segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

PAIXÃO, RAZÃO E NATUREZA (Investigação sobre o discurso normativo)

PAIXÃO, RAZÃO E NATUREZA*

(Investigação sobre o discurso normativo)

MOZAR COSTA DE OLIVEIRA

(Desembargador, doutor em Direito pela USP, Pro-

fessor da Universidade Católica de Santos — SP)

1. O escopo do trabalho. 2. O plano e o método. 3. Paixão: A) Concepção clássica; B) Concepção moderna; C) A paixão na vivência sociológica 4. A razão. 5. Natureza: A) Noção geral; B) A Natureza física; C) Natureza bio­lógica; D) Natureza sociológica. 6. A naturalidade do fenômeno jurídico.

1. O ESCOPO DO TRABALHO

Trata-se de tentativa de enxergar o Direito no que nos parece ser mais fundamental, teórica e praticamente: um fato da Natureza, não um produto de elocubrações mentalizadas pela razão abstrata, e vulgarizadas pelo formalismo ou pela retórica sentimental.

Dizemos tratar do discurso normativo no seguinte sentido: é pela constante dialética entre inteligência e o mundo transubjetivo, real translógico, que podemos entender os signos lingüísticos e atrás deles aquela parte do mundo (= fato social regrado) que a norma atinge e a que dá o seu sentido específico. No contacto com o mundo translógico, embora profunda e profusamente balançados por dentro e por fora pelo forte embate de automatismos, pulsões, sentimentos, desejos, necessidades, ainda assim logramos conhecer o sentido das normas em geral. Portanto, também das regras jurídicas. Alcançamos dessarte, no espaço-tempo relativo, o sentido que a formulação religiosa, moral, jurídica etc. pode ter, hic et nunc.

2. O PLANO E O MÉTODO

Procuramos estudar as três realidades, que nos parecem fundamentais no domínio teórico e prático das ciências sociais e da sua aplicação: o fenômeno das paixões humanas, o fenômeno do poder epistemológico do Homem, o fenômeno global — que somos e em que somos —: a Natureza. Lança-se mão da história e dos resultados (quando possíveis forem) das ciências particulares, criticando-os com o mínimo possível de preconceitos. Falta, portanto qualquer interesse em defender doutrinas. Embora o trabalho procure mostrar a impossibilidade de total neutralidade científica em qualquer campo da pesquisa, procura-se nele o máximo possível de transpessoalidade. Por isso mesmo, é elaborado com independência relativamente a escolas ou a autoridades — exceto naquilo em que, nelas, proposições verdadeiras se imponham pelo seu vigor e poder de convicção.

3. PAIXÃO

Paixão (pati = sofrer influência) é ser levado, impelido, impulsionado por algum tipo de necessidade, independentemente do pensamento racional.

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A) Concepção clássica

S. Tomás retoma decididamente os estudos de Aristóteles. A alma, nas suas "partes" sensitiva e vegetativa, não se confunde com as paixões. É o seu "locus". Mas o amor é por ele posto nas alturas do espírito — no entendimento contemplativo. No estado de quies (quietude de pura contemplação) a alma está sem paixões...1

Dividem-se as paixões em duas grandes vertentes — as concupiscíveis e as irascíveis. Nos dois casos, há o impulso à busca do objeto atraente (o bem), mas nas irascíveis esse bem é de difícil acesso. São paixões concupiscíveis: amor-ódio, desejo-fuga, alegria-tristeza; irascíveis: esperança-desespero, medo-coragem, ira. Exceção feita à ira, as paixões articulam-se em pólos e contra-pólos. O binômio passional básico é amor-ódio; corresponde-lhe fundamentalmente realidade radical para o ser vivo: Vida-Morte.2 O amor é a própria força que vincula os seres, fazendo-os tender à união.3

O temor tem a dimensão própria de grande ameaça de um mal exterior. Mas pode a potencialidade mental (Razão) compreender-se, e influir sobre mecanismos e compulsões da sensibilidade: com isso o medo pode diminuir.4 O eixo fundamental do temor continua sendo a articulação amor-ódio, com o movimento básico de anseios e repulsas: aproximar-se do bem e afastar se do mal. O medo realiza muitos acordos e concessões na vida social. Eis também por que tem o medo tanta exteriorização psicossomática5, ensina-nos a fazer previsões e a buscar garantia extrínseca na convivência.6

Na ira (= indignação) temos em verdade, quase sempre, um rodopiar de paixões diversas — como tristeza, desejo, esperança.7 Mas a indignação crônica diante de injustiças prorrogadas converte em ódio a ira — fuga à absoluta carência de satisfação de necessidades. Antes disso porém poderá ainda a Razão influir na indignação, apontando interconexões destruidoras da vida, objeto da paixão cardeal, do amor.8 A ira é menos irracional que o ódio, pelo algo de ratio que é ela ainda capaz de conter. Não é pura força bruta nela está acesa ainda uma fagulha de luminosidade racional. Ambas se voltam contra a injustiça sobretudo. Vê-se por aí o quanto a injustiça é de ser socialmente evitada.9

Percebe-se em S. Tomás um enriquecimento crescente de dados de realidade social, na medida em que se torna menos aristotélico — no sentido de estar mais voltado para a observação do empírico que para a preocupação mais abstratizante da categorização cômoda das idéias.

B) Concepção moderna

Em Descartes temos como paixões principais: a admiração, o amor, o ódio, desejo, a alegria e a tristeza. O sopesamento da realidade é o grande remédio para a direção racional da paixão.10

Spinoza procura estudar os afetos num esforço de manejar esses movimentos irracionais de maneira semelhante ao empreendido pela física moderna em relação à trajetórias das subpartículas por linhas, planos e corpos geométricos. As paixões ligam-se à fantasia, em diálogo com o entendimento ativo; articulam-se no desejo, na alegria e na tristeza. O motor primário é o desejo. Toda paixão contém idéia, mas confusamente. Quanto mais clarificada a paixão pela idéia, mais adequado o movimento passional dos homens: ordem e conexão com a idéia é ordem e conexão com o mundo. 11 Direito estrutura-se por combinação de forças. Na sua origem, cega, o Direito identifica-se com a força mesma das paixões; é abertura de espaço para irrupção de desejo. O Estado, sim, é convenção. E há de ser instrumento de realização da harmonia das subjetividades, na paz e na segurança das vidas individuais: afetos-ação sob a intervenção da inteligência.12 Portanto, a origem do desejo é a necessidade.

Hodiernamente, pensa G. Lébrun que paixão é um incessante mover-se, que carrega a própria mente racionalmente,13 dando ao indivíduo a característica da sua personalidade e a um Povo os seus traços típicos. A harmonização de interesses, com satisfação das necessidades fundamentais determinadas pela natureza físico-animal-cultural dos homens, recomenda à política jurídica bem como à interpretação sistemática das regras jurídicas, um sentido e uma orientação concreta: oportunidade crescente, efetiva, para a realização das liberdades individuais de todos.

Paulo Rouanet compara paixão e “razão louca”. Dialetizam-se, sem qualquer delas deixar-se extinguir. Mas a paixão perde nebulosidade no seu contato com a razão. Ganha clareza e eficiência. Pulsões e au-

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tomatismos podem ser inteligentemente canalizados, aproveitados. Tal o caso da democracia participativa, com descentralização dos centros políticos. O estudo desse aproveitamento é fonte inspiradora para a elaboração de regras de acerto político, e para se entender o fenômeno político. Serve à nomologia política.

A razão irá perdendo o seu caráter de "razão sábia" para se tornar "razão louca" à proporção que for trocando julgamento por defesa de posições. Na razão louca a reflexão que ainda aparece vem montada em decisão prévia, extremamente passional. Ajuda à eficiência final, mais que à crítica e à racionalidade material. A pulsão fundamental com que tem a razão sábia de lidar é a polaridade eros-thánatos (amor-vida X ódio-morte). Pode a razão, aí, balouçada pela movimentação "atração-fuga", sobre tudo em relação ao poder e às utilidades materiais, corromper os conteúdos de consciência. A falsificação da consciência assim operada pode levar a grandes desatinos na história de pensamento, inclusive na exegese e na respectiva aplicação do sistema jurídico. Sabota-se com isso a normalidade dos processos adaptivos determinados pela natureza-das-coisas (lei da Natureza). O operador jurídico, desnorteado por caótica relatividade, pode chegar às raias da deriva completa.

Mas — continua P. Rouanet — bem pode ser sensato o enveredamento da razão pelos redemoinhos loucos das paixões. Depende dos passos que ela ensaie na sua dança com as companheiras irracionais. Insensatez fundamental seria entender excluível a paixão, em vez de aproveitá-la em prol da existência: o amor com paixão pela vida, o ódio como paixão pela morte. A vida, sistema de trocas incessante, é estruturada por essa tensão básica, imprescindível, na dinâmica dos instintos e dos mecanismos. Nenhuma inversão de funções (violação a leis da Natureza) fica impune. Assim, no campo ético a razão louca dá lugar a heteronomia, a dependência, à ruptura do self. Na práxis jurídica, a perda do sentido do sistema vigente (por medo, p. ex.), com erros continuados na sua interpretação correta, conduz a insegurança, a sensação de proximidade do thánatos — que é a ameaça maior para o animal. 14

Para Pontes de Miranda a razão ilumina a paixão, convive com ela, canaliza-a por que é capaz de aproveitar-se dela para a captação específica de algumas "essências" (= jeto) próprias da índole de cada qual (ex.: alegria, segurança, certeza). O ardiloso da razão nesse papel notável — e incessante — é o de conseguir, em parte, substituir o prazer próprio de cada tipo de paixão. Sim, há prazer no conhecer porque temos também a paixão pelo saber. Por vezes é prazer menos fácil de ser saboreado — o do deleite do scire,aperire, sapere, penitus-ire. Há aí uma renúncia de um prazer mais animal, animal, por outro mais anímico: para Freud a ciência exata é a mais completa renuncia ao principio do prazer. O rigor da razão aprimora a precisão do discurso; difere (dilata) o imediatismo do prazer canalizado na estética. Ou da moral, ou da religião. Consegue deixá-lo para depois. Primeiro cinde (sciere), re-vela, dês-cobre, com o prazer próprio de assim proceder. O prazer que vem depois, embora irracional, é menos louco: recebeu iluminação antes, produzida pela Razão. Esse poder pré-passional (não anti-passional), anterior ao princípio animal do prazer (diverso do prazer de saber), é traço típico da racionalidade: o poder-prazer de indicar, de re-presentar — com que se possibilita a reflexão e, pois, o diálogo. Em verdade, o ato de reflexão na vida animal somente entra no seu estágio de parusia quando o animal é já Homem: este animal em efetivo exercício de indicatividade, e de representação, e de reflexão, e de diálogo. A partir de então, a longa história animal o reflexo novo tem a característica de poder diferir, no tempo, a completude do ato instintivo. E quando surge a conduta acima de toda saliva (= racionalidade). Logo, a Razão é competente para retardar e dirigir, em parte, a troca de energias macânico-pulsoras; capaz de elidir a cegueira das reações pavlovianas: pela superação dos automatismos, pelo diferimento a atuação do princípio do prazer. Inaugura o reino da maior liberdade. 15

C) A paixão na vivência sociológica

Na paixão há o movimento da vida — impulso ou recuo. É assim no indivíduo. Não poderia ser muito diferente no conjunto deles, quando o examinamos na vida social — que lhe é absolutamente essencial. Assim é portanto na criação, formulação e aplicação de regras de adaptação religiosa, moral, estética, jurídica, econômica, moral, científica. Quando surge no animal a ratio — já o vimos — as paixões já não são

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puramente mecânicas. A exegese jurídica, p. ex., será menos repetitiva e mais independente; menos cópia de jurisprudência ou de doutrina, com raciocínio mais pessoal sobre os fatos e os conceitos científicos da ciência jurídica. É que do interior da ratio se irradia algo assim como luz, a indicar e calcular os pesos das massas que entram na equação da incidência de certa proposição nomológica. A razão mede as paixões, e compreende-as concretamente. Ao fazê-lo, aparece na tela da consciência algo que não existia ainda em plenitude: o sentido, o valor concreto, a maior ou menor conveniência, o grau de desejabilidade e aceitabilidade de algum objeto do instinto. E então a adaptação sobe de escala na vida do ser vivo. O ator jurídico, p. ex., enriquece-se de exatidão, de cálculo, de previsão precisa, de perspicácia na lógica concreta das soluções (lógica material).

De modo que, assim, a adaptação se realiza a despeito do enxame das paixões — e com o auxílio delas. Podemos vê-las, agora, em feixes específicos de interação humana — nos grupos, nos sistemas de aglutinação na sociedade. É um processo de acomodação e de diferenciação. Dizemos portanto que as paixões se enfeixam em movimentos valorativos ditados pela necessidade — no seu mais amplo sentido, — e formam dessarte as instâncias sociais ou processos sociais de adaptação. Destes, os sete principais são: Religião, Moral, Estética, Direito, Política, Economia e Ciência. São os sete campos principais, com suas especificidades, nos quais as paixões se estruturam. Estão aqui colocados em ordem matemática: decrescente quanto à potencialidade frenadora de mudanças das instituições sociais. Estão postas na ordem decrescente de sua eficácia de estabilizar um determinado grupo social.

Por outras palavras, esses sete principais processos de "formação" social, na ordem em que foram acima alinhados, mais seguram ou mais promovem mudanças, conforme se desça na escala: Religião, Moral etc.

Esses sete processuais sociais de adaptação têm outra classificação matematicamente tratada. É a escala de sua potencialidade em matéria de força, de despotismo, de mando, de sujeição dos grupos com insensibilidade pelas conotações pessoais e diferenças individuais. Assim, as paixões formam esses caudais de processos reguladores da vida-em-comum que, por ordem decrescente de seu potencial de dominação, ficam assim ordenados: Política, Economia, Religião, Direito, Moral, Estética, Ciência.

Interessante observar que o Direito não é o único modo-de-vida social que tem regras. Ao contrário, têm-nas todos: normas de conveniência política, normas éticas, normas de equilibração econômica, normas de estética. Assim as demais. De modo que, para entendermos o Homem onde ele unicamente pode ser compreendido — em sociedade, — e para termos dele conhecimento validamente generalizado (construção da Ciência), necessariamente havemos de vé-lo em seqüências de regularidades — em leis. E temos de saber como formamos e como interpretamos as leis — como manejar corretamente os juízos nomológicos. Ora, a lei expressa duas situações principais; 1) expressa uma regularidade que já se estruturou (= adaptação já feita); 2) indica um caminho de adaptação, trajetória que as paixões hão de percorrer para se lograr adaptação melhor.

Nos caminhos por seguir é mais visível por vezes a obra da Razão, embora lhe seja impossível realizar qualquer adaptação sem as paixões. O próprio surto de saber, de indicar soluções (Ciência), é impulsionado por borbotões de vida: amor-ódio, esperança-desespero, alegria-tristeza etc.

Outra observação interessante que se deve fazer, ao considerarmos esse enfeixamento das paixões ditado pelas necessidades do homem real (= homem social): o Direito ocupa posição intermediária tanto de estabilidade social como de potencialidade de coação. As relações mundanas regradas pela vivência jurídica são menos estáveis que as tocadas pela experiência moral, ou religiosa; mas as regras jurídicas são mais estáveis que as normas econômicas e políticas. De outro lado, a experiência jurídica é menos violenta que o jogo do poder (com as suas regras internas) e que a luta pelo ter (com as suas feições reguladoras típicas). Em todos esses canais de troca social temos feixes de regularidade — a regularidade captada pela razão tem a imensa vantagem de mostrar como, de regra, se movimenta o mundo passional em sociedade. São as leis do mundo social.

Ora, para conhecermos adequadamente como funciona esse mundo, como se comporta cada um desses espaços sociais, cumpre dominarmos intelectualmente o modo de se comportarem as regularidades a sua natureza. E é imprescindível que tomemos consciência dos elementos integrantes des-

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sas regularidades (leis, normas). É portanto de mister que nos acerquemos intelectualmente da contextura das paixões e da razão.

Vem a fluxo portanto a teoria do conhecimento sociológico; e aí que encontramos as leis mais complexas que regem o Homem.

Ora, as paixões enfeixam-se socialmente — social é o seu locus imprescindível de autuação — em processo; de adaptação bio-sociológicos. Na fenomenologia do social está o biológico. Nas leis ou regularidades biológicas funciona, mundo Físico com as suas leis. No físico estão regularidades matemáticas. Nas leis matemáticas estão leis lógicas - que são as mais "simples", as irredutíveis a outras com menos elementos. Logo, o conhecimento adequado das leis é impossível sem o concurso das ciências particulares, devidamente sistematizados os informes de cada qual. Que significa isto? — que o conhecimento da Religião, da Moral, do Direito etc. não pode prescindir do auxílio das ciências, com o máximo dos seus resultados, sem violação do seu método. É a busca da natureza-das-coisas, transpessoal, científica.

K. Marx e O. y Gasset dizem no fundo a mesma coisa: o Homem são as suas relações sociais, o eu é ele e as suas circunstâncias. As relações sociais são paixões-razão: as circunstâncias reais em que elas se movimentam são o mundo da física e da biologia com as suas leis (com elementos quantitativos e coerenciais). Não nos é dado nada senão em feixes de relações. Somos paixão-razão, num mundo bio-físico-matemático-lógico. Para entendermo-nos na vivência jurídica (exemplo de vivência humana, nomológica), precisamos socorrer-nos dos informes e dos métodos das ciências particulares. Estas opulentam o conhecimento jurídico. Mais que isto: são elas que lhe possibilitam o nascedouro seguro e lúcido. Na construção da ciência jurídica aparecem-nos as paixões e a razão. Entrecruzam-se e solidificam-se, estruturando a "natureza-das-coisas". Um dos aspectos desse domínio intelectual do Direito (como das demais normas de convivência) é a compreensão do sentido das regras jurídicas e a compreensão dos fatos que lhe recebem a incidência. A assimilação intelectual do conteúdo do fenômeno jurídico gera a habilidade lógico-formal no manejo correto da técnica jurídica em meio à riqueza das relações sociais (natureza-das-coisas).16

4. A RAZÃO

Etimologicamente "razão” liga-se a ratio, com a idéia de articulação. Articulação de pensar que, no grego, encontra o verbo “reor” como sinônimo, dando a idéia de corrida, ímpeto — há movimento no próprio pensar. A quies de S. Tomás não é portanto perfeita quietude, não é contemplação asséptica de solavanco passional.

Em Platão e em Aristóteles, Razão opõe-se ao mundo da sensibilidade e dos apetites — portanto o espaço típico das paixões humanas. Estas são enganadoras: te­mo-las em comum com os animais brutos. Aquela é potência pela qual conseguimos enxergar, para além das aparências, a Realidade.

Em Agostinho, a Razão é movimento da mente, que distingue e correlaciona tudo quanto apreendemos. A vida é pesquisa; a razão institui, dirige e fecunda essa pesquisa.17 Para Tomás de Aquino, entender é sofrer algo (quoddam pati — Summa, I, 79, 2, c), com duas funções: especulativa e prática, sendo esta apenas complementa­ção da primeira.18 A razão especulativa tudo conhece por participação nas razões eternas, que estão na Causa Exemplar (= Deus). Ela somente conhece por meio das espécies inteligíveis, do modo que o conceito que temos das coisas singulares é sempre precedido da apreensão do conceito universal e somente conhecível aquelas por intermédio das imagens sensíveis. O conhecimento do evento histórico-concreto — como o conhecimento do Direito. — é sempre incertus et variabilis porque as indicações causa-efeito variam infinitamente. E tudo ainda se complica, de maneira verdadeiramente indizível, com a entrada da linguagem. Assim, embora em cada situação haja apenas uma solução ótima, no Direito otimamente se conhecem e se aplicam normas apenas mediante o senso do eqüitativo (conselho e prudência). Adquirimos assim no mundo normativo, uma ciência prática, orientadora da vida não-especulativa dos homens. É o mundo das semelhanças. Mesmo assim — diz S. Tomás — temos aí a ciência, porque nada há tão contingente que não contenha em si algo necessário.19

Na baixa Idade Média aparece a figura de G. de Ockam, com a célebre "navalha", a rasourar os excessos criativos da Razão. Percebendo a turbulenta artificiosidade formal dos filósofos, de por toda

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parte criarem entidades desnecessárias — em vez de analiticamente dissolverem a realidade extramental —, levantou Ockam a questão da superfluidade de tantos seres lógicos, que complicam perturbadoramente o trabalho da inteligência em face do mundo: non sunt multiplicanda entia praeter necessitatem. A Razão há de ater-se à natureza-das-coisas, sem “criar" coisas: a menos que o permitiam, e na medida em que o permitam, os acontecimentos da natureza.

Temos, em Ockam, duro e benfazejo golpe contra o formalismo. E contra o substancialismo: tendência em ver entes onde há apenas o resultado lógico-psicológico do pensamento, no seu esforço ainda desordenado e acrítico de dominar o mundo extramental.

Mais tarde, F. Suárez. É inteligência voltada ao concreto-histórico em visão alargada, onde a experiencialidade busca fecundar a atividade racional. Procura restringir também a desmesurada e simplista capacidade de a Razão remoer formas vazias de sentido, alheias ao mundo extramental. Para ele, a Razão ganha em alimentar-se dos informes da Realidade, submetendo-se a estrutura do Real. Só tem a perder, se tentar construir para si um castelo de conceitos grandiloqüentes e elegantes, desvinculado da natureza-das-coisas.

Em Descartes a Razão é de supremacia tal que não passam de representações as próprias paixões. Enganadoras, é possível superá-las com idéias cada vez mais claras e mais distintas — i. é., com a Razão mesma. Por isso em Descartes é tão anti-histórica a construção cidética, são tão supervalorizados os conceitos, tão abstratas as definições e os sistemas, com afronta ao concreto — a despeito da grandeza do seu gênio.20 Para Leibniz, com a Razão se poderia encontrar um alfabeto de todo o conhecimento — uma álgebra metafísica, possibilitando-se o cálculo lógico das idéias acerca do Real. Desse modo seria possível terminar as controvérsias religiosas bem como se alçaria o Homem, no mundo do Direito, a postulados perenes sobre a Justiça, o ideal-essencial. Ficaria sem lugar, na prática, a pesquisa sobre as contingentes questões de fato. Foi esse o clima em que viveram S. Puffendorf e C. Thomasius.

A Inglaterra sempre se isolou do racionalismo. Para Hobbes, é a paixão do medo que orienta a Razão, para se viver bem. Locke vê na intuição (ligada ao sentimento) o ápice do valor cognoscitivo: elementos obtidos por meio da intuição podem ser logicamente manejados, mas somente ganham sentido na construção das idéias quando mantiverem na realidade subjetiva a mesma coesão que encontram na mente.

Para Kant as leis do conhecimento intelectual estão confinadas no mundo fenomênico. O que interessa a vida do Homem nos seus relacionamentos é Factum — impõe-se por si, imperativamente. Foge ao conhecimento quer do intelecto (Verstand) quer da razão propriamente dita (Vernunft). Para Hegel os impulsos profundos do ser são lógicos. Objetivam-se na história das idéias — da Razão. É a razão que modula o ser, triadicamente. Ao espírito é conferida a potencialidade de captar a realidade

concreta, aos poucos, indo de um pólo a outro, e voltando deste mais enriquecido pela dialética dos dois primeiros. Essa tríade preside à história do mundo — que é a história das idéias. Até chegar à idéia absoluta, que é o saber filosófico. A astúcia da Razão consiste em servir-se das paixões empurrar a evolução em direção à liberdade geral, isto é, ao Estado. Este é a própria atuação da Razão no mundo (Weltvernunft).21

Kant e Hegel foram os últimos construtores de grandes sistemas metafísicos. Os seus trabalhos serviram de reflexão acerca dos limites mesmos da Razão e sobre a premência de o Homem consultar continuamente a natureza-das-coisas. A ambos seguiram-se esforços de muitos outros pensadores e pesquisadores nessa árdua luta de o Homem se adaptar a si mesmo e ao mundo (exterior a ele) por meio do conhecimento. Luta pela Ciência. Em graus diversos de respeito pelo dado extra-mental (tratado com o máximo cuidado para se obter a sua captação transpessoal) temos entre outros: J. Frics e F. E. Beneke (interesse pela psicologia empírica), Joule e Helmholtz (energia). Darwin (evolução): Vogt, Büchner, Haeckel (materialismo). Comte (somente é cientificamente confiável o que tenha conteúdo imediato de percepção), Avenarius, Mach, Dingler, Ostwald (buscar a natureza-das-coisas por meio das ciências naturais, empírico-criticamente). G. Tarde, E. Dürkheim. B. Brühl (aplicação da psicologia à sociologia). Pierce, W. James, Dewey (razão pragmática). Pontes de Miranda (tudo quanto é real é positivo, a função da razão é primacialmente descre-

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vê-lo e calculá-lo; depois, sistematizá-lo e incessantemente testá-lo).

Há algum parentesco (sem assimilação ou identidade) entre as teses filosófico científicas de Pontes de Miranda e o movimento do Círculo de Viena — com M. Schlick, H. Reichenbach, Ph. Frank, R. Carnap. A esse Círculo somam-se outros nomes de matemáticos e lógicos com tendências assemelhadas: G. Cantor, G. Frege, L. Couturat, J. Lukasiewicz, A. Whitehead, B. Russel, L. Wittgenstein, A. Tarski. Estes pensadores têm em comum o analisarem a consistência dos enunciados. Distinguem entre as proposições relativas a conexões de idéias" e as que aludem a matters of fact. Estas últimas é que verdadeiramente fazem a razão apoderar-se de material novo da Natureza. As outras mais combinam conceitos que descobrem realidades. Para a maioria desses autores (não é assim para Pontes de Miranda), os enunciados sobre valores (a maioria dos enunciados éticos, p. ex.) tem apenas conteúdo evocativo (expressivo, emotivo, passional), de tal jeito que não podem submeter-se a testes de verificabilidade.22

Pensamos que as pesquisas lógicas têm prestado o serviço de levantar véus aos mitos da Razão, precisamente nos seus primeiros contactos com o Real. Descobrem conteúdo passional na colheita do "dado" — o muito que já há de construído ou constituído na própria intuição sensível; depois, na formação do conceito e, em fase logicamente posterior, na apreensão da "essência" (o "jeto" de Pontes de Miranda). A linguagem não é isenta de paixões, pulsões, mecanismos. E é o instrumento de que dispomos para penetrar nas leis da natureza! É o meio (nosso, humano) do qual nos não podemos livrar quando analisamos a consistência do discurso normativo; quando procuramos apreender-lhe a origem, a história, o sentido, a orientação; quando tentamos corretamente aplicá-lo à natureza-das-coisas com o mínimo de desvio (= erro). Assim é no Direito: na interpretação de leis e de fatos jurídicos; na aplicação do sistema a casos concretos. Assim também quanto ao sentido correto das normas religiosas, éticas, econômicas. Somente por meio de regularidades podemos compreender o mundo, erigindo em Ciência o conjunto dos nossos conhecimentos. A linguagem exprime na lei seqüências de regularidades, ora descrevendo as que já funcionam por si próprias ora mostrando as que têm de regularizar-se (e as suas conseqüências).

De modo que a análise lógico-matemática dos símbolos lingüísticos é assaz competente para diluir as ilusões do discurso em geral. Do discurso nomológico, em particular. Especificamente, na terminologia precisa — do Direito, p. ex. A visão crítica da linguagem, posta em rigorosa dialética com a natureza- das-coisas, reduz a taxa de ilusões, adquire foros de técnica verdadeiramente útil, prenhe de valor-verdade, com que dominemos o mundo das leis — percebendo-lhe o significado, sentido e orientação concreta. Ajuda portanto a encontrar e a desenvolver a solução dos problemas jurídicos. Nem sequer a lógica matemática extirpa a irracionalidade; é também discurso humano. Mas nela a Razão está mais livre das peias passionais. Consegue, aí ser mais crítica.

Vejamos agora a relação entre Razão e as proposições normativas. Estas são enunciados expressos em conceitos logicamente analisáveis. Tem conteúdo de comando ou indicação da atitude adequada — segundo os conceitos da dita proposição.

A lei pode referir-se a duas realidades diferentes: a) indica regularidade: que já ocorrem (leis físicas, leis costumeiras); b) indica um comando (advindo da política), que determina o caminho a seguir para se lograr uma caminhada, reputada conveniente para a adaptação social. E reputada tal pela corrente vencedora da lula política geradora da norma. Num e noutro caso, depara-se a Razão com a linguagem, que refere conceitos, que referem relações. Sim, o sujeito da regra, o objeto da regra, a ação da regra — tudo isto nós somente conhecemos como relação. Numa lei física, "uma" subpartícula, conceituada na lei des­critiva da sua conduta, já é uma relação (campo-de-força!). Na lei moral, na lei jurídica, na lei econômica etc, cada "realidade", conceituada, é sinal de alguma relação. Nestas relações encontramos equações e inequações de energias. Energias que se movem no espaço-tempo. Qualquer massa é energia. Qualquer necessidade humana (paixão, valor) é energia: é algo capaz de produzir transformação. São os valores religiosos, valores morais, estéticos, econômicos, políticos, valores-verdades. E toda energia é relação. Valor é uma relação de conveniência inconveniência, bem-mal, acerto-desacerto, desejável-indesejável, amável-odiável.

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Portanto, qualquer que seja situação, a Razão não compreende e não explica o conteúdo da regra, o sentido da norma, a orientação da lei relativamente à Vida, na História, senão por meio do exame das relações que os signos lingüísticos são capazes de revelar. Topamos aqui, na análise e exegese do discurso nomológico, com o problema fundamental do conhecimento — o quê conhecemos, como o conhecemos, qual o limite desse conhecimento, quais as "condições" para a consecução desse conhecimento. Ora, é impossível o esgotamento lógico do conteúdo do conhecimento. A firmeza das nossas proposições "verdadeiras" são indefinidamente testáveis. Tem-se por verdade, no entender de K. Popper, o que a comunidade dos cientistas de determinado ramo da ciência considera como proposição testada, capaz de resistir aos testes. Todavia, em toda indução já funcionam idéias.23 Como mostra Pontes de Miranda, no sentir já estão concepções de vida.24 São, a nosso ver, as paixões que revolvem o nosso próprio sistema nervoso central, tomando todo o conhecimento necessariamente relativo.

Vemos então que o discurso nomológico é intrinsecamente "viciado" pelo trabalho da Razão, teluricamente sujeita ao incessante mover-se do mundo passional. A todo rigor lógico (exigência máxima de racionalidade), é impossível pensar as leis de modo puramente racional... O nosso conhecimento lógico da lei nunca pode ser puramente lógico... A exegese da lei — qualquer que ela seja — jamais é inteiramente neutra, nunca absolutamente imparcial. Razão e paixões influenciam-se reciprocamente. Por isso mesmo a Razão tem de valer-se do elemento lógico material: postar-se diante dos fatos segundo as leis dos fatos (lógica material). Será sempre, e apenas, nova aproximação. Mas é a aproximação possível e suficiente à persistência da vida. É a aproximação que exige e comporta a natureza-das-coisas.

Na reflexão de Miguel Reale, ao pensar lógico do Homem é ínsito o conjeturar, o crer, o trabalhar mentalmente com verossimilhança.25 E próprio da Razão não ser razão pura...26 Vamos a um dentre milhares de exemplos possíveis — como pode a Razão revelar o significado (sentido e orientação) de "função social" da propriedade no art. 5.°. inc. XXIII e 170, III, da CF/88? O signo lingüístico nos aponta um conceito duplo ("função" e "social"), cujo conteúdo é de múltiplas relações. Nelas estão muitas necessidades humanas, que impelem ou que atravancam a vida social. São paixões, tais como o medo de convulsão, o ódio a um ambiente de luta imprevisível (e de carestia econômica e de instabilidade política), a esperança em se conseguir estabilidade, a tristeza em face da insegurança da vida: a alegria por encontrar âncoras sociais de cálculo e previsibilidade quanto ao futuro, a indignação (= ira) contra estado de geral periclitação do patrimônio, de esperança de bem-estar cultural, de paz entre os homens. Ora, todos esses sentimentos são paixões. Seu jogo solto, deixado a si mesmo, forma canais de livre curso, determinando a evo­lução dos seres humanos na História. É de mister mergulhar a Razão nesse fluxo, para se poder definir "função", "social" e "função social".

Logo, a Razão isolada no jogo lógico das formas a priori (o “intellectus ipse” de Leibniz), não consegue aperceber-se do conteúdo de "função social para interpretar a regra constitucional.

Logra-o valendo-se do exame fático do mundo passional. E não atina ela com o traçado da paixão sem desbloquear a própria experiência passional, sem se valer da experiência passional. Ao fazê-lo, a Razão deixa de ser puramente lógica, senão que é a lógica a entremerar-se ao ilógico da paixão. Não se entende o amor, o ódio, a co­ragem, o medo etc. sem se sentir amor etc. Não se entende Religião, Moral, Política. Economia, Direito etc, sem se passar rente às respectivas vivências (observação, comparação, classificação, experimentação).

Por outras palavras (e fazendo-se aplicação do acima dito à experiência jurídica): não é possível a Razão “pura” proceder à exegese de uma regra jurídica senão mediante o exame (detido, exigente, meticuloso, exato, preciso) das relações sociais a que o símbolo lingüístico se refere. O discurso racional da Razão não compreende o mundo — não é racionalmente possível — sem se valer das paixões, sem penetrar experiencialmente nelas. Não se entende como funciona a Natureza nas suas regularidades (leis), senão por consulta ao mundo passional. Os dados do mundo passional não são dados puros. A sua lógica não é a priori (formal), mas a posteriori (material). É impossível ciência do direito sem sociologia; uma ciência "pura" do direito tra-

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taria com a abstração e não com realidades. Somente pela penetração da Razão na contextura dos fatos (identidade e sentido passional) podemos encontrar o sentido e a orientação dos conceitos da norma. Nos conceitos da norma estão necessariamente referências a seres perante os quais o Homem toma posição axiológica (passional), de modo que a norma somente adquire plena inteligibilidade quando vista nos fatos mundanos a que se reporta. O controle axiológico da conveniência da norma é verificável pelas realidades mundanas a que os termos dela aludem (natureza-das-coisas). O sentido dos termos empregados na norma escrita pelo legislador varia com o correr do tempo, e conforme as realidades neles indicadas variarem objetivamente, para satisfazer às necessidades humanas — estas determinantes das paixões.27

Temos então de asseverar que somente as relações sociais concretissimamente examinadas são o parâmetro, competente e confiável, para o intérprete obter sentido satisfatório com que os conceitos sejam entendidos. Significa isto que, perante determinada expressão normativa (escrita ou costumeira), o discurso tem a função de lhe revelar o sentido e a orientação: quê bem de vida contém, a quem se refere, com quê intensidade, em quê tempo, em quê espaço geográfico. Isso é impossível sem a Razão trabalhar com os dados passionais, de índole cambiante no correr da História. Ora, como no Direito as paixões (ditames das necessidades da natureza humana) se mesclam à cata de segurança transpessoal (objetivada em sistema jurídico revelável pela linguagem), a dificuldade do conhecimento racional dessas tramas de equações e inequações passionais produzidas na Natureza exigem sumo cuidado da Razão no trato da matéria jurídica, moral, religiosa, econômica, política etc. A segurança do conhecimento será tanto mais garantida em termos de transpessoalidade (redução da taxa passional no processo cognitivo) quanto mais o discurso sobre o material normativo for obediente ao rigor, à exatidão, à precisão. Parece-nos fora de dúvida quê o caminho da Razão, assim altamente transpessoal, será competentemente trilhado na medida em que se valer das conquistas informativas das ciências particulares, armazenadas e revistas continuamente pela pesquisa e pelo avanço da Ciência em geral.28

5. NATUREZA

a) Noção geral

Entendemos por natureza o ser real, ou seja, a coisa no seu modo-de-existir — independentemente do conteúdo da nossa apreensão a ela referido. Logo, temos: 1) é energia (de qualquer tipo ou classe): princípio transformador; 2) o nada não é natureza contrapõe-se logicamente a nada; 3) o absurdo não é — natureza contrapõe-se momento lógico produzido por desvio psíquico (inteligência, vontade, sentimento), ou seja, quando: a) formamos da coisa conceito errôneo: b) formamos conceito de algo impossível hic et nunc; c) tomamos decisões (querendo ou sentindo) que contrariam a relação de aproveitamento possível das energias que nos servem à Vida. Indo agora um pouco ao fundo da questão temos mais o seguinte, que abaixo vai.

4) Natureza é a disposição das coisas segundo as normas internas da sua índole; 5) contrapõe-se à violação artificiosa do modo-de-ser do ente, visto este na conjuntura do certo sub-sistema; 6) é pouquíssimo ainda, o que sabemos da totalidade-dos-Seres (Sistema Máximo, Realidade Total, Universo Completo), para que possamos, aí, definir exaustivamente o que seja Natureza e portanto o que seja contra-a-Natureza; 7) para a Vida, porém, basta o contínuo processo de ajuste dos seres em subsistemas determinados para nesses “pedaços de realidade”, podermos descobrir o que é que os destrói. Entre tais subsistemas temos: as condições de vida do planeta, a necessidade de vazão aos anseios religiosos, os imperativos do senso de justiça, os desejos de produção de esplendor da harmonia (de sons, ou cores, ou formas outras), o medo das incertezas decorrentes de ideologias, o ódio à deficiência de recursos materiais exigidos pela sobrevivência, a esperança na ordenada localização dos centros de poder, a alegria pela coordenação cognitiva dos símbolos transmissores do conhecimento, o amor à descoberta de proposições acertadas quanto ao modo-de-ser transpessoal das coisas.

É evidentemente da maior complexidade esta tomada de referenciais, que já contém fundo de passionalidade — a opção passional de tomar a Vida como parâmetro de sentido (e não a Morte). Mesmo para o conceito de Vida, os recursos do Homem

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são limitados: vida com que conteúdo? Vida em direção a que fins (e com que meios, planos, programas, etapas e ações)? Qual a preferenciabilidade entre indivíduos, entre grupos, entre o individual e o total (público, social)? Ora, é a resposta a tais indagações uma das tarefas tanto de Paixão como da Razão. Na própria busca de definição está um dos processos vitais próprios do ser humano: da Natureza que, no Homem, se busca conhecer — a reflexão. Está é a Razão como paixão pelo saber como necessidade de gerar valor-verdade: sensações, idéias e juízos conformes a estrutura ou modo-de-ser de sistemas e subsistemas de existência.

B) A Natureza física

Na Lógica a Razão trabalha sobretudo com formas de coerência. Na Matemática, com grandezas. Na Física, com propriedades. Na Biologia, com sensações e fenômenos ab intra. Na Sociologia, com fenômenos de ação-reação grupal, irredutíveis aos intra-individuais. Para organizar o pensamento sobre respectivas estruturas sociais e aplicá-lo em função da Vida, as paixões impelem a Razão a encontrar descrição de regularidades, padrões de comportamento da contextura das energias. Somos impelidos a descobrir leis e a saber interpretar leis.

Vindo à Física, temos na sua história duas vertentes principais, a ocidental e a oriental, mais intuitiva esta e mais analítica aquela. Segundo Oppenheimer, as construções da física atômica não passam de exemplificação encorajadora e refinada da velha sabedoria do Oriente. Para W. Heisenberg, há indícios de relação entre a teoria quântica e a tradição mística de Extremo Oriente — somos, os Homens, a parte interna de conjunto complexo de sistemas. Explicam-se estes somente na sua totalidade: inter-relação mútua de todas as coisas, verdadeiramente inseparáveis. Estamos implicados no Todo. Essa geral implicação é a Natureza — a natureza física se lhe olharmos apenas as propriedades definidas por nós cá no Ocidente. Lá, contudo, em visão nolística ("kuan" = contemplar = templo), o íntimo de cada qual é a parte interna da Natureza. Nesse todo em que o Homem é, Paixões e Razão têm funções distintas mas indissoluvelmente complementares (Yang-Yin). São pólos essencialmente embebidos de energia ("ki"), de tal jeito que no fenômeno biológico está necessariamente contido o físico. As relações en­tre homens contêm ambos — o físico e biológico. Mais: para a mística oriental, a própria lógica tem fundamento na Física: os "opostos", cuja percepção possibilita a coerência do pensar (lógica), são determinados pela diferença de rotação de ângulos das subpartículas definidas pelo Ocidente. É a mesma dialética fundamental Yin-Yang dos orientais.

De modo que, traçado um paralelo entre as concepções da ciência físico-matemática do Ocidente e a fecundidade da mística oriental temos: 1) a lógica, típica da Razão só é possível porque na Natureza as diferentes rotações de ângulo das subpartículas realizam a simetria e a dissimetria dos seres materiais; 2) o conhecimento ocorre por haver interpenetração da Razão com a contextura do ser material, descobrindo-lhe, “leis” (modos-de-ser constantes); 3) as leis são descrições de campos-de-força e têm valor-verdade apenas estatístico (não metafísico, absoluto); 4) todas as experiências humanas: ainda as mais sublimes (espirituais, súteis, transcendentes), estão embedidas pela coerência dos modos-de-ser da “matéria”; 5) os fenômenos do espírito não são alheios ao modo-de-ser da matéria — esta é um aspecto da Natureza; 6) o “espírito somente é enquanto opera como outra dimensão da energia massiva, mas opera seu desorganizar os modos-de-ser dela". 29

Que nos dizem então esses dados da mo­derna Física subatômica, em intrigante consonância com a vetusta mística oriental? Que Paixões e Razão se entrelaçam e se complementam, sendo o fenômeno físico inerente à intrínseca operação de ambas. Com isso, temos: a) o princípio da Relatividade Geral — que abrange o mundo material — apanha também o mundo emocional e racional; b) não faz sentido, se­gundo a natureza-das-coisas, falar-se de um conhecimento absoluto sobre as leis, como tampouco de qualquer ser que teimássemos em analisar como estranho à Natureza;30 c) o conhecimento de normas, e sua aplicação a vida em tanto se encherão de valor-verdade em quanto os conceitos que "elas aparecem se encherem de sentido mediante cuidadosa auscultação racional ao mundo físico-passional; d) em termos práticos: os dados da lógica, e os da matemática, e os da física, são indispensáveis para se analisar o fenômeno normativo — tanto na sua ocorrência fática como na com-

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preensão da proposição que tente explicar o sentido da norma. Demos um exemplo no Direito; "No verão, uma criança de 10 anos, pobre, sem clube de recreação, consegue saltar o muro de uma fábrica do bairro. Foi num momento de descuido de um guarda da empresa, que fiscalizava o páteo com um cão amestrado. A criança entra num tanque da fábrica para nadar. O tanque estava com a beirada a 1,5 m do chão. O menor afoga-se. Os pais acionam a empresa para haverem condenação em perdas e danos e lucros cessantes. Alegam que a criança ajudava em casa com um salário mínimo e o faria até ao fim de sua idade provável (65 anos); e mais despesas de sepultura, e de funerais, indenização pela dor moral, juros compostos e prestações atrasadas monetariamente corrigidas desde a ocorrência do fato ilícito". Ora, a compreensão deste fenômeno pressupõe exame de questões de matemática, de física, de biologia (aí, de psicologia), de sociologia (economia, política, moral). Sem esses dados, impossível entender todo o sentido das regras jurídicas dos arts. 159, 1.537, 1.544 (entre outros) do CC; art. 2.° da Lei 6.988/81; leis sobre o salário mínimo e suas várias alterações etc.

A exegese dessas regras é possível pelo estudo dos fatos, maior números possível deles e dos seus aspectos. Fatos: fenômenos da Natureza a que os símbolos lingüísticos dessas normas se referem. Mais: não basta exame puramente sentimental desses eventos do mundo (paixões sob o aspecto psico-social); e de mister análise meticulosa, quantitativa, exata, precisa, das circunstâncias que a lógica material da experiência fisico-bio-social pressupõe. Voltamos assim a mesma afirmação a repetida: os informes das ciências particulares são indispensáveis (não apenas úteis) à exegese. Mais geralmente: as leis da Natureza são elementos do discurso normativo: este se insere naquela, independentemente da nossa intenção.31 O Direito, como as outras vivências culturais — tudo isso é fenômeno produzido na e pela Natureza.32

C) Natureza biológica

Os fenômenos físicos têm oferecido base para a sua quantificação. Somente através do quark se podem conhecer propriedades do hadríon. No fenômeno físico realiza-se a objetividade do elemento cósmico matemático. Uma das surpresas mais intrigantes, descoberta na pesquisa das subpartículas, com amplo apoio da visão intuidora da mística oriental, é a impossibilidade de se explicar (ciência ocidental) ou sintetizar (mística oriental) a visão da própria "matéria" sem a atuação de elementos de "consciência". Temos campo de conhecimento para além da física, a identificar um modo-de-ser ainda mais complexo: o biológico. No estado atual da pesquisa não se tem encontrado formulação de teoria que consiga, com êxito de convencimento, ou alta razoabilidade de argumentos, proceder ao reducionismo "biológico = físico".

De outro lado seria enganoso pensar que no biológico não se alojem os fenômenos lógicos matemáticos e físicos. Bem ao contrário é o que vem sendo reconhecido, com alta maioria, pela comunidade cientifica das ciências biológicas.

Ora, na nutrição, na sensação, no sentimento, na violação, na própria intelecção, temos princípio energético de notável papel adaptativo. É a Razão não consegue extirpar a sensibilidade, embora seja capaz de lhe minorar os efeitos. Nosso sistema nervoso central continua marcado de engramas, com que age e reage sob o jugo de severos automatismos e instintos. Nesse processo de trocas, toda influência adequada à facilitação da Vida é valor positivo — serve à adaptação.

A influência recíproca, física e biológica, de indivíduos e de grupos entre si, são trocas. Somos postos na dialética fundamental da biologia: “organismo X meio”. Essa mesma dialética biológica, com suas regras próprias, persiste nas trocas específicas e mais complexas das relações sociais. De modo que as normas de convivência, sejam as ditadas pelas Paixões sejam as mais disciplinadas pela Razão, estão prenhes do mundo biológico. Para se entenderem e se compreenderem as regras religiosas, morais, estéticas, jurídicas , econômicas, políticas e de ciência, temos de valer-nos de dados biológicos (que se fazem com o elemento vida, sem desligarem-se das regras lógicas, matemáticas e físicas). Vazia de tais informes, a norma social é abstração oca. O seu manejo intelectual (para se entenderem as ações sociais e para se aplicarem à Vida) colidirá frontalmente com a natureza-das-coisas. A exegese lógico-formal, apriorística, racionalista, conterá absurdos — será contra a Natureza. Haverá portanto erros sem conta, de interpreta-

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ção e de aplicação: na experiência religiosa, na busca de elevação ética, na produção de sensação estética, na diagnose e solução dos problemas jurídicos, na previsão-execução-controle da atividade econômica, na ciência política, na pesquisa e experimentação científicas, na análise da linguagem.

Voltamos então à nossa tese fundamental:a compreensão de leis, regras e normas tem necessariamente de passar pela racionalidade material: consultar obedientemente a natureza-das-coisas. Atuamos socialmente sob a atuação em nós das leis biológicas. A Razão é de origem telúrica — existe em meio às paixões e aos automatismos. O produto lógico-formal só se livra do absurdo se estiver em incessante dialética — vital, intrínseca, existencial — com a dimensão físico-biológica da Natureza. Situando-se corretamente diante da lei das coisas, a Razão gera em si forma adequada do mundo; assim é para o conhecimento das repetidas regularidades com que os Homens descrevem atitudes de adaptação social — para o conhecimento das leis (as que descrevem adaptação já alcançada e as que descrevem caminho de adaptação por fazer-se).

D) Natureza sociológica

As relações sociais, relações entre seres vivos, mesmo as mais espirituais (Religião, Mural, Arte, Ciência) não se formam senão de elementos físico biológicos. O "psicológico" é o biológico (mais complexo que a nutrição, sensação etc). O biológico contém elemento físico, este o matemático, este o lógico. De modo que a Razão, se tentar mover-se somente no espaço lógico, prescindindo dos espaços mais ricos e complexos, irá apoderar-se apenas de fibríola mínima do mundo, da Natureza. O conhecimento da natureza humana, para poder firmar-se em sistema de proposições (Ciência), tem de trabalhar com as leis que a regem, ou seja, haverá de pesquisar com exatidão e precisão as leis sociológicas. Não se dá a conhecer a sociologia sem a biologia, física, estatística e lógica. Assim é, pois, também no trato intelectual rigorosamente exigente dos assuntos de Religião, Moral, Estética, Direito etc.

Pulsões, mecanismos, instintos, emoções — paixões, enfim — interpenetram-se na atividade típica de conhecer (Razão). E vice-versa. Todo esse caudal de energias, analisado na História, é pesquisável em seus fluxos específicos. Determinam a march da vida social, mediante critérios próprios, entrelaçados mas distintos. O Homem resolve os seus problemas de convivência num entrecruzar-se incessante de motivações ou interesses. A Razão distingue nesses diferentes processos de convivência algo assim como critérios de decisões sociais — certas adaptações (atendimentos de necessidades e anseios) ocorrem pelo parâmetro preponderante do interesse pela crença no ultra-sensível (religiosidade), outros pelo da justiça ou dignidade (moralidade), outros pelo critério da experiência do belo (artes, estética), outros pela preocupação primacial com a garantia transpessoal dos valores extrinsecamente reconhecidos (Direito). Outros acontecimentos ou trocas sociais ocorrem regulados por critério das utilidades materiais (Economia), outros pelo critério do jogo social do poder (Política), outros pelo (mais) puro interesse de apenas saber como a coisa é (Ciência). Outro fenômeno adaptativo dá-se com o critério preponderante da produção de símbolos comunicativos (Linguagem), além de outro processos de formação social (Moda, Etiqueta, Civilidade).

Cada um desses processos de adaptação tem suas regras. Certas regras apenas fir­mam um modo-de-ser social já cristalizado — definem uma adaptação já ocorrida. Outras — que geralmente chamamos de normas (em vez de lei ou regra) — expressam um modo-de-ser acolhido como apto a prover a certa situação adaptativa ainda não alcançada, mas por alcançar. As primeiras, costumamos dizer que são regras descritivas (dizem como é a Natureza), ao passo que às segundas chamamos prescritivas — pertencem ao mundo do dever-ser ("Sollen"). Naturais seriam apenas as primeiras, ao passo que as outras pertenceriam ao mundo do espírito — normas culturais.

Ora, é impossível regra prescritiva sem descritividade. O mundo cultural (mundo do espírito) não está fora do Universo, senão as manifestações psíquicas são uma dimensão da Natureza. Não conseguem estas refugir à incidência das leis lógicas, matemáticas, físicas e biológicas. A dicotomia é perigosa. Freqüentemente cria ilusões: somente as "ciências da natureza" seriam objeto de conhecimento exato, preciso, rigoroso. As outras, as culturais ("ciências humanas"), tingem-se de inarredável interesse já que o objeto delas é a própria subjetividade. Bem, mesmo se a distinção

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for puramente didática, ainda assim somente será aceitável a final se entendida em termos estatísticos de preponderância. É sabido, pela Teoria da Relatividade, que todo o conhecimento da natureza física depende da posição do observador em relação à massa observada — a massa de ambos altera-se com a velocidade. Por aí já se vê rigorosamente que o conhecimento da natureza física é também cultural... Mais: temos na física o princípio de indeterminação (Heisenberg), de modo que também nas "ciências exatas" todo o conhecimento é apenas estatístico, logicamente aproximado. De modo que, mesmo no trato do que cogitamos ser altamente objetivo, há alteração da coisa introduzida pela subjetividade humana. E note-se muito: a nossa subjetividade está sempre sujeita às emoções e aos mecanismos (Paixão).

A diferença entre "ciências exatas" e "ciências humanas" é uma questão de grau: as leis sociológicas contam com elementos físicos, mais os biológicos, e mais a especificidade — de características novas — das trocas sociais. Daí a dificuldade subjetiva muito maior em aplicarmos aos fenômenos sociais a matemática. E a dificuldade de detectarmos nas leis religiosas, morais, jurídicas etc. o funcionamento das leis físicas, temos entretanto de asseverar — pelo que vimos tratando nesta publicação — que o mundo cultural é uma das dimensões da própria Natureza. Cada processo de adaptação é um espaço real, com as suas cargas energéticas reais: na Religião conceitos, motivações e ações alinham-se a seu modo pelo critério do ultra-sensível, sim, mas sem ablação das leis físicas biológicas etc. Assim também no Direito, Moral etc. De modo que não é utopia, mas meta atingível e desejada, a Razão penetrar no material normativo de todos esses espaços sociais — que são reais — lidando com os dados lá presentes: os dados da lógica, da matemática, da física e da biologia. No momento certo (dependendo da matéria tratada), não pode a Razão prescindir de utilizar-se dos dados das ciências particulares na interpretação das normas sociais. É o único método ca­paz de levar-nos a conhecer as normas como proposições sobre a realidade e não como abstrações desligadas do mundo, da Natureza.

Isso não acarreta a distorção da percepção típica do dever-ser, cuja indicatividade está na regra prescritiva (= mais prescritiva). É impossível apanharmos a "essência" (jeto) de cada ponto de referência do caminho a seguir (regra de dever-ser) se não lhe entendermos a linguagem comunicativa. Ora, a linguagem é expressão de conceito, e o conceito — se não for absurdo — alude a algum espaço da Natureza. E repita-se: na tarefa de conhecer o universo das trocas sociais, o Homem é observador tanto de si como de outros Homens. As cargas sociais de todos alteram-se incessantemente segundo mecanismos, pulsões, paixões — tudo em existencial dialética com a Razão. Conseguirá a Razão simplificar as relações sociais, sem distorção destrutiva, se se deixar guiar por indicativos da "ciências da natureza". O vago, retórico, sentimental encher-se-á então da concretude dos dados, definidos com precisão muito maior. Neste processo cognitivo não se obliteram tanto as linhas postas na Natureza. Ao contrário, colhem-se os informes a respeito da natureza-das-coisas com mais abundância, lucidez e exatidão.33

A dialética reflexiva entre o conteúdo do conceito e o ente conceituado será tanto mais depuradora de ilusões artificiosas (= contra a Natureza) quanto mais a Razão puder colher, transubjetiva e transpessoalmente, o conteúdo da relação social examinada. Ao modo dito: utilizando os informes das ciências particulares. Pensamos que a fonte de reflexão será somente fecunda e eficaz se se utilizar criticamente desses resultados acumulados pelas ciências.34

6. A NATURALIDADE DO

FENÔMENO JURÍDICO

Façamos breve incursão no Direito.

É um fato social. O agente jurídico é ser biológico, é ente físico. Está sob a atuação determinística de leis físicas e biológicas, embora a consciência lhe dê suficiente sensação de liberdade, a ponto de ser contra a natureza-das-coisas que se lhe retire a imputação: só com esta se consegue obter ordem social, ou seja, uma crescente adaptação social pela inteligência, vontade e sentimentos.

A característica maior do fato do Direito (adaptação social com traços próprios) é a garantia extrínseca: a solução (jurídica) é a indicada pela norma, não a que depende de concepções particulares a pessoas ou grupos (em matéria religiosa, moral, econômica etc). Essa vereda da

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garantia é um critério passional em que atuam as necessidades físico-biológicas dos homens no seu "habitat" natural — na convivência na Terra. Satisfazemos, com tal garantia transpessoal, à nossa necessidade e ao nosso anseio de serenidade quanto à firmeza das coisas boas conseguidas, de meios calculáveis para a consecução de outros valores, de instrumentos sociais definidos para afastar danos ou perigos ameaçadores. É modus procedendi de convivermos com as paixões. A Razão enxerga essas linhas, diagnostica-as, indica a solução apresentada para casos concretos segundo o sistema vigente de energias jurídicas. A Razão, mais livremente que a Paixão, faz a exegese da norma e interpreta os fatos regulados por ela. Valor é relação de conveniência-inconveniência entre fatos; percebê-lo é plano (mais) lógico que irracional; definir-se por valor é plano (mais) passional que lógico. Tanto essa percepção quanto essa decisão são operações naturais; não se livram de leis físicas e biológicas, embora o Homem seja um dos ternos da relação de conveniência-inconveniência. Convir ou não-convir implica ne­cessidade ditada pela natureza-das-coisas. Essa necessidade é a fonte da paixão. Também o é da Razão, mas por outra via, mais neutra de interesse.

Quanto mais o intérprete do Direito se utilizar de métodos e dados das ciências, mais próximo estará — e mais atiladamente — da “verdade”, ou seja, da solução jurídica mais adequada ao caso concreto. Portanto, da única aceitável pela natureza-das-coisas. Esta será a solução científica. Todas as demais serão “falsas”, i. e., inaceitáveis. É a Razão atuante.

O raciocínio jurídico é necessariamente (= naturalmente) dialético. O sentido lúcido do conceito empregado na linguagem da norma capta lhe o jeto (esta realidade que fica quando se afastam as cargas emocionais da subjetividade e se "desenroscam" as confusões armadas pela complexidade do material social observado). A percepção do sentido amplo, profundo e exato dos termos da norma somente é possível mediante a análise precisa da realidade transpessoal que o conceito descreve, ao aludir a algo. É sem sentido o que for inteiramente "oco", porque a abstração total não é (não "está-aí"; escapa à Natureza, por nada ser). A percepção de sentido só é possível por consulta a fatos, isto é, a realidades, "partículas" de Natureza. O instrumental confiável para essa colheita de dado-sentido é o capital acumulado constantemente pelas ciências particulares. Por isso, o conhecimento e a prática do fato jurídico ganhará em opulência e funcionalidade na medida em que conseguirmos introduzir nessa ciência os métodos e os resultados das outras ciências.

É mais criativo, realista e útil ao jurista a pesquisa exigente que a elocubração filosofante. O método científico para conhecimento do Direito há de fazer-se necessariamente por: a) observação do conteúdo extrassubjetivo da realidade social a que o termo da norma se refere (fase empírica do discurso normativo); b) clareamento positivo (= natural) do sentido da norma em forma de proposição indicadora de comando (Razão-Paixão) — é a fase racional do discurso (por lógica material); c) retorno intencional da proposição ao mundo extrassubjetivo das relações sociais, a que a proposição alude, para lhe testarmos o acerto lógico (fase experimental do discurso) Eis o que pensamos ser a dialética científica do discurso nomológico.

Pelas vias do método descrito (inductivo-experimental) pode se chegar com mais segurança à construção da sistemática (doutrina) e à formulação mais precisa da técnica adequada ao trato rotineiro das questões jurídicas. E. g. classificação dos suportes fáticos. classificação das regras jurídicas, classificação dos fatos jurídicos; clareamento dos planos em que os fatos jurídicos podem e devem ser examinados (existência-inexistência, validade-invalidade, eficácia-ineficácia), tipos de invalidade, tipos de relações de eficácia; classificação de direito-deveres, pretensões-obrigações, ações-(sujeições) e exceções-(abstenções). As conclusões extraídas, por lógica material (exigência interna da natureza da matéria tratada), serão então proposições técnicas de elevado grau de confiabilidade. Mesmo assim, hão de ser submetidas constante mente a testes de falseabilidade perante o Real (Natureza). É como progride com mais segurança o conhecimento do Direito — este modo natural, necessário, de o Homem ser no mundo.35

NOTAS

1. Summa, I, II, 17, 5-8, 22,1; 22,2; 22,3; 25,3, c; 82,3. sed contra.

2. Ibid., 23,4, resp.

3. Ibid.; 28,1.

4. Ibid., I, II, 42,4, r.

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5. Ibid., q. 43.2, ad 2 e 3; q. 44, art. 2.

6. Ibid., 4, r.

7. Ibid., 46,1, r.

8. Ibid., 46,3.

9. Ibid., 46,6.

10. Hirschberger, Geschichte der Philos., t. II, p. 18-20.

11. Ethica, IV, prop. 73 e V, prop. 23.

12. Tractatus Politicus, cap. 2, 4-5.

13. Vários, “Os sentidos da paixão”, 1987, Furnate, pp. 17-33.

14. P. Rouanet em Os sentidos da paixão, supra, pp. 437-449.

15. Pontes de Miranda, Garra, mão e dedo, pp. 77-85.

16. É vasta a bibliografia a respeito da atuação passional na sociedade. Vão aqui as fontes principais de que servimos: Pontes de Miranda, Sistema, I, 187-228; Miguel Reale, O Direito como experiência, pp. 25-260; D. Attenborough, Life on Earth, pp. 11-162; T. Parsons, Sociedade: perspectivas evolutivas e comparativas, pp. 16-50; R. Dahrendorf, Elementos, PP. 50-133; José E. Faria, Retórica política e ideologia democrática, pp. 237 ss.; M. Weber, Economia y Sociedad, PP. 172-656; K. Marx, O 18 de Brumário (todo); Engels (os prefácios às obras de Marx); J. Habermas, Theorie und Praxis (resenha final); F. Henrique Cardoso, A questão do Estado no Brasil, pp. 194-221.

17. J. B. Schuster, “Augustinismus”, In W. Brugger, "Phil. Wörterbuch", pp. 29-30; N. Abbagagnano, Dicionário de Filosofia, pp. 793 ss.

18. Ibidem, I, 79,11, c:

19. S. Tomás, "De Veritate", 15,2, ad 3; Summa, I, 86.3,c, final; I, 2,2,c; In Ethicorum, II, I, 259; V, XII, 1030; V, XVI, 1087, VI, III, 1151.

20. Hirschberger, Geschichte der Philosophie, t. II, 4-28.

21. F. Überweg, "Grundriss...", IV, pp. 83, ss.

22. W. Brugger, “Grundriss...”, pp. 501 ss.; M. C. Oliveira, “Pontes de Miranda, gênio e sábio", in Rev. Fac. de Direito de Caruaru, 1986, pp. 31-45.

23. K. Popper, "Logik der Forschung", trad. port. In Os pensadores, tomo XLIV. pp. 265-287, 322-383 (Abril Cultural, 1975).

24. Pontes de Miranda, “Introdução à Sociologia Geral”, 2ª ed., Forense, Rio, 1980, pp. 64-70 e “Vorstellung vom Raume”, in Atti Del V Congresso Internazionale di Filosofia, Napoli, 1924.

25. Miguel Reale, Verdade e Conjetura, Nova Fronteira, Rio, 1983, pp. 13-26, 33-60, 63-93, 100-169.

26. Por aí se vê quão Ilusória é a escola de H. Kelsen — que tantos seguidores tem encontrado no Brasil — nos seus pressupostos filosóficos: uma teoria pura do Direito (= sem as relações sociológicas a que o discurso nomológico se reporte, dando-lhe sentido específico). Conhecer a norma em si, como objeto da ciência jurídica, seria conhecer objeto sem correspondência no Real!

27. Contra, H. Kelsen, Reine Rechtslehre, F. D. Verlag, 3ª ed., Viena, 1960, trad. port. de J. B. Machado, 1974, Coimbra, p. 470 (conceitos e normas de Moral não estão no Direito positivo, mas só na aplicação dela — ? —); também em Allgemeine Theorie der Normen, Manzche Verlag, Viena, 1979, trad. de J. F. Duarte, P. Alegre, 1986, pp. 242 e nota 128, pp. 436-438: (a) concorda com R. Carnap no sentido de as normas sociais serem de tipo “não-verificáveis”; b) (na interpretação das normas, o sentido com que elas aparecem na lei é imodificável ulteriormente pelo contexto social).

28. Nesse sentido, Pontes de Miranda, Sistema, pp. 87-128.

29, Sobre estas questões, v. F. Capra, The Tao to Physics, trad. port. São Paulo, 1983, pp. 103-224.

30. Para os que temos crença em Deus (no sentido judaico-cristão), o próprio conceito de Infinito se humaniza: é o absoluto segundo a relatividade do Homem. Daí a sutil observação de Göethe, falando do Deus de Abraão e de Moisés: "conforme o Homem, assim é o seu Deus" — "Wie der Mann, so auch sein Gott — (West Ostlicher Divan, W. G. Verlag. Munique, 1958, p. 204).

31. F. Capra, supra, pp. 179-185.

32. Pontes de Miranda, Sistema, supra, I, 75-102; III, 299-378; IV, 3-192.

33. Sobre a possibilidade efetiva de se diminuir, pela reflexão, o impacto passional da experiência histórica sobre a linguagem — contra a posição um tanto cética de Gadamer —, ver J. Habermas, “Sobre Verdade e Método, de Gadamer”, in Dialética e Hermenêutica, trad. de A. L. M. Valls, ed. LPM, P. Alegre, 1987, pp. 13-25.

34. Sobre a patologia da linguagem na comunicação social, suficientemente curável em parte por meio da hermenêutica permanentemente reflexiva, ver J. Habermas, "A pretensão da universalidade da hermenêutica", ibidem (supra), pp. 26-72.

35. Parece-nos ser o mérito maior de Pontes de Miranda a instituição da ciência jurídica em bases sólidas de positividade, i. é., de precisa adequação da dogmática e da técnica à natureza-das-coisas. Advém daí a autoridade maior desse autor no toda da sua extensa e profunda obra (v. nosso “Pontes de Miranda, Gênio e Sábio”, in Rev. da Fac. De Direito de Caruaru, n. 17, 1986).


* Este trabalho é resumo da tese de doutorado do autor, defendida no segundo semestre de 1990, em Banca presidida pelo Prof. Miguel Reale. A titulação atual do autor é: Mozar Costa de Oliveira — bacharel em filosofia (Universidad Comillas de Madrid), mestre e doutor em direito (USP), professor de direito aposentado (Universidade Católica de Santos, São Paulo).