharéis do excesso atual de verbalismo e dos tão vazios esforços retóricos de persuasão. Hoje (e faz já muitas décadas vem sendo assim) as escolas de Direito são dominadas pelo exegetismo, ávido de análise lógico-gramatical, mas descomprometidas com os fatos sociais. Passa-se o mesmo com o jurisprudencialismo acrítico e autoritário, como se fora ele a própria fonte epistemológica do Direito. Ambos estes vetores vincam certo fundamentalismo literalista, atam os estudantes a fatos do passado. A crítica a esse duplo filete, pobre e conservantista, foi ressaltada faz mais de vinte anos pelo professor Inocêncio M. Coelho (in Encontros, infra, p. 142), onde lembra ainda que o sensacionalismo impressionista dos meios de comunicação afasta dos livros o universitário, enfraquece o pensamento preciso e provoca a regressão da inteligência para o mundo desorganizado dos sentidos (Idem, ibidem).

III — A mentalidade científica como fautora de inteligências mais livres

Sobre o espírito do estudante de Direito, qualquer que seja o tipo dos três acima sugeridos, pesa, talvez inconsciente, a idéia rude da fraca legitimidade da ordem jurídica (ninguém mais acredita em nada...), marcada de individualismo e de escassa solidariedade, no tocante as necessidades efetivas da maioria da população carente do País (J. E. Faria, In "Encontros", infra, p. 117). Mesmo sem haver despertado a sua consciência crítica em relação às conseqüências morais e econômicas, carreadas pelo desequilíbrio econômico e cultural sanjado no seio do Povo, sobram ao estudante quase sempre só três reações pouco alentadoras, que são a indiferença, a desilusão, a perplexidade (Idem, ibidem, p. 112-115).

Eis ai três âncoras lançadas aos porões da personalidade do intelectual em formação. Em geral a sua fonte maior de saber jurídico brota preponderantemente da jurisprudência, fruto de um Poder Judiciário, egocentrado e idolatrado como a sede mesma do saber jurídico, também por ter sido deficiente a formação científica de muitos dos seus membros...

O ambiente intelectual do estudante será, assim, pouco afeito aos fatos da vida real, distante do rigor da Ciência positiva (= do posto “fora da cabeça”). Com a crise intelectual do Poder Judiciário (hoje, aliás, muito assoberbado de trabalho), afincadamente voltado também para o passado, vai sendo deformado o acadêmico, mantido na incapacidade de, com a flexibilidade própria da Ciência, ver renovado o mundo geral e, nele, o mundo do Direito. Daí a dificuldade de acompanhar, agora como mais tarde, os fatos sociais, as realidades cambiantes, a concretude efetiva do ser-no-mundo. Nem se dá conta de que as mutações, mais rápidas ou menos céleres, pedem vigorosa flexibilidade intelectual (Prof. Aurélio Wander Bastos, In "En­contros", infra, p. 95).

Lembra o professor Tércio Sampaio Ferraz Júnior (Idem, ibidem, p. 70-71) que a maioria das faculdades de Direito se compõe de estudante-trabalhador, com poucos recursos de orientação e de tempo para a pesquisa e para a meditação, vítimas de um ensino jurídico que lhes apresenta a Ciência do Direito "[...] como um tecnicismo neutro, uma arte de saber fazer, sem se preocupar em saber por que" (Idem, ibidem, p. 70).

Parece-nos oportuno, neste quadro de alargada impotência acadêmica, lembrar a fecundidade de módulos constantes, desde o primeiro até ao quinto ano, de metodologia do trabalho intelectual, com ênfase em capítulos da filosofia científica (isto é, com estudo marcante da Gnosiologia aplicada aos fatos sociais), Isto para logo ligá-la à Sociologia, está também estudada de modo indutivo-experimental. Convêm situar aí o campo e o método próprio do Direito como processo natural de adaptação social cujo estudo há de percorrer as fases (1) de observação empírica livre, (2) de generalização cautelosa e (3) de testes exigentes do pensar. Aí está o caminho, quando o espírito se volta, incessantemente, a realidades da Natureza — os fatos postos. Pode-se alimentar a expectativa de que, afeiçoando-se o estudioso ao pensamento desvinculado de preconceitos “filosóficos” do passado, venha (1) a tomar gosto pela indução cuidadosa, (2) se discipline na extração cautelosa de algumas proposições gerais (induzindo-as da complexidade dos fatos sociais) e (3) valorize por fim o controle das idéias mediante o rigoroso confronto delas com a "natureza das coisas". Ou seja, o método indutivo-experimental (=científico) irá abrandar o malefício do apreço pelos argumentos de autoridade e o amor pelas tiradas retóricas (Pontes de Miranda, "Sistema", tomo II, passim).

IV — Algumas sugestões

Pensamos que esse rigor de metodologia, incessantemente depurado pela leitura e pela discussão, haverá de suscitar espíritos mais livres e criativos (isto é, pesquisadores, descobridores). O aluno ético-político ganha em cautela com as suas posições idealistas, o estudante "oeconomicus" poderá adquirir maior atenção á complexidade das trocas sociais. Ao de temperamento intelectual racionalista poderá descortinar-se carreira de pensador denso e humilde no respeito aos fatos do mundo real.

O método indutivo-experimental (= método científico), pelo fato de o ser, por definição é aberto a quaisquer realidades. A sua virtude própria é a técnica seletiva seguida da generalização provisória; termina pelo confronto da idéia geral com a experiência. Repele atitudes pré-concebidas, não saca sem bases naturais que as ciências nos revelam, só confia, e provisoriamente, depois de verificações experienciais repetidas. Não se acaba de ver a quem não seja proveitoso esse evolver do espírito por regiões abertas na Natureza. É o que se pode cotejar com os resultados das longas e aprofundadas pesquisas de Pontes de Miran­da (Sistema, Introdução à Sociologia Geral, Garra, Mão e Dedo, O Problema Fundamental do Conhecimento). Sobre o método científico nos estudos superiores em geral, já há muitos anos frisado como funda­mental, ver, do Prof. San Tiago Dantas, Visita a Pontes de Miranda, in As Novidades Literárias, Artísticas e Científicas, Rio, 1930, p. 3-8.

Pode-se pensar em aulas conjuntas expositivas, seguidas de debates em grupo. Periodicamente, debates em Plenário, com um aluno a sustentar posição teórica, ou teórico-prática, argüido por outros, ambos selecionados com antecipação, tudo com a participação igualitária de muitos professores, da Casa e de convidados de outras instituições. Entre os convidados que os haja da OAB, da magistratura em grande número, do Ministério Público, de outros servidores que trabalham com o Direito, de políticos de diferentes níveis.

É de esperar-se dessa educação aberta o aparecimento de inteligências livres: intelectuais do Direito mais independentes, mais seguros e mais fecundos.

Dessa guisa a teoria será mais rica e mais precisa, a transpor o verbalismo e a retórica sentimental, que o professor A. Venâncio Filho acremente impugna (in Encontros, infra, p. 34-35). Em conseqüência o exercício profissional ganha em rigor de pensamento, em concretude existencial. Tem-se assim mais uma tentativa de conjurar a melancólica crítica feita pelo mesmo San Tiago Dantas em 1955:

"... o curso jurídico é, sem exagero, um curso dos institutos jurídicos sob a forma expositiva de tratado teórico-prática" (ibidem, p.54).

No lugar desse vaziamento de positividade poderá exsurgir o apreço pela Natu­reza organizadamente perscrutada por canais a um tempo abertos e seguros. Os fundamentos naturais do Direito poderão ser radicalmente estudados. A reflexão crítica construtiva deverá ocupar mais espaço do que atualmente ocorre. O excesso de disciplinas obrigatórias poderá ser aparado. O professor terá de nutrir em si o gosto pelo debate, suscitando, em vez de sufocar, o raciocínio jurídico do estudante. Não se ocupará de brilhar por sua erudição, nem haverá de se deixar seduzir pelo momentâneo brilho das façanhas retóricas (Prof. I. M. Coelho, ibidem, p. 143).

V — Espectro profissional dos bacharéis em direito

Foram sugeridos ao início três tipos de estudantes de Direito em atividade acadêmica pelo Brasil afora. Recordemos os campos que, ao terminar o curso, o bacharel sabe estarem abertos ao seu futuro, imediato ou mediato. As diversas ocupações específicas, que diferentes formandos para logo vão enfrentar por vocação ou por necessidade pessoal, como que esgalham os perfis dos bacharéis. A maioria inscreve-se na OAB depois de aprovados no exame especial. Outros não chegam a fazê-lo, seja por continuarem contadores, ou funcionários públicos, ou comerciantes, ou professores do ensino médio, ou por se ocuparem de preparação de concurso a diferentes carreiras públicas. Tem-se assim a irradiação de muitos feixes profissionais. Alguns bacharéis passam a ocupar cargos de assessoria (Prefeitura, Câmara, Assembléia, gabinetes de membros de Tribunal); outros, já funcionários, continuam na carreira com possibilidades profissionais ampliadas. Nem são poucos os que, mediante concurso, em breve passarão a ocupar cargos especializados: procurador (do Município, do Estado-membro, da União, de autarquias (federais, estaduais, municipais), delegado de polícia (estadual, federal), Ministério Público (federal, estadual, de Trabalho), Juiz (federal, estadual, do Trabalho), advocacia geral da União, defensoria pública etc.

Quadra lembrar os que, com o correr do tempo, entram na vida política profissional: vereador, prefeito, governador, presidente, deputado, senador. Nem se nos esqueçam, na atividade judiciária, escreventes e escrivães, chefes de seção e diretores de serviço. Há os que ingressam na carreira diplomática. Por fim os que se iniciam rapidamente em cursos de Mestrado ou Doutorado; preparam-se desde cedo para o ensino ou para a pesquisa de Direito, seja de matérias propriamente normativas, seja de Filosofia, ou Sociologia, ou fundamentos científicos da mesma disciplina.

Em toda essa gama de diferenciações, com vertentes tipológicas específicas —uns mais para a Economia, outros para a Moral, um que outro mais para Ciência —, claro está que podemos encontrar, na vasta classificação de A. Gramsci, os bacharéis divididos pelos dois blocos históricos: o do intelectual orgânico e o do intelectual tradici­onal. Merece estudo essa divisão de blocos históricos, se lhe for dado tratamento estatístico. Sentiremos o peso das ideologias predominantes. Parece ser maior a freqüência dos bacharéis "tradicionais". Quiçá a transmissão de conhecimentos sobre Direito-Ciência foi recebida pelos estudantes com poderosas interferências sociológicas segundo as quais a ordem jurídica representaria mesmo um elevado grau de legitimidade e de moralidade. A sua conservação assume subconsciente e contraditoriamente, o relevo de valor inestimável e imutável, cuja exposição ao debate científico, ou moral, ou político, poderia porventura acarretar alta taxa de instabilidade social. Seria perigoso...

Este parece ser o bloco preponderante, ao menos numa visão empírica, ainda sem rigor es­tatístico. Já o outro, o bloco dos bacharéis orgânicos, é fraco, de poucos lugares, reservados para uns quantos. Entretanto, cumpre não confundir com o "intelectual tradicional" a figura do homem de Ciência que, ao se debruçar sobre os textos, procura explicitá-los tais como são historicamente, e extrair deles todas as conseqüências que lhe são próprias enquanto vigerem; sem este trabalho será tarefa arrojada, voluntarista, juvenil, apregoar a mudança das leis (mudar sem saber o que). Ao bloco dos "orgânicos" pertencem os dotados de especial coragem moral e intelectual, atentos ao processo histórico do seu Povo. Estes saem empenhados em colaborar no fomento da evolução cultural e social das classes desfavorecidas, excluídas. Os mais, não. Continuam com a sua indiferença relativamente ao Brasil tradicionalmente recortado e enfraquecido por grandes desníveis culturais e materiais.

VI — Esboço de reações

Surgem reações a esse estado de coisas, embora tenham alcançado pouquíssimas faculdades, onde se nutrem as idéias dos profissionais do Direito.

A) Dos advogados: a seção de São Paulo da OAB publicou manifesto em dois importantes jornais de São Paulo, de 10 de maio de 1999, preocupada com o quadro social do País, o seu esgarçamento, a necessidade de se lutar pela paz social, a deterioração da infra-estrutura social dos centros urbanos, o aumento do desemprego, a violência ascendente, a angústia das famílias, o perigo da lógica de mercado, a quebra de princípios constitucionais, a má qualidade do ensino jurídico, a distorção de uma Justiça alongada da realidade do País, o seu distanciamento da maioria dos brasileiros, a segunda pla­na em que são colocados os interesses da sociedade, o apoucado nível da qualidade do ensino.

B) Dos magistrados: a Associação Brasileira dos Magistrados insere, entre as suas propostas de reforma do Judiciário, idéias relacionadas com a busca de uma relação ideal entre juízes e Povo, a adoção de centros de arbitragem controlados de algum modo pelos Juízes, houve empenho na criação de um conselho nacional da justiça que exercesse efetivo controle sobre a administração e as finanças do Judiciário (isto já foi conseguido), a instituição de um conselho de representantes, para manter controle efetivo e aberto, sobre o comportamento dos juízes (ver "Jornal do Magistrado", março-abril/99, p. 5-6). Há mais: derivado da Itália e da Espanha, funciona no País, em forma de associação, um movimento de aperfeiçoamento da pessoa e da atuação dos juízes. Análogas a esta associação de Juízes para a Democracia, começam a surgir as de Promotores para a Democracia, e de Delegados de Polícia para a Democracia.

C) Dos meios de comunicação: em 30 de junho de 1999 o jornal “A Folha de S. Paulo” publicou coluna de Otávio Frias Filho, onde se exalça a posição de diálogo e de crítica ao Poder Judiciário. Foi uma postura característica do então Presidente do STF (Min. Celso de Mello) com um "estilo inédito no cargo", com simplicidade de um ser humano concreto diante do Povo, pessoa capaz de politizar esse Poder no mais lídimo sentido do termo — não mais juízes de cera, mas como são — de carne. Não isolados e endeusados, mas lado a lado com a sua gente, com o Povo (e quem diz povo, no Brasil, inclui a grande multidão dos alinhados abaixo do próprio nível de pobreza).

E) Da própria lei de diretrizes e bases da educação nacional. É a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, em cujo art. 43 se define a finalidade mesma da educação superior no Brasil. Entre outros pontos figuram: o desenvolvimento do espírito científico, o desenvolvimento da ciência (pura e aplicada), a difusão cultural, o entendimento do homem e do meio em que ele vive, a sistematização dos conhecimentos, o conhecimento dos problemas do mundo presente, a prestação de serviços à comunidade, a colaboração do profissional com a "a formação contínua" da sociedade brasileira.

Mas, se no interior das faculdades de Direito não se inserirem idéias renovadoras, que ponham o estudante em contato seguro com os fatos em andamento (também no mundo social temos o παντα ρει de Heráclito, de Einstein, de Pontes de Miranda), e muito provável que as ditas finalidades fixadas na LDB sejam só mais uma coleção de comunicações retóricas, e não regras jurídicas, programáticas umas e de aplicação completa outras,a serem levadas a sério. Parece, contudo, que pela educação inspirada numa cosmovisão (mais) transubjetiva, (mais) des-antropocentrada, (mais) des-subjetivada é que se alcançam argúcia analítica e reflexão fecunda para o mundo do espírito. Não caminham ainda nesse sentido, em sua maioria, as faculdades de Direito do País. Mas, a mudança pode ser efetuada, ainda que lentamente.

Um lembrete final aos professores, atuais e futuros. O Padre José Vasconcellos, ex-presidente do extinto CFE, advertia:

“Modesta e meritória a missão do educador: o maior bem que podemos fazer aos educandos não é comunicar-lhes a nossa riqueza, mas revelar-lhes a sua”. (in Encontros, infra, p. 123).*

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*Referência. A obra citada no texto como Encontros é esta: Encontros da UNB - Ensino Jurídico, EUB, 1978-1979, publicação para a qual colaboraram os professores cujas lições foram invocadas com a esta remissão bibliográfica.