terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O poeta e o juiz


O poeta e o juiz
                                                                                                                        João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, professor da Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES) e escritor.
Em Cachoeiro de Itapemirim o povo ergueu na praça principal o busto de um poeta.  E esculpiu nesse busto versos do poeta.  O poeta chama-se Newton Braga, tão universal e humano quanto seu irmão, o cronista Rubem Braga, embora menos conhecido do que este porque escolheu residir na sua terra natal.
O primeiro aspecto a realçar é que a homenagem máxima da cidade foi fruto de uma subscrição popular. Centenas de pessoas assinaram a lista de doações tendo havido contribuições minúsculas, algumas destas sumamente expressivas porque os signatários colocaram toda a força da alma ao assinar. Destaque-se ainda que não se tributava honra a um homem de poder, como é bem mais comum ocorrer.
Os versos esculpidos no granito são os versos finais do poema “Fraternidade”:

“Esta sensibilidade, que é uma antena delicadíssima,
captando pedaços de todas as dores do mundo,
e que me fará morrer de dores que não são minhas.”

Vejo uma identidade entre o juiz e o poeta. O juiz também morre de dores que não são suas. Deve ser capaz de viver o drama dos processos, descer às pessoas que julga, incorporar na alma a fome de Justiça do povo a que serve.

O juiz haverá de ser um misto de juiz e poeta, não com o sentido pejorativo que se desse a essa fusão.  Mas com o verdadeiro sentido que há em ver como atributos da Justiça a construção da Beleza, obra do artista, e a construção do Bem, obra do homem que procura trilhar o caminho da virtude.

Diverso e oposto desse paradigma de juiz seria o juiz distante, distante e equidistante, cuja pena se torna para ele um peso, não por sentir as dores que não suas, mas pelo enfado de julgar, pela carência do idealismo e da paixão que tornariam seu ofício uma aventura digna da dedicação de uma existência.
O juiz-poeta estará sempre a serviço. Não ocupará apenas um cargo, mas desempenhará uma missão. Será um juiz sem prerrogativas e vantagens pessoais mas, pelo contrário, carregará nos ombros um fardo, mas o fará com tanta alegria que deixará de ser um fardo, vocacionado que está para o serviço dos seus semelhantes.
Um juiz-poeta será um juiz ético porque a Poesia é ética, a Poesia nos remete a um mundo por construir, um mundo utopia, um mundo de igualdade.
A lei como instrumento de limitação do poder é um avanço da cultura humana, caracteriza o Estado de Direito. 
Mas a tábua de valores de um povo não está apenas na lei.  Está sobretudo no estofo moral dos aplicadores da lei. Não há arquitetura política, sistema de freios do poder, concepção de instâncias superpostas a permitir a utilização de recursos, não há enfim engenharia processual que assegure a um povo tranquilidade e Justiça se os juízes forem corruptos, preguiçosos, egoístas, estreitos, sem abertura para o social, ciosos apenas de suas vaidades.
O juiz-poeta será aberto ao universal porque a Poesia descortina os horizontes do mundo e rompe com as estreitezas.
Aberto ao universal, terá do Direito uma visão sistêmica, percebendo a relação do Direito com os outros saberes humanos.  Portador de cultura ampla, impulsionado pela Poesia a ver sempre além, terá consciência de seu papel social, mediador de culturas num Brasil plural.
O juiz-poeta cultivará o estudo, o trabalho intelectual, os livros. Seguirá o conselho de Olavo Bilac: “Longe do estéril turbilhão da rua, Beneditino escreve! No aconchego do claustro, na paciência e no sossego, trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua”!
O juiz-poeta não se fechará no estreito mundo do jurídico e menos ainda no estreito mundo de códigos e leis interpretados literalmente. Abrirá as janelas para enxergar toda a complexidade dos problemas humanos, pensará sempre nas consequências sociais de suas decisões. Nunca lavará as mãos, como Pilatos, jogando sobre o legislador a culpa por sentenças que, a seu próprio critério, sejam profundamente injustas, sem o esforço de buscar caminhos hermenêuticos para que prevaleçam, nos julgados, os valores éticos que a própria Constituição Federal coloca como parâmetros da organização social brasileira, como muito bem analisou em livro o jurista gaúcho Juarez Freitas.
O juiz-poeta terá consciência de que judica numa sociedade injusta e desigual. A partir da visão clara da desigualdade, praticará uma Justiça que, longe de massacrar pessoas e aumentar as desigualdades, possa contribuir para reduzir os abismos sociais.
Um juiz e uma Justiça que participem do esforço de superação das injustiças estruturais, isto é o que se espera como programa de ação de um Judiciário sensível e vigilante. Em síntese: juízes-poetas que se desdobrem para fazer da Justiça uma obra de Poesia e de Grandeza.