terça-feira, 29 de setembro de 2009

Neurobiologia, realidade mística e gnosiologia

Neurobiologia, realidade mística e gnosiologia

Mozar Costa de Oliveira, bacharel em filosofia (Univ. Com. de Madrid), mestre e doutor em direito (USP)

Aumentam os estudos da ciência dos neurônios. Revelam eles o conhecimento das áreas cerebrais e do que nelas se localiza funcionalmente. O presente artigo ocupa-se do assunto, atento à velha experiência mística. Coteja-a com o antigo problema fundamental do conhecimento. Toma por base livro recente publicado nos EUA, onde se afirma que a experiência mística (a metafísica, a religiosa e outras) é pelo menos tão velha como a formação do neo-cortex. Na gnosiologia são apresentadas posições de alguns poucos clássicos. Dá-se destaque a um gnosiólogo brasileiro crítico, cultor das “ciências exatas”. O conteúdo da chamada “realidade objetiva” é mostrado em algumas semelhanças com a realidade de fundo místico.

Abstract

Brain science. Mystical experience. Gnosiology. Scientific studies about neurobiology increase and reveal more knowledge of how brain areas function. This paper is in search of old mystical experience, including a comparison with the ground problem of knowledge as well. As far as mystics are concerned, our article is basically written upon a new book on the subject, published in the USA stating that metaphysical, religious and other forms of mystics are as old as the neocortex. As to gnosiology, positions of a few classics are presented; special place has been reserved to a critical Brazilian gnosiologist, and partisan of “exact sciences”. The content of so called “objective reality” is shown in some interesting similarities with mystical background reality.

INTRÓITO

Este artigo retoma a linha mestra de dois neurologistas no livro Why God won’t go away[1] (“por que Deus não vai embora, por que não some de vez?”).

Esboçamos comparação entre a biologia da mística e a da gnosiologia. Há provável realidade ex-sistente (=um estar-lá, fora da pura mentalização subjetiva), a alargar a ontologia. Para o gnosiólogo a velha ontologia não passa de um trançado de lógica formal e de estética, que o método científico não consegue respeitar como conhecimento — porque não é testável (ou falseável ou refutável).

Para o diálogo com pensadores tradicionais, só o empreendemos com um mínimo de contextualidade. Por as anotações serem aqui tão condensadas, o estilo ficou lacônico. Contra o truncamento, foram muitas as indicações nas notas de rodapé.

Em letra comum vem o pensamento deles, em itálico as nossas anotações.

I – INTRODUÇÃO À BIOLOGIA DA CRENÇA[2]

1. Empiria. Tomografia computadorizada de emissão de um fóton único (SPETC), tomografia da emissão de pósitron (PET) e imagem de ressonância magnética funcional (fMRI) fundaram as observações sobre o cérebro em ação.[3]

1-a — Originalidade. Este o valor mais original da obra. Abre ensanchas à biologia da crença. Três níveis de mística: metafísica (sem o caráter sacro),[4] religiosa (expansão do espírito para além do si mesmo em contato com o todo) e a experiência de Deus. Nesta o espírito dilata-se em expressão de amor pelo Infinito,[5] presença pessoal,[6] de Pai.[7]

2. Sugestões dos dados empíricos. Pelas tomografias a “experiência mística” é real. Têm os contemplativos a “sensação” de união inefável com Algo Absoluto. O organismo encontra harmonia, naturalidade funcional, saúde mental. A estrutura biológica leva à normal situação de “espiritualidade”. Deu-se resposta a algumas questões: qual o segredo neurológico subjacente ao poder dos rituais; se as iluminações dos místicos são ilusões emocionais ou percepções sadias. A experiência torna-se uma jornada rumo a mistérios da mente e ao centro do sujeito[8].

II — CIÊNCIA DA PERCEPÇÃO[9]

3. A adaptação milenar. No animal a rede neural foi evolutivamente construída em milhões de anos. Também no cérebro humano. A célula nervosa (o neurônio) mais complexa é a do neocortex, unidade básica da função cerebral. Maior complexidade, mais precisão e mais versatilidade no meio-ambiente mostram uma capacidade superior de adaptação.

3-a — Adaptação é social. A adaptação (“Anpassung”) é um fenômeno grupal: no meio-ambiente (éκος) o ser vivo resolve problemas, em função da sobrevivência conjunta de “mais qualidade”. O homem interpreta-se, e interpreta o meio em função de desenvolvimento mais rico. Nota-se-lhe capacidade de subir a escalas mais subtis da biologia. Esta característica o animal bruto não tem. Tal o caso da formação de uma idéia “universal” (extração de jeto),[10] envolvimento dele em conceito[11] e criação da notação simbólica de comunicação. Mais: pode o animal homem construir o conhecimento sistemático. Faz ciência (que um processo social de adaptação – como são também Moral, Artes, Direito, Política, Economia).[12]

4. Áreas de associação. Entre as funções do cérebro há as funções de gerar percepção de significado, imaginação de alternativas para problemas, planejamento, estocagem de provisões. As informações animais são transmitidas em alterações eletroquímicas, funções fisiológicas de células nervosas. Essas funções não ocorrem na informatização.

5. O córtex. A região subcortical é mais primitiva, mais ancianamente animal. O córtex, este sim é uma conquista evolutiva recente; mais ainda o neo-córtex. Áreas cerebrais de associação são as seguintes: (a) associação visual (região frontal); (b) da atenção (região parietal esquerda); (c) de associação de orientação; (d) de associação conceitual-verbal. Embora intensa, a intercomunicação entre a parte direita do cérebro e a esquerda, os lóbulos da direita são instrumentos do inconsciente (passional, instintivo, emocional). É sobretudo o lado direito o intérprete do valor existencial das emoções; o lado esquerdo responde pela racionalidade (conceito, linguagem, raciocínio).

6. Intercomunicação. A intercomunicação de um lado com o outro vem a influenciar construtivamente na precisão: nas tomadas de consciência e na construção do conhecimento. Se gravemente falha essa intercomunicação, ocorre cisão no sujeito: o racional vai distanciar-se do emocional, com perturbações.

6-a — Dados reais. A coleta de dados fica mais a cargo do lado esquerdo — esta é uma relevante informação para a teoria do conhecimento, que tem de versar o real dos dados, o ex-sistente — o não puramente mental, o não puramente subjetivo.

7. Integração e sentido. Os neurônios, uma vez arrumados, levam impulsos sensoriais ao cérebro. Compõem as áreas de associação. Nestas áreas ocorrem processamentos mentais aprimorados: a integração dos informes sensoriais e a percepção. É quando aqueles dados recebem sentido. Conferem eles união maior à consciência.

7-a — De novo a adaptação. Na operação humana de dar sentido aos dados sensoriais, e sistematizá-los, ocorrem elementos racionais e instintivos. Carreiam-se nela fluxos de “valores”. Segundo seja a necessidade receptiva a “fontes axiológicas”,[13] tem-se a ação operativa, transformadora, dos sete principais processos sociais de adaptação: Religião,[14] Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência, todos ex-sistentes pelo menos em alguns dos seus efeitos.

8. Normalidade da mística. Na mística ocorrem alterações normais do sentido da individualidade e da identidade do sujeito (“self” e “ego”). A área de associação da atenção hospeda uma intencionalidade seletiva. Quando se focaliza a atenção, o cérebro varre as entradas sensoriais supérfluas para atingir alvo bem definido.

8-a — Ceder para vencer. Para a gnosiologia esta observação da neurociência tem importância. Para a correta focalização do alvo, o sujeito (sub) procura prescindir de si. Eis aí o que Pontes de Miranda chama de “colocar o sub entre parênteses”. Prosseguindo — prescinde da relação “alvo para si”, que o homem afasta. Isto é, o ser cognoscente luta, cedendo para vencer. O resultado é o alvo procurado, o jeto.[15] O jeto inseriu-se este no sujeito, desde a sensação. Por isso o jeto não é um “nome”. É a própria realidade alvejada, quando se lhe retiram os dois esforços iniciais da operação adaptativa do homem no ato de conhecer. Retiram-se a afirmação de si (sub) e a confrontação “cognoscente perante alvo”(=ob).[16]

8-b — A emoção na abstração. Na operação abstraente (ablação do sub e do ob) já ocorre emoção. Não há conhecimento científico inteiramente neutro, estado de intelectualidade pura. Toda ciência, ainda a mais abstrata, carrega emoção no seu construir-se. “Inteligência pura”, só assim se pode entender: menos emocional; nunca ato intocado por paixão. A paixão não é apanágio da arte, da religião etc.[17]

9. Religiosidade e emoção. A experiência religiosa é, pois, fartamente emocional; ativa as áreas de associação de orientação e de associação de atenção.

9-a — Jeto e o que o segue. Segundo a gnosiologia positiva o conceito[18] é produzido depois de o jeto ter sido apreendido (é, portanto, o que fica no cérebro depois de postos entre parênteses o sub e o ob). Depois do conceito, que é quase sempre coevo do juízo, e progredindo-se agora na externação do jeto captado, vem a linguagem, às vezes o nome; a emoção anda sempre junta a estas operações.

10. “Ego” e sujeito. O ego é o ponto em que se coloca o sub quando está em estado de atenção, funcionando como sentinela da tomada de consciência; o Eu percebe a si mesmo como objeto da sua observação. A mente toma consciência do ego e de sensações, emoções e conhecimento (jeto, conceito, proposição, raciocínio).[19] A evolução do cérebro levou o homem a perceber a sua existência. Surgiu o ego, observador de sua identidade (com sensações, cognições e emoções).

10-a — A indicatividade foi o início do “homo”. O “homo” começa na história do universo a partir do momento em que aquele primitivo animal “indicou” um ob. No verbo indicar está o index, depois de já superada a flexibilidade da mão e a dureza da garra.[20] Pontes e Newberg et alii, 2002 olham para a mesma realidade, fixando-se em estruturas diferentes não excludentes.

11. Mente e cérebro. Mais perfeita a associação, mais segura será adaptação — sobrevivência. Pensamentos e emoções são elementos da mente. Mente é o que atua. Cérebro é instrumento. Duas co-realidades, uma não funciona sem a outra.

11-a — Outros atos psíquicos. Nos pensamentos e nas emoções figuram também representações, intuições e memória. Parece que, para os três autores, o cérebro e a mente estão em “união substancial” (em termos da Escolástica): “forma” é a mente e “matéria” é o cérebro. A rigor esta aparência de causa eficiente (a mente) e instrumental (o cérebro) é só funcional na sua especificidade, ou seja, ao modo como nós experimentamos uma e outra coisa em nós e nos outros. Não há ainda certeza de como é que a mente desaparece, quando o corpo se desfaz. Mente não está para cérebro em dualismo: nem o dualismo clássico (o cartesiano) nem o moderno (o materialista).

12. Neurônio e vida. Neurônio no cérebro vivo é aproximadamente como uma molécula de água numa onda no mar: o neurônio “é na vida”, a molécula “é na onda”.

12-a — Impulso exterior, vida interior; a “realidade objetiva”. Os neurônios são impulsionados pela mente, que não pelo cérebro. O que temos por “real” é um dado externo, um estímulo independente do cérebro. Entrado o dado em nós, a mente dá-lhe a forma dela. Assim, o ob toca o sub. É a “idéia pura”, que se consegue com a ablação do sub e do ob é o “jeto”. Logo, nem nominalismo nem idealismo: o jeto alcança-nos na originalidade da sensação, a qual é provocada pelo estímulo.[21] O jeto entra em nós por meio dela. Fora todo idealismo, pois. O ser extraído, ele, o jeto, não é um nome. Ele é extraído: a inteligência afasta de si a consciência de sub e de ob — o sujeito “esquece-se” de si, abandona-se (!), e também desconsidera “aquilo” (o jeto, a “essência” segundo a Escolástica) como “algo em confronto”. O cognoscente não retira nada do que nele entrou; ao contrário, afasta a atividade de nos encerrarmos nos limites do Eu; de outro lado, apagamos biologicamente o impressionismo da coisa, a força impositiva da presença dela em nós, como algo que fosse “nosso”. Interessante, curioso, é isto: conhecemos algo é pelo desprendimento![22]

13. Mística e equilíbrio. Segundo a tomografia, a mente não se experimenta a si própria na mística como se fosse algo ilusório. Não: mente e cérebro ajustam-se de modo neurologicamente sadio, sem anormalidade psíquica.

III — SE O CÉREBRO FORMA A MENTE[23]

14. Causalidade. Os testes mostram a correspondência neural entre o Eu e o extramental. Este não se deixa interpretar como criação subjetiva, como algo “não causal”.

14-a — Causa independente do sujeito cognoscente. A mente faz-se independente do alvo, em situações normais de atividade cerebral. Quando pensamos o jarro visto ontem, não andamos iludidos nem quanto ao jarro visto nem quanto ao universal “jarro”. Ao fruirmos a beleza da paisagem, atrás da admiração está a paisagem sentida. À musicalidade corresponde alteração auditiva, de fonte exterior a ela (folhagens, pássaro, percussão, orquestração). É impossível uma experiência de Deus sem ser com o cérebro. A experiência de Deus, como qualquer outra vivência, incluída a vivência cognitiva, insere-se na história do homem sempre entranhada nas raízes do sistema nervoso.

15. O sistema nervoso. Sistema nervoso há em nós — o autônomo e o periférico. No autônomo situam-se o simpático e o parassimpático. No simpático mora a excitação em ameaça de perda, ou em oportunidade de ganho. O simpático gasta energia. Gera incitamento. O parassimpático cuida de organizar. Poupa energia. Gera quietude. Na experiência espiritual evidenciam-se estados autonômicos de “hiperquiescência” (um alto grau de quietude) e, de outro lado, dá-se também o “hiperincitamento”: o sujeito é posto em alerta. Quando o estado de quietude (“hiperquiescência”) chega ao máximo suportável, pode seguir-se o extremo oposto (“hiperincitamento”).

16. O límbico e a vida passional. O potencial emocional situa-se no límbico, composto de três instrumentos: o hipotálamo (o mais antigo), a amídala cerebral e o hipocampo. O sistema límbico, o das emoções, é de potencial mais subtil, mais alto, mais supra-instintivo Apareceu com o neocortex.

17. Os operadores. Há, entre outros, os “operadores cognitivos”: são os de habilidade cerebral, com que o Homem pensa e sente os estímulos extramentais: holístico, redutor, abstrativo, quantificador, causal, binário, existencial e o valorativo de emoções. Os sete primeiros interpretam a percepção; o último avalia as emoções do sujeito. Todos operam em função de “significados” e de “relevância”. Traçam a originalidade mesma do indivíduo.

17-a — Descrição e localização do conhecimento. Os autores, com freqüentes alusões a descobertas de outros neurólogos, não descrevem o ato cognitivo em si (como faz Pontes de Miranda). A contribuição deles consiste em examinar a função cognitiva com ênfase na atuação passional, em bases experimentais — tem-se aí o sujeito nas diferentes áreas de neurônios. Pontes descreve o conhecer; Newberg et alii descrevem as regiões do cérebro onde tais operações funcionam.

18. Os operadores holístico e redutor. O holístico faz-nos ver nas árvores a floresta (visão do todo, presentes as partes). O operador redutor tem função oposta: na floresta faz-nos ver as árvores — no todo nós enxergamos as partes.

18-a — Extração do jeto (“essência”) pressupõe um doar-se. A extração de jetos (aproximadamente os “universais” ou “essências” da filosofia clássica) dá-se nos meneios de “esquecer-se de si”, e de atravessar a multiplicidade de coisas enquanto confrontação. O “ob” é a experiência de estar o sujeito “diante de” (“a coisa é sua”). Na captação do jeto, ao retirar o sub, o homem cede algo de si: afasta delimitadores da subjetividade.

18-b Translação pelo amor. Algo semelhante é a experiência translativa de Deus: é quando o indivíduo rompe limitações do Eu, permitindo que o espírito se amplie fora da subjetividade e se engolfe, amando, em um mundo extra-subjetivo. No que tange à retirada do “ob”, há concentração da mente: para se adaptar ao círculo ecológico, a dita retirada afasta a consciência de a coisa estar-lhe em confronto. O segundo momento de ampliação é este: o espírito vence o trejeito instintivo de ver as coisas restringidas pelo confronto consigo, sem as suas ligações amplas. Mas, estas ligações estão no Universo. Elas são o que são na co-ex-sistência insondável de jatos de ser, de jorros de seres. E então o cérebro as “vê” indiferentemente, se são ob-servadas pelo homem “hic et nunc” ou se não o são.

18-c — Ampliação, adaptação. Numa e noutra operação de conhecer, ao captar o “essencial momentâneo” dos jatos de seres do mundo (=jeto), o “homo scientificus” amplia o espírito na sua adaptação gnosiológica com o mundo. Parece mesmo haver semelhança entre a percepção mística e a científica. Em ambas o homem sacrifica-se para vencer; nega algo ao instinto para ascender a nível superior da sua vitória sobre as coisas. O animal bruto carece desta capacidade.

19. A generalização. O operador abstrativo permite formação de conceitos gerais a partir da percepção de fatos individuais. É o gerador de teorias científicas, de presunções filosóficas, de crenças religiosas e de ideologias políticas.

19-a — Jetos finos, jetos espessos.[24] Há jeto mais fino que o matemático: é o jeto lógico. Sobre estes Newberg et alii, 2002, vão cuidar implicitamente no estudo do operador causal.

20. A busca de causas. Ora, o operador causal responde as perguntas de “como” e “por que”. Possibilita a operação de opostos.

20-a — Os jetos mais finos e os mais espessos. A própria consciência de relação é um jeto lógico, o menos espesso dos jetos, o de conteúdo menos abrangente. Os jetos mais espessos são os “universais” de maior densidade. Quer isto dizer que os seus conteúdos são mais variados e mais diferentes entre si. Estes jetos são os sociológicos. São as relações sociais. As relações sociais mais operadoras de transformação no universo conhecido são sete: as da Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência — esta, por si, é a menos transformadora. Muito transformadora, porém, quando aplicada na Política e na Economia.

20-b. Mundo de relações. Eis aí a nossa οικια, necessariamente relacional. O filósofo não translativo raramente a considera. Passeia ele entre diversos processos sociais de adaptação, com mesclas de razão e sentimento — um romantismo abrilhantado de racionalidade. Pretenderia saber; renuncia porém à mística e à ciência.

20-c — Algumas conclusões. O estudo do operador causal autoriza enunciar estas proposições: (a) o que apreendemos na consciência lógica é em relações que o apreendemos; (b) é neurologicamente impossível, fora da mística, um “Sein” à M. Heidegger: metafísica é mística, se translativa; se não o for, é poesia intelectualizada; (c) o “operador causal” provém do instinto de curiosidade (também o animal espreita algum tipo de “relação explicativa” para eventos externos); (d) esse impulso liga-se à necessidade de “antecedentes” para alguma experiência atual, a interconexão dela com outros eventos; (e) na mística, em experimento pessoal com Deus, somos também impulsionados pela busca de interconexões: o nosso Eu com o Amador ilimitadamente mais vasto que a individualidade das coisas.

21. Binário e relações. O operador binário confere-nos a habilidade de distinguir entre “isto” e “aquilo”. Sem ele não teríamos relações, como na ciência; só absolutos – generalidades vazias.

21-a — Visão de si e dos obstáculos; ciência e mística. Temos de atribuir ao operador binário a produção da relação “sub"–“ob”. Estará aí a sede cerebral da consciência pré-científica do “estar diante de”. No operador causal há produção de relações, de modo que a habilidade de extrair jetos mais finos (um tipo de experiência científica) deve situar-se nesse operador. O termo “binário” aponta para a impossibilidade científica de percepção do “unitário”. Esta percepção de unidade é própria da mística: o indivíduo apaga marcos da individualidade, os redutores da liberdade, e entra para o “Ambiente”. Quando alguém contempla algum cenário da natureza, pode entrar em mística com o meio ambiente. A individualidade abandona seus limites. “Irmana-se” (Francisco de Assis) com ar, luz, folhagens, águas, forma das pedras, canto dos pássaros. Essa mística laica, aliás freqüente, é por vezes intensamente translativa (quando se faz religiosa “lato sensu” como entrega pessoal à oikia sensível. Para a “experiência de Deus” falta ainda a translação afetiva rumo à Oikia Amor Ilimitado (ida ao Ser Absoluto Unitário).

22. Existência no mundo. O operador existencial propicia uma certeza: não vivemos isolados. Estamos dentro de um mundo real, ex-sistente (fora das elucubrações vazias). Somos-no-mundo: a natureza-homem. A efetividade do extramental dá-se-nos em meio a emoções: consciência de mundo, modelado ele pelo recipiente (por nós próprios). Esse operador mantém ainda, atuante em nós, enquanto sadio o organismo, a fundamental vontade de viver. Completa ele a cognição com emoções (amor, ódio, medo, alegria e outras). E sedia a ânsia por “ευδαιμονια” — bem viver, ter boa qualidade de vida, “ser feliz”.

22-a — Gnosiologia e biologia. O senso de concretude atribuível ao operador existencial tem importância para a gnosiologia. Não é possível estudo adequado do problema fundamental do conhecimento sem o conteúdo biológico do ato de conhecer. Tem-se de afastar o logicismo: uma gnosiologia descomprometida com o zoológico do homem. Há que sondar as raízes biológicas o velho “quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur”. Modéstia no conhecimento porque tudo vai nele tingido por algo do sub! De algum modo sempre estamos sendo remexidos pela subjetividade...

22-b — Jeto, uma efetividade extramental. Contudo, por força do potencial de concretude, o operador existencial permite-nos afirmar a pré-“ex-sistência” do jeto. Não do jeto “mentado” (reconduzido às operações cerebrais), e sim do obtido quando o indivíduo prescindiu de si (“estou” conhecendo), e também da coisa enquanto ob-jetivada (“algo se antepara aqui”). E o jeto é assim libertado. Ou seja, o jeto não é nome, não é produto mental, mas sim a “coisa”, já incrustada com alguns dados físico-biológicos nos neurônios. A coisa é real, o jeto é real. Nem todo jeto é necessariamente universal, como erroneamente pensa a filosofia clássica.[25] “Pão-de-açúcar”, “Estado de São Paulo” etc. — são jetos individuais, não são universais. São contudo algo — real, extramental, inconfundível.

23. Valores. O operador emocional de valores mantém a subsistência biológica do indivíduo. Propicia interpretação valorativa do mundo: as conveniências favoráveis à vida, a síntese conhecer-sentir-atuar, as interpretações de percepções.

23-a — Valor é uma medida de necessidade. Travam-se discussões românticas sobre os valores. Em filosofia e em tentativa de se construir uma teoria geral do direito se fala em valores. Visto sem romantismo filosofante, em capítulo específico da ética (axiologia), valor é uma medida. Vale muito, ou vale pouco, o pedaço de bem-de-vida que satisfaz necessidades vitais — com intensidade maior ou menor no pedaço de espaço-tempo-energia vivenciado em determinado instante no nosso jorro de ser neste mundo. Assim, é bem possível que resida nesse “operador” a habilidade de se proceder à “colocação do jeto” na sua dimensão valorativa: mede emocionalmente o jeto, com medida similar à da sua capacidade de satisfazer necessidades. As principais necessidades humanas são preenchidas nos sete principais processos sociais de adaptação: Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Mas, há outros, de menor poder de alteração do mundo: linguagem, moda, boas maneiras, etiqueta etc. A linguagem tem papel especial porque a todos os demais processos sociais de adaptação ela serve, como a linguagem gestual (talvez a mais antiga), a oral, a escrita e outras muitas, hoje sobejamente estudadas.[26]

IV — MITOS E CRENÇAS[27]

24. Mito: linguagem e espírito. Há a compulsão humana de criar conto e crença, “story”, narrativa com elemento lendário na linguagem factual. Não são invenção de conteúdo alegórico. A formação de mito não é criação de mentira. É técnica comunicativa. A literalidade factual é instrumento imperfeito da experiência interior, que se vai comunicar. A experiência comunicada é verdadeira. Criação mítica é narrativa alegórica; ocupa-se da verdade de uma experiência do fundo do espírito, do interior da pessoa. Já o homem do Neanderthal (cerca de 200 mil anos atrás) imaginava algo metafísico, com as experiências post mortem — criação alegórica sobrenatural. Do seu interior despontavam as ações.

24-a — Estabilidade e ciência. Para a sociologia científica o interior mais profundo e estabilizante de atitudes e de ações é a vivência religiosa, inspiradora de comportamentos. Segue-se-lhe, em capacidade frenadora ou coordenadora de comportamentos, a Moral. Depois vem o da sensibilidade (Artes). O Direito aparece em seguida e, cada vez mais instáveis, Política e Economia. O processo científico é o mais alheio à capacidade frenadora, estabilizadora. A ciência, embora não de todo neutra, é o mais indicador, o menos passional desses sete processos. Donde a importância dela na vida social. O avanço da ciência não destrói a tipicidade dos outros sete “processus”. Ilumina-os de racionalidade maior. Confere às sociedades recursos para alcançar índice elevado de perspicácia na medida das coisas. Porque não elide os outros processos, a ciência não empobrece a natureza. Só conhecemos sociedade humana na natureza. Só nos é dado conhecimento de homem na natureza. Contribui a ciência, isto sim, para diminuir atritos, tornando a violência mais tolerável às exigências de bem-estar, no evolver mutante da história.

24-b — Ciência e método confiável para a sua construção. A atividade científica é tanto mais eficaz quanto mais se alinhar no método indutivo experimental. As críticas feitas ao Círculo de Viena, provenientes de Karl Popper, têm lá, também elas as suas dificuldades: a questão do cisne negro em relação à grande multidão dos cisnes brancos. A admissão de um cisne negro tem de passar por alguma observação. Nesta observação, concordando com Popper, estão implícitas generalizações escondidas. Se não se pode confiar na generalização dos cisnes brancos porque a observação pode falhar, também pode falhar, em muitos aspectos, a observação do cisne negro. Será inevitável o estado aporético? Seria merencória a conclusão, com o muro da aporia. [28]

24-c — Limites do conhecimento científico. A modéstia da ciência rompe o muro da aporia. Não temos absolutos em ciência. Vivemos de cálculos estatísticos. Bastam. O ser humano A é ser humano porque estatisticamente contém elementos que o fazem distinto do bruto; mas muito se contém nele de bruto. “Um” indivíduo é um indivíduo porque estatisticamente os seus elementos se impõem à mente para diferenciá-lo de “outro” indivíduo.

24-d — A certeza da ciência é provisória. Outra questão é a da inafastável provisoriedade das proposições da ciência. O mundo desconhecido, imenso, traz-nos incessantes surpresas. Por isso a ciência avança, por vezes com saltos e as mais das vezes com importantes retificações. Pense-se na série Galileu, Newton, Einstein, Pontes de Miranda — para ficarmos apenas na física.

24-e — Representação diferenciante. O bruto age apenas enquanto o estímulo atua nele, seja diretamente de fora, seja incrustado na memória dele. O homem nem sempre: é capaz de “representação”.[29] Faz aparecerem ex novo as sensações e os jetos. Dispõe também de memória, não, porém como mero instrumento de estimulação do instinto; o “novo” vem-nos também como depósito de informações, que podem combinar, com altíssima complexidade (coisa de que o bruto é incapaz). Por outra: não se observa no bruto a habilidade de “representação”, de que o homem dispõe. Por isso este é capaz de ciência, aquele não. O bruto não tem habilidade para suspender as linhas que lhe traçam a subjetividade — não põe entre parênteses o “sub", nem o “ob”. O bruto não contempla o “ser” nem colhe o jeto — vive na subjetividade entre objetos. O bruto não percebe o virtual porque não re-presenta. Só reage (age) se o estímulo se faz pre-sente. Não o ultrapassa pela re-apresentação, em mesclas complicadas como as de que se vale o homem ao colher em si algo do mundo, e ao construir teoria sobre ele (tecido de proposições afirmativas ou negativas).[30]

25. Ciência e descobertas. Há o fato social da ciência, esta capacidade humana de adaptação especificamente criativa. Com ela é que descobrem novos caminhos, novas soluções. Ela deriva desta necessidade típica: da necessidade de conhecer. Está aí o “imperativo cognitivo”, a natural propensão de analisar realidades extramentais, ou de lhe absorver a consistência. O “imperativo cognitivo” teve origens no medo da escuridão, de inimigos, do incógnito. Até hoje ele nos impele a descobertas. Cria também um tipo de ansiedade. Enquanto não chega o dado, somos levados a criar substitutivo; tal é o caso da descrição alegórica, o mito. Inspira também a busca de estruturas profundas, para organizarmos as experiências.

25-a — Solidariedade inata entre os processos sociais de adaptação. Toda função adaptativa é mista. As religiões contêm muito de moral,[31] de estética, de política etc. A moral atrai a criação de regras jurídicas, das quais se podem tornar conteúdo. A política infiltra-se na Religião. O direito organiza a vida econômica etc. Essa interconexão das sete classes de paixão forma o conjunto mais relevante para a vida individual, que só é na social. Nesse tecido dos processos sociais de adaptação os mais passionais influem no conhecimento científico. Não há falar-se em assepsia nem em absolutos em ciência.[32]

26. Medo e mística metafísica. Medo e morte foram fatores decisivos para o desenvolvimento do pensamento metafísico.

26-a — Papel da afetividade. A adaptação social serve-nos a à abertura ampla da afetividade, à consciência de uma vida com sentido no co-ser geral. Confere-nos a garantia de alguma segurança, e bens materiais mínimos, e uma organização relativamente equilibrada das forças do grupo. A tudo isso servem os saberes, sem nada destruir por si mesmos (ciência)

27. Manifestação cultural. Mito é manifestação cultural. Supõe alguma classe de linguagem, anterior ao homo sapiens. Linguagem é pressuposto de fala.

27-a — Linguagem e fala. Fala é produção de símbolos sonoros. Linguagem é produção de quaisquer símbolos, desde os gestuais até aos mentais. A linguagem é um passo biológico a mais, para além do conceito. O conceito é um passo para além da captação do jeto — “essência” segundo a velha Escolástica.

V — MANIFESTAÇÂO FÍSICA DO SIGNIFICADO[33]

28. Ritual, admiração, transcendência. Catedral: velas acesas, som do órgão, procissões, gestos. São ações simbólicas. Suscitam sentimentos de admiração, ou assombro. Podem levar à autotranscendência não especificamente religiosa mesmo na catedral, e retirar a pessoa do isolamento, da individualidade para um estado de unidade cientificamente indefinível. É uma transcendência natural: soltam-se os limites do Eu. Com essa soltura alarga-se a percepção de espaço-tempo. O ritual, esta repetição ritmada de ações, gera descargas — no sistema de quietude e no de incitamentos. Também o ritual leva a pessoa para além do seu círculo, se o rito contém elementos de encantamento. É um modo de transcender, também em cerimônias laicas. Antes de entrar no mundo da cultura, já existe o rito com suas raízes biológicas em boa parte do reino animal. Exemplo disto são a dança estimuladora da cópula, a demonstração de submissão dos mais fracos ao dominador do grupo. São exemplos; outros mais há.

28-a — Afetividade abscôndita. Cerimônias dessa natureza dão-se nos colegiados do Poder Legislativo e no Judiciário. Outro exemplo: os cumprimentos entre pessoas na vida cotidiana, nas libações, jantares etc. Algo surge aí que cria elos de comunidade. Afloram traços próprios de afetividade, embora se tente esconder esta. Por causa destas infantilidades de escondedura, e de outras muitas, os seres humanos somos engraçados. Achar-se engraçado, isto é, risível, é uma boa forma de se diminuir o orgulho, a empáfia, a altivez, a prepotência, o complexo de superioridade.

29. Rito e libertação. O rito funciona de vez em quando como elemento oposto à agressividade. Ele pode comunicar estados mentais, reduzir tensões, propiciar algum estado de segurança, pessoal ou grupal. Atua como expediente contrário às fronteiras do ego. Com isso o homem escapa para fora de si próprio e encontra, entreabertos, novos campos de vivência. O rito atua para a efetivação dos seus significados. Visto no funcionamento neurobiológico, percebe-se ser o rito uma mobilização de energias num esforço de escape, numa tentativa de libertar-se das fronteiras do Eu, um tentame de o homem se tornar mais livre no mundo.

30. A unificação eu-mundo. O rito, biologia e transcendência inter-relacionam-se. Atuam sobre o hipotálamo e sobre o sistema nervoso autônomo. Eventualmente sobre todo o restante do cérebro. Eles podem baixar a pressão sanguínea; o ritmo cardíaco diminui, a respiração é mais lenta, os níveis de cortisol cedem, criam-se condições favoráveis à imunidade. Na medida em que no Eu menos informes sensoriais entram, diminui a noção de limites com o resto do mundo: e anda-se então para a unificação do Eu com o Universo, com o Todo.

31. Por que se dilata o espírito. O espírito dilata-se no mundo porque os vestígios dos limites fronteiriços se apagam, ou se reduzem a estados mínimos. O Eu vai se diluindo no mundo. Com o fato de se apagarem os marcos de definição do Eu, franqueiam-se portas para a consecução de estado unitário “poderosamente serenizante”, “extático”, “extremamente pacificador”, “alegre”. É o que dizem os místicos. Ocasionalmente as pessoas descrevem também emoções negativas como o medo ou a raiva.

32. Espírito e visceralidade. A quietude permite a ampliação do espírito, normalmente bloqueado pelos informes biológicos que bombardeiam o homem. Vale dizer, a emoção religiosa vai até a raízes antropológicas muito antigas, com milhares de anos da evolução. Uma idéia com sentido de vida pode converter-se em experiência visceral. Aí está a causa de o ritual ter eficiência de mudar atitudes, até visceralmente.

32-a — Santos e heróis. Talvez esta seja a explicação das experiências heróicas de santos, até ao martírio alegre. Essa biologização da experiência religiosa, antropologicamente sintetizada, faz holístico um homem profundamente normal, sem neurotização da subjetividade.[34] Entre outras atitudes, que o ritual assim compreendido suscita, estão os sentimentos de amor e misericórdia, entendendo-se o primeiro como o querer o bem de alguém, e produzi-lo efetivamente em seu favor. Nos heróis da Igreja Católica estes sentimentos são hauridos da experiência profunda com a pessoa e a mensagem efetiva, concreta, de Jesus Cristo.[35]

33. Rito eucarístico. A eucaristia da Igreja Católica é um exemplo típico de ritual — a idéia de união sintetiza-se com a sensação visceral, corpórea.

33-a — Comunhão visceral. Dita síntese entre idéia e visceralidade corpórea confere ao homem que crê, e se decide a viver a eucaristia (=comunhão”), uma consciência de sua proximidade com o amor unificante e abissal de Deus através de Jesus Cristo. Em santos católicos não é incomum a ocorrência de emoções profundas na participação da eucaristia (=“comunhão”).

34. Budismo e totalidade. A meditação budista, quando induz ao controle do egoísmo e dos apegos, é também um ritual típico. Ele é capaz de produzir consciência de unificação do humano com a totalidade da existência (“oneness of existence”).

34-a — A experiência do “Sein”. Essa consciência sutilmente sensível de unidade de todo o existente (“oneness of existence”) parece ser algo assemelhado com a experiência do “Sein” de M. Heidegger.[36]

34-b — Ainda a adaptação. Dados os resultados benéficos do rito (no simpático, parassimpático e límbico), parecem mesmo serem eles na busca da adaptação neuroantropológica.

35. Radicalidade. A necessidade de rituais incrusta-se em patamares mais profundos que as necessidades culturais isoladas, cada uma de per si: ela se prende às operações biológicas do cérebro (neurônios).

35-a — Mais radical. Surge uma pergunta mais radical: haverá algo não cerebral, a atuar no cérebro, que lhe faz mover os neurônios?

36. Maturidade. O poder do rito é tanto maior quanto mais ajustada for a síntese entre o conteúdo cultural significativo e a função neurológica sadia. Quando se dá o desejado ajuste entre significação e função neurológica sadia, a pessoa chega a estado desejável de maturidade interior, emocional e espiritual. A conexão inicial acha-se na atividade física. Mostram os testes, contudo, que também o pensamento pode produzir resultado quase idêntico.

36-a — A linguagem sem fala. A atividade física, em que o rito se comunica, é a linguagem gestual. A produção de incitamento ou de quietude revela o desencadeamento emocional involuntário que a linguagem gestual pode produzir como atividade instrumental. Quer dizer, o rito pode ser um valor para a vida. Sendo ele uma parcela da vivência religiosa, logo se percebe que a religião sabiamente administrada no interior da pessoa, não é destrutiva. Por outra: ciência e religião podem e devem conviver na existência humana porque ambas são vivências co-naturais do homem no cosmos.

37. Mística e integração pessoal. A experiência mística, esse estado de integração unificadora e absorção espiritual, constitui os estados unitários profundos.[37]

37-a — O recuo da subjetividade. A elevação espiritual é perceptível porque na experiência mística o ser humano se liberta da rigidez imposta pelo muro da sua esfera subjetiva. A consciência do quase desaparecimento de limites dá-se porque sobrevém a quase não-consciência dos marcos sensoriais da individualidade; a atuação da individualidade, antes prevalente, é agora reduzida a quase nada.

37-b — Na ciência e nos saberes. Na consecução de saberes o processo é semelhante — o sub livra-se de si, atendendo aos ob’s e, uma vez satisfeito de observar por ser bastante (ou pensar sê-lo), desvencilha-se dele(s) e deixa-se encher da coisa mesma dos jorros, de que colhe o jeto, “essência”. Conhecer é “gnoscere”, que nos vem de γη (terra) e de γνειν (gerar na terra). Não é coisa própria de uma intelectualidade asséptica (=sem “germes cognitivos”). Quem gera informes, saberes, este saboreia-os no seu tanto, de modo que já aí a natureza biológica põe algo de si ao gerar. Conseguir ciência é apalpar o gosto de gerar si um jorro do Universo, tecnicamente colhido dele como jeto.

VI — A BIOLOGIA DA TRANSCENDÊNCIA[38]

38. O que é misticismo. Na biologia da transcendência cumpre definir-se o “misticismo”: é uma relação consciente com algo absoluto. Nada tem de sugestionabilidade, superstição, pieguice, confusão sentimental. Os exames neurológicos não abonam estas respostas. Na experiência mística notam-se algumas características: esfuma-se a consciência de espaço-tempo e o conhecimento é mais intuitivo que racional-discursivo. Surge freqüentemente o convite à sacralidade ou santidade com um novo sentido nuclear, que as coisas passam a ter no Universo. Aparece o enlevo, iluminação interior compreensiva da realidade com um sentimento de final liberdade.[39] Há a convicção interna de estar a pessoa situada acima da só existência material, em união com o absoluto. Afrouxam-se as amarras da mente consciente, libertando o espírito de muitas limitações passionais e ilusões do ego. Este passa a estar unificado dentro de uma unidade totalizadora.

39. Retirada do ego. Tais surtos de libertação são as notações que, escrevendo, tiveram místicos de diferentes tendências religiosas, como o Sufi Mansur, o Rabino Eleazar (o ego é como que “aniquilado”), Lao-Tse, Meister Eckhart. Trechos de livros chineses e hindus apontam para o mesmo sentido.

39-a — Harmonia mística e conhecimento. Quem passa pela experiência mística identifica-se com essa totalidade harmonizadora e se solta da lembrança da sua própria existência pessoal. Analogamente se dá no ato mesmo estar conhecendo, ao soltar o “sub" e ao depurar o “ob”.

40. A experiência grega. O objetivo da mística grega era ganhar a liberdade sobre a distração, a multiplicidade e a perda do ego; a sua experiência tem clara afinidade com o que foi produzido na experiência de contemplativos de religiões não teístas.

41. Uma transfiguração. É a libertação, com que o místico se sobrepõe ao mundo passional constritor. Arrogância, cupidez, inveja, tristeza, raiva e outros vícios capitais são amarras do ego. A libertação, ao contrário, fá-lo transcender a si próprio, de modo que “se torna deificado como Jesus no Monte Tabor, transfigurado pelas ‘energias’ divinas” (K. Armstrong).[40] Deus é absorvido na interioridade do Eu, e é percebido como realidade inefável. A pessoa entra numa situação original de totalidade unitiva, algo anterior a qualquer linguagem ou aprendizado.[41]

41-a — A objetivação de Deus. Para a gnosiologia científica é sempre uma questão árdua a da existência extramental do que chamamos Deus. Desde que colocamos “Deus” como algo a ser pensado, ele é Objeto. A teoria do conhecimento põe-se em campo. Se a procura é pela “essência” do indefinível, ergue-se uma aporia, gnosiologicamente intransponível por ora. Tudo quanto sabemos pela ciência, só em relações é que o sabemos. O conhecimento de Deus é um conhecimento humano — “quidquid recipitur, ad modum recipientis recipitur”. Mesmo a experiência mística (não científica) é uma vivência humana. Altera-se enriquecedoramente para quem a pratica diuturnamente, dizem os expertos. Por sua natureza, contudo, é inesgotável. O “absoluto” entra na consciência de forma humana. Sem que se possa esgotar, por ser uma experiência de infinito vivida pelo finito...

42. A saúde mental na vivência mística. A mística é vivida em nível de saúde mental superior à da maioria das pessoas. O bem-estar externa-se em relações interpessoais harmoniosas, correta auto-estima, baixo nível de ansiedade,[42] clareza da identidade pessoal, interesse pelo bem-estar dos outros, valorização da vida, acuidade mental geral, alegria, serenidade, completude interior, afetividade. Quando psicótica, traz a flux um Deus irritado e reprovador.[43]

43. A mística difunde-se pela sociedade. O dado neurológico mostra que a mística pode ser vivida por todo tipo de pessoa, até com freqüência. Todos têm potencial de transcender o Eu. A transcendência dá-se freqüentemente ao se ouvir música, ao se sentir admiração por belezas naturais, na leitura de poemas, no caminhar pelos bosques de outono, no embalar uma criança, no praticar alguns tipos de oração ritmada. O homem sente-se a si como pertencente a algo maior do que o seu Eu. A função neurológica responsável está na área de orientação cerebral — opera ensurdecendo, privando-se da entrada de mais impulsos neurais.

43-a — Novamente mística e ciência. Isso faz diminuir grandemente o fluxo de informações que ordinariamente vêm de fora e entram no “sub". Essa área de orientação do cérebro cala-se. Nesse silêncio dilata-se o espírito, e mais se expande quando afasta a noção de a coisa ser sua, e de ela estar ante ele (em vez de estar no mundo, com independência). Ter-se-á chegado então ao silêncio do “ob”.

44. “Continuum unitário”. A experiência do “continuum unitário” consiste na vivência de decrescerem as sensações de separação, divisão,[44] de isolamento do ser com o mundo. Tudo isto de modo habitual. É um símile da auto-transcendência, que o ritual provoca.

44-a — Poesia e mística filosófica existencial. A experiência poética, seja a de enlevo lírico, seja a de outra penetrante percepção estética, é provável que se situe nesse “continuum unitário”. Parece também ser aí que se aloja a experiência heideggeriana, partilhadas por tantos metafísicos e poetas, tocantemente a percepção do Sein.[45]

45. Contemplação. Quando o ensurdecimento do fluxo de entradas sensoriais é habitual e intensa, o místico atinge um modo-de-ser, e a sua união espiritual fá-lo sair de si mesmo (=ex-stasis). Diferentes métodos são empregados historicamente pelos místicos no fito de se libertarem das divisas que lhes cercam o ego, e conseguirem o silêncio mental. Assim: meditação profunda (=máximo possível de potencialidade mental); extinção de focos cotidianos; afastamento de todo o pensar; contemplação dos mistérios sagrados escriturais; decidida abertura à possibilidade de Deus existir “objetivamente”.[46]

45-a — O abandono à afetividade transcendente. Na experiência católica, como nos exercícios espirituais de Inácio de Loyola, vários são os métodos empregados. Um deles: na oração abandona-se o espírito ao seio do Grande Amor. [47]

46. Unio mystica. A contemplação continuada gera descargas na área de atenção, que atingem o hipotálamo. O lado esquerdo do cérebro perde muito do seu poder diferenciador do subjeto. O lado direito concentra-se no alvo que o sujeito encontrou. O alvo passa a solidificar-se; aprofunda-se como realidade extramental não inventada. Com o lado esquerdo a apagar divisas da subjetividade, o ser humano entra na “unio mystica”. Situação afetiva da alma com o ser amado.

47. Outrem como Ser Absoluto Unitário. O último estádio de transcendência dá-se na imersão no Ser Absoluto Unitário: apaga-se a idéia de Outrem, vive-se a recíproca dissolução de identidades. Já não se vive o “este” nem o “aquele”. Apesar de raro, este topo da experiência não seria possível se o cérebro não tivesse atingido a sua conformação neurológica atual.

47-a — Perenidade da ciência e da presença de Deus. A história do homem à medida que evolveu, fez dele um ser mais capaz da experiência mística sem prejuízo da experiência científica. Salvo algum hipotético caso inesperado, catastrófico, de mudança terráquea geral, que viesse a atingir toda a vida animal, não parecem extinguíveis no ínterim nem a idéia de Deus nem o progresso na ciência. (contra: Nietsche e Freud etc.).[48]

48. Transcendência. Bloqueio de informações exteriores deixa o hipotálamo em estado de alargada quietude e descanso. A conseqüência é a percepção de liberdade interior. Chegando o psiquismo ao estado de quietude máxima, entra em atemporalidade e anespacialidade. Ganha a sensação de infinito, com que se funde a subjetividade.[49] Essa unificação absorvedora dispensa palavra, sensação, discurso. Assim liberto, o subjeto liga-se ao Ser, sem haver nisso o discreto, um separatório de seres. Perdem seu vigor habitual os limites da pessoa com o Universo restante, ficando a mente no seu estado “puro” (= sem “Eu”), com consciência extra-subjetiva e extra-objetiva em estado unitário. É um recolher-se no Unitário Absoluto, Nirvana, Tao, Brahma-Atman, transcendência para o Absoluto. Do ponto de vista zoológico a estrutura cerebral está buscando a sobrevivência. Mas nessa própria estrutura, originalmente zoológica, dá-se a experiência efetiva-cognitiva de se estar imerso no Ser Absoluto Unitário.

48-a — O determinismo transcendental. A biologia, vista nas relações sociais, mostra que o homem age segundo necessidades físicas e psíquicas, materiais e culturais. Nosso sistema neural aponta para isto: o homem precisa das experiências metafísicas e religiosas. Ao menos em termos estatísticos, a maioria da humanidade precisa disso. Nem a experiência metafísica é criação subjetiva (nesta o homem vê-se, espelha-se — “speculum”), nem a experiência religiosa subsiste sem alguma causação exterior (nesta o homem saboreia Outrem que não ele próprio).

48-b — Heteropoiésis. Assim como na música, ou na poesia, algo vindo de fora da mente causa a movimentação dos neurônios, assim também na experiência, religiosa ligada ao Ser Absoluto Unitário: não há falar-se aí em uma autonomia cerebral criadora, autopoiética, sem atuação de algo diverso dos próprios neurônios.

48-c — O erro. Nessas vivências pode haver erro, como recordam as pessoas de experiência. De modo que nem na experiência metafísica (com o “ser”) nem na de imersão no Ser Absoluto Unitário, está o homem dispensado de verificar o acontecido. Passada vivência, traduzida ela de algum modo em proposições, há de encontrar regras para conferir os resultados da sua experiência com os dos demais saberes. Fora aí surgem riscos de ilusão. Passa-se o mesmo com o conhecimento científico, tocado por paixões as mais diversas.

48-d — Naturalidade do método científico positivo. O método científico, que é o indutivo experimental, é co-natural à comprovação legitimadora de toda vivência. Há de aplicar-se em todos os processos sociais de adaptação. Também a experiência religiosa, posto eleve o homem a situações mais raras de experiência, insere-se no processo adaptativo do mundo. A religião é, também ela, um processo social de adaptação.

49. Lei da economia. É inexplicável que evolução de milhões de anos tivesse produzido superfluamente aparelhagem sadia de experiência transcendental. Essa presunção contraria a lei da economia: tudo na natureza[50] parece dar-se pela lei do menor esforço.

49-a — Alcance, objetivo e fim. Há sempre “ação” com alcance no físico, e objetivo no biológico. Além do alcance, atributo do mundo físico, e além do objetivo próprio do zoológico, no homem temos mais. Ele é físico e biológico. Com o resto da natureza humana ele tem de comum o alcance e o objetivo. E apresenta mais um “plus”: por ser capaz de produzir “autopoiesis” de representações, o homem é a parte da natureza que programa. Ele se coloca fins a si próprio. É também o único ser vivo conhecido capaz de buscar um jorro do mundo fora de si próprio, e de fundir-se com ele. Não se acaba de entender que pudesse ser puramente mental, essa busca sem objeto, contrária a lei da economia ou unideterminação.[51]

50. Origem zoológica da vida mística. A engenharia básica de experiência mística parece ter origens na sexualidade genital. Leva à união, fusão, satisfação final do desejo. Entretanto a genitalidade resulta mais da sensação táctil, ao passo que a unificação com o Absoluto Unitário, não. Na unificação com o Absoluto Unitário tem-se a mediação simultânea de estruturas cognitivas. Estão situadas em patamar anímico acima da genitalidade táctil. Não admira: também o vôo da águia não deixa de ser alto; vê horizontes insuspeitados, começado embora o vôo no rastejar de milhares de anos. Jaz o potencial latejante na estrutura dos começos, mas a elevação do “vôo do homem”, iniciado nos mecanismos zoológicos, é realidade extramental, provocada por algo exterior ao sujeito. Esse vôo saboreia o extramental, experimenta algo “verdadeiro”.[52]

50-a — Algumas conclusões. As pesquisas dos neurologistas permitem algumas conclusões provisórias: (a) pode subsistir mente sem ego (=consciência de individualidade); (b) pode haver tomada de consciência sem atuação localizada do ponto “Eu”; (c) isto anda paralelo com a gnosiologia: colhe-se o “jeto” quando se soltam as amarras ou limitações individualizantes do sub e do ego (é a operação de “colocar entre parênteses”); (d) quando soltos os parênteses, diminuem, até ao apagamento temporário, os traços limitadores do sujeito cognoscente, e do jorro entitativo com que se funde; (e) na experiência religiosa translativa (transcendente) tem-se a totalidade amorosa. É a “unio mystica”.

VII — ORIGENS DA RELIGIOSIDADE[53]

51. Vida mística é da “condição humana”. Porque persiste no homem a idéia de Deus? Certo, a base orgânica da experiência transcendental não é coeva do aparecimento do ser vivo. Veio depois de longas etapas da evolução, no lento evolver dos processos sociais de adaptação. Mas surgiu porque o homem precisa dessa experiência. Sem ela a adaptação social (o ajeitarmo-nos dentro da natureza para sobreviver e bem viver) seria insuficiente para a vida. A experiência transcendental, sem sacralidade ou com ela, faz parte da “condição humana”, pois. Ela nutre no homem o desejo de viver. A experiência transcendental é contra a morte. Na básica contradição “vida-extinção”, a busca da fonte de imortalidade fortalece as pessoas e os grupos de pessoas.

51-a — Sem fuga. A autêntica experiência de Deus não leva nem a uma fuga da vida pela morte, nem ao desespero de vida diante da morte. Antes, ela alevanta o espírito na busca serena de um amor que é ao mesmo tempo sem limite e de interesse individual muito acima do mundo só zoológico.

52. Sem invenção da ratio. “Deus” não é racionalmente inventado. Resulta, sim, de uma descoberta mediante a perspectiva de intimidade do espírito com algo de que se adquire consciência sadia. A realidade experimentada é nela tão real, ou mais real, que a existência sensorial. Ela alarga a vivência com plenitude de bem-estar. Nem é uma ex-sistência obtida em processo dedutivo. Igualmente, porém, parecer ser impossível descartar Deus por métodos de racionalidade: Ele está alojado em regiões mais profundas, poderosas, mais radicais que a razão.[54] Por outra: Deus ocupa espaço “ôntico” descoberto, “apreendido”, ontologicamente vivido dentro de um campo supra-racional. Sem irracionalidade. Ocasiões surgem em que essa experiência, de certo modo mais alta que a da ciência, resulta da atuação espontânea do espírito. Não se lhe percebem por vezes nem antecedente, nem pressuposto, nem causa. Há místicos que se referem a essa espontaneidade da experiência como a presença repentina de um Ser infinitamente amoroso, que “invade” o íntimo do ser amado[55].

53. Interesse; persistência. A experiência religiosa primitiva era muito relacionada com o interesse de proteção. Daí os muitos cultos de oblação, traduzidos historicamente em crenças, tradições, adesão. Também atualmente em muitos grupos e lugares, sobretudo entre aborígenes e indígenas. Entretanto Deus não se torna obsoleto por causa desses níveis zoológicos primitivos, em parte persistentes. Parece errar quem pensa no desaparecimento do conceito de Deus, e da experiência dele, por crescer socialmente o elemento científico. Vista a questão na neurologia, a dualidade não apresenta contradição.[56] O processo social de adaptação pela ciência mais se localiza na parte esquerda do cérebro. O da religião ocupa mais o lado direito. A racionalidade não destrói a sensibilidade atuante na religião, na moral, na estética. Falta base para se afirmar que a experiência de Deus está fadada à extinção histórica. Ou que ela sobrará apenas para gentes de cultura inferior. Passar pela experiência religiosa, ainda quando muito freqüente, é fenômeno normal, embora algumas pessoas tenham habilidade maior que outras para entrar no dito estado unitário.

VIII — MAIS REAL QUE O REAL: EM BUSCA DO ABSOLUTO[57]

54. Sistema científico atual. A ciência descobre situações em que o mundo parece extremamente bizarro e inexplicável. Para ela, contudo, por ora não são reais os espaços estranhos à mensurabilidade.

54-a — Estranho mundo. Publicações dos últimos 25 anos freqüentemente atestam estados de surpresa: o mundo conhecido parece ainda longe de ser o que vai ser visto pela ciência com o correr do tempo. Para o método indutivo-experimental, enraizadamente apegado à observação, ao cálculo, à generalização provisória, ao esforço pela confirmação das proposições originadas na empiria, nem a observação nem a experimentação se podem limitar a qualquer postura apriorística. Não há “modelos” a descartar. Para a ciência do-que-está-posto, conhecimento do que pode ser alvo da inteligência ou do instinto, a experiência mística não é um dado a rejeitar. Nem como algo esdrúxulo nem como alguma tolice a mais engendrada pela credulidade ancestral. A religiosidade pode ser testada e experimentada. A espiritualidade não é estranha à ciência positiva. O dado místico, também ele, conta como tal. É algo capaz de ser testável, de ser um alvo possível de falseabilidade lógica.

55. Lógica, número, matéria-energia. A realidade espiritual não se confunde com os dados comumente logicizados e matematizados. Tampouco o conteúdo transcendental é produto puramente elocubrado, um conteúdo só mentado. Esse conteúdo tem consistência “ôntica”, com persistência presente fora dos circuitos cerebrais. Portanto: é plausível e respeitável do ponto da vista das ciências. Nem toda a realidade é cientificamente redutível ao conhecido de nós homens como matéria, ou como só energia física. Boas inteligências do Oriente, milênios atrás, já atestam isso.[58]

55-a — Uma nova ontologia. Existe ainda dificuldade em se distinguirem claramente “matéria” e “espírito”. As duas realidades convivem, vivenciadas pelo ser humano como pólo e contrapólo de uma unidade mais plena. Não há, todavia, como reduzir um desses pólos ao outro. Semelhantemente, é impossível reduzir tudo ao ente lógico, ou ao matemático. O ente matemático é real, mas contém algo ausente no lógico. Depois, as coisas físicas: é impossível reduzi-las ao só número, ou ao só jeto lógico. Mais complexas são as relações do ser-vivo: nem tudo é aí redutível, na ciência contemporânea, às pulsões zoológicas — o biológico é mais que isto. É psiqué. Acrescem as espessíssimas relações sociológicas: todos os jetos anteriores se alojam nelas. Com a neurociência abre-se novo campo experiencial, a superar o sociológico tradicional: é o campo da onticidade do Transcendente-Ilimitado-Amor (Ser Absoluto Unitário). Se, por um lado, isto não for comprovável de algum modo pela ciência, decerto a ciência, por outro lado, não tem como negar validamente o fenômeno. Fica então sem expectativa que um dia Deus desapareça de vez na história humana futura. É a resposta à indagação sobre “Why God won’t go away”.

55-b — Novamente os processos sociais de adaptação. O estudo das raízes fìsico-biológicas da sociologia faz imperiosa a distinção entre religião, moral, artes etc. Nas relações religiosas estão as percepções mais profundamente radicadas, de que se originam princípios normativos da vida. Em grau menos profundo, mas ainda penetrante, situam-se as relações morais. Seguem-se ao depois, interações humanas geradas pelo senso estético. São igualmente processos de adaptação de superior capacidade estabilizadora porque vão também a fundo na psicologia humana. Seguem-se, decrescentemente, direito, política e economia. A ciência é a vivência social mais indiferente às energias – se frenadoras, ou se desestabilizadoras, isto é, as mais conservadoras e, ao contrário, as propulsoras de mudanças sociais.

Agora, com o mínimo de sub, e de ob’s (a Ciência: esta é a dádiva com que nos premia a ciência, o processo de interação social com menos impacto da subjetividade. Com o método indutivo-experimental descobrem-se as proposições indicativas mais puramente possíveis. É o tipo de convivência humana menos passional em si mesma. São da ciência as proposições menos atingidas pelos outros processos mais passionais de adaptação, embora não haja proposição científica pura. É, aliás, por não haver ciência pura, asséptica, que o princípio da relatividade tem envergadura ainda maior que o previsto na relatividade geral de Einstein. Também o nosso cérebro se situa no jorro de jatos do ambiente. Move-se, também ele, tangido por forças físicas, biológicas e sociológicas. Padece de modificações e alterações entre um instante e outro. Razão e paixões movimentam-se na natureza. A biologia atua em tudo isto, tão próprio do ser humano.[59]

56. Raspagem dos limites. Na mística o estado de consciência “pura” percebe uma totalidade unificada, sem definição de forma, de começo e de fim. Numa palavra, o ser humano tem uma consciência sem limites, de si e das coisas: nem percebe os do ego nem os do mundo restante.

56-a — O “Sein”. Na filosofia da existência, parece que em M. Heidegger a percepção do ser é a percepção mesma desta realidade fundamental: o espírito que se percebe como consciência pura. Contempla sobretudo o sub. Mas,contempla-se sem poder libertar-se a si próprio da poderosa eficiência dos processos sociais de adaptação (Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência). Não tem como chegar até ao ponto da translação de si ao Absoluto[60].

57. O “real” e o “mais real”. Na vivência de místicos o Ser Absoluto Unitário é uma realidade mais real que a descortinada pelo senso comum. Dizem Einstein e Schrödinger que a experiência do senso comum não atinge realidades tão consistentes quanto as descobertas na ciência. A existência individual, comparada com as existências do Universo todo, equipara-se a uma prisão (Einstein) na consistência significativa do Universo.[61] Os seres humanos somos um-com-a-Terra (Schrödinger). Definir “realidade” é difícil, mas a existência (ex-sistere) de uma “realidade” superior absoluta é tão racional quanto a do mundo sensível”.[62]

57-a — O que é, e como é, “algo extramental”? Certa “realidade”, algo extramental, pode ser percebida como mais consistente que outra. A consistência depende do peso dos elementos que se impõem à inteligência como elementos distintos dela. Nesse grau de consistência está a dificuldade em se dizer se alguma coisa é tão igualmente real como outra coisa. A vantagem do método indutivo-experimental sobreleva: a contactuação com algo exógeno pode revelar elementos mais complexos e mais densos ou menos complexos e menos densos que a contactuação com outro ser. Pela experimentação a inteligência topa uma realidade “superiormente real” em relação a outra. Pode ocorrer que se tenha de convencer da ex-sistencia de uma realidade “superiormente real”, até a ilimitadamente “rica” e presente. Neste aspecto as experiências de laboratório intrigam: o ser unitário absoluto assoma à consciência muito mais real que os entes do mundo sensível. Afirmação grave para a ciência positiva.

58. Fusão de dilemas. A existência do ser absoluto unitário, além de “razoável”, tem outra vantagem, teórica: sua unicidade indiferenciada, se admitida, dá solução a dilemas humanos em que os opostos rivalizam sem explicação suficiente: espírito-matéria, bem-mal, vida-morte. Na mística, estudada pela neurologia, a matéria e a mente são percebidas numa só e mesma coisa.

58-a — Uma fusão análoga, menor. Esses dados coincidem em parte com a experiência do amor homem-mulher, quando profundo, ou seja, quando levado a estádio de larga compreensão e aceitação. Os elementos de fusão dos opostos surgem, seja na íntima aproximação das almas como na total união dos corpos. Forma-se alta percepção de unidade, em circuito de afetividade das mais elevadas.

58-b — No ato cognitivo. Algo semelhante é analisável na fenomenologia do ato cognitivo. Retirados os limites que cercam a subjetividade (quando o “sub" é colocado entre parênteses) e feita a ablação da relação “confronto com a coisa” (quando o cognoscente se livra da técnica preensiva do “ob”) —, neste ponto dá-se a fusão entre a coisa e o cognoscente. É a captação do jeto: vindo de fora, ele penetra no cognoscente. Penetra fisicamente no cognoscente,[63] porque o espírito está “substancialmente” unido ao corpo. Conhecer é necessariamente ato psicológico e corpóreo. Bem entendida, vale a máxima da velha escolástica: “nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”.[64]

58-c — Biologia. A dificuldade maior está nesse “prius” (sem que “antes” não tenha estado no mundo dos sentidos). Travam-se aí discussões clássicas, que se acentuaram depois de Kant. A questão tem de ser posta em termos biológicos, para se poder falar em anterioridade da sensação. O filósofo, em geral, refusa essa análise, que pressupõe rigorosa descrição de fatos. Esse trato com as ciências particulares parece-lhe um elemento estranho, trabalho dispensável, coisa nada digna das “altas e nobres” elucubrações filosóficas de gente culta...[65]

IX — PORQUE DEUS NÃO VAI EMBORA?[66]

59. Metáfora? Mitologia? Na expressão “Why God won’t go away” (=por que Deus não vai embora?), “Deus” é uma metáfora. Note-se, porém, que toda ciência vem igualmente carregada de mitologia. Os estudiosos orientais contemplativos têm Deus como algo para além de toda forma, descrição, ou palavra. Não se pode a rigor falar sobre Deus; o Deus compreensível não poderia ser Deus. Sendo individual, separado da natureza, Deus ficaria reduzido a um “ídolo surdo”.

O inteligível nele, não é ele.[67] “Infinito” porém (= Ein-sof, na Kabala), e indiferenciação absoluta, e unicidade imutável, Ele fundamenta todo o existir. Assim, a mística é a ciência das coisas últimas da união com o absoluto. Místico é quem realiza essa união, não quem discorre sobre ela.

59-a — Mística assentada escrituralmente e mística na tradição oral. O místico tem grande dificuldade em se referir ao ser absoluto unitário. Não encontra símbolos lingüísticos capazes de corresponder à experiência vivida. Os orientais, diferentemente dos ocidentais, não levam em conta qualquer revelação histórica, ou base documental. Como o caso ocidental das escrituras neotestamentárias[68].

59-b — O jeto “Deus”. Há aí alguma preensão do jeto (“essência”), mas, diferentemente dos demais jetos, não se chega ao conceito, nem ao juízo, nem pois ao raciocínio e ao discurso. Nada disso se alcança, a não ser por figurações (a velha Escolástica fala do conhecimento analógico do divino). Dizer que “Deus” é apenas mais um símbolo não é ceticismo — ele é símbolo de uma realidade que transcende a produção semiótica. O “conhecimento”, aí, é contactuação com “algo-não-relacional”. A experiência interior percebe-o como real, mas sem poder vesti-lo com expressividade capaz de conceituá-lo. Funde-se nEle o percipiente. É tudo.

60. “Nada”. A experiência com o Ser Absoluto Unitário é tão distinta do senso comum, e tão diversa da ciência atual, que é traduzível como Nada: não é nada parecido ao que as coisas conhecidas são. Toda a concepção de Deus é ínfima. Como um raio de sol em relação ao Sol.

60-a — Imagem ilustrativa. A foto que tenhamos de uma galáxia situada a seis mil anos-luz da Terra, não é a galáxia mesma, mas algo nos informa sobre ela. Um fóton da luz da galáxia não é ela, mas é dela.

61. Ídolo, conflito e superação. Um Deus personalizado pode transformar-se em imagem da nossa imagem, estruturada nas nossas contexturas históricas. É freqüente o conflito ao persistirem os grupos humanos em criação imaginativa. Mas, o mesmo cérebro que produz egocentrismo, provê-nos de “maquinismos de transcendência”. A dimensão prática da experiência mística possibilita a re-arrumação do potencial interior do indivíduo. E também de grupos. A energia interior de pessoas e de grupos pode promover o bem comum, sem divisões sociais.[69]

62. Dimensão afetiva e unidade. Os momentos da transcendência acendem lampejos de dimensão efetiva, e nisso as religiões refletem certa unidade neurológica historicamente construída. Esses momentos também apontam para uma realidade absoluta profunda. Uma negação acrítica a respeito dela contraria os métodos da ciência.

62-a — Do jato colhe-se o jeto.[70] Esses lampejos são jatos, os “quase infinitos” que no seu conjunto formam o universo, onde cada pessoa nasce, é e se move. A captação correta dos jatos, no seu mover-se contínuo, traz-nos os “jetos”. O esforço pela depuração da gnosiologia procura os jatos colhidos em todas as ciências. Todas, dissemos. A ciência positiva (em que a gnosiologia se insere) nenhum dado exclui de antemão. Antes, com os seus métodos rigorosos, leva em conta quaisquer fontes empíricas. Induzir é a atividade primeira. Formula bem modestamente as suas proposições, disposta a tê-las como provisórias, retificáveis indefinidamente. Confia, mas confia criticamente porque as submete a testes de confirmação, com todo meio disponível ao psiquismo. Experimentação é o esforço dialético de procurar falsear o conteúdo da proposição formulada: enquanto o dado extramental (a rigor, “mais extramental”) persistir, é havido como “consistente”.[71]

62-b — Interpretação do dogma. Desconfia de proposições absolutas a ciência positiva. Mas, não lhe recusa possibilidade. Assim, o “dogma” é proposição que pode ser inserida na doutrina de uma religião qualquer. A interpretação mítica do dogma não vai contra a experiência mística, nem contra a ciência. A “verdade” mítica, a “proposição verdadeira” do dogma, não está na sua linguagem, mas sim no sentido que a proposição sobre o dogma possa ter ao ser conferida com os fatos da vida. Dogmas diferentes podem conviver na mesma oikia religiosa.[72]

63. Ciência e metáfora. Na física, a realidade material, é mais escorregadia do que parece ao senso comum. Einstein viu isto com clareza. O que a ciência pode dar-nos é uma descrição metafórica do real. Toda construção científica, ainda a mais rigorosa, é também mitológica: ela coleta historietas explanatórias que parecem explicação de mistérios da existência. Tal construção ajuda-nos a enfrentar os desafios de viver. Não há falar-se de uma mente humana capaz de observações puramente “objetivas”. Há sempre a subjetividade do cérebro: com ele, só com ele, vemos nós o “real-fora-de-nós”. Idem quanto às percepções básicas da sensação, onde o conhecimento se inicia.

63-a — A coisa em si de Kant. Parece universalmente aceita esta proposição: o dado é, já por si, construído pelos instrumentos do instinto-inteligência (=homem). Se estivermos à busca do “νοούμενoν”, da “Ding an sich” (coisa em si) de Kant (καθαυτó), então estaremos à cata de mais um alvo “sem-sentido” para o conhecimento humano nesta quadra da história. O noumenon (νοούμενoν) seria a realidade pura, livre do nosso espírito. Ora bem, isto nós não podemos saber o que seja. Nem esta frase “o que seja” tem sentido. Ou então é contraditória, pois a “coisa em si” seria a coisa sem o eu, mas como é ela conhecida pelo eu.

63-b — A força do sub decresce na ciência. Os nossos conceitos vão, sim, livrando-se das linhas divisórias subjetivas. Eles alcançam elementos muito próximos ao mundo extramental, achegando-se a algumas estruturas mais livres das funções intracranianas, que são projetadas biologicamente para fora. Mas, essas estruturas serão uma peripécia tresloucada, sem base “ontológica”, se a proposição enunciadora delas não for falseável (=refutável), como mostra K. Popper, quando lhe forem aplicados os testes experimentais de toda e qualquer natureza.[73]

Com menos subjetividade há o avançar em conhecimento, o progresso da ciência. O homem torna-se menos carregado de emanações só mentais, fica mais enriquecido das percepções de estruturas extramentais depuradas (consegue pensar com menos ob’s).

64. Destinados a resquícios da subjetividade. Um cérebro inteiramente livre, escapo a toda subjetividade, não é um feito possível. Mas ele pode captar realidades de modo cada vez menos carregadas dos influxos e dos afluxos cerebrais. Fundamo-nos em algumas funções básicas como esta proposição, bem discutível, assim enunciada: “é mais científica a realidade que se pode experimentar e verificar com medidas”; “o que não é analisável pelos métodos tradicionais da matemática e da física, não é real”.

64-a — Ciência positiva e positivismo.[74] Muitos filósofos pensam que o método indutivo-experimental é “positivista. Não é. “Científico positivo” pouco tem a ver com o positivismo do século XIX e com o neo-positivismo do século XX. Na via indutivo-experimental de pensar, nenhum “dado” é afastado a priori. Isso negaria o próprio método. Em princípio o pensador positivo considera como posto (“ciência positiva”) qualquer estímulo, por estranho que pareça,. O que está posto, dado é. Captada a “essência” da coisa — colhido o jeto do jato —, passa o dado a ser examinado com cautela. Nessa cautela está o rigor: a efetiva possibilidade de descrição, busca de coerência, amplitude inicial de classificações etc.

64-b — Conferência depois da inferência. As proposições em tanto podem ser acolhidas no pensamento em quanto o seu conteúdo for aferível com algo extramental (a rigor, mais extramental), isto é, em quanto for avaliável, cotejável, comparável. É o momento da conferência, do teste, do controle de consistência e de sentido.[75] Não importa se o dado é místico, por estranha e perturbante que seja a singularidade da experiência a respeito dele. Agora, se o sujeito da experiência não consegue submeter a teste a alguma “proposição” construída a partir dela, para saber se é efetiva ou ilusória, a dita experiência mística não é aceita como um ente, como algo dotado de consistência de pensamento e de afetividade. Tem de ser cuidada como crendice, como produto da imaginação criadora de ilusões.

64-c — Como em ciência. Este cuidado é o mesmo controle experimental da ciência. Varia o “material”, o conteúdo, o vivido. A experiência mística não deve, portanto, ser alijada sem mais como se fosse mesma estranha à atividade “científica”. A primeira não deforma necessariamente a segunda. Esta dá relevo àquela na percepção. Fá-lo, aliás, com sinais de onticidade mística. Pode pronunciar a sua “ex-sistência” porque ela terá resultado de um “é” extramental, de um ὢν exógeno, de um ente recebido de fora da subjetividade pura.

65. Incompletude natural. Uma vez sabedores de que muitos insights de ciência e de religião são metafóricos, podemos conciliar a ambas. Uma e outra dizem algo. O que uma e outra afirma ou nega, é distante de toda desejável completude admitida pela gnosiologia.[76] Ambas dizem, contudo, algo real. Não é a totalidade do real, nem tampouco uma ilusão total. Nossas metáforas sobre “Deus” enraízam-se numa vivência. Estas raízes são multimilenares, dotadas de cunhagem histórica. O conteúdo dessa vivência, o temos como duradouro. Por serem metáforas enraizadas no cérebro há milhões de anos, seria contrariar a metodologia da ciência pressupor serem metáforas alheias ao cabedal do conhecimento. Um apriorismo, que o método científico rejeita. As raízes neurobiológicas da transcendência espiritual apontam para o Ser Absoluto Unitário não somente como realidade possível, mas até provável. A experiência mística sobre Ele não é anormal, nem subnormal, nem paranormal.

65-A. Toda proposição de perfeição lógica formal, isto é, sem contradição alguma, coincide sempre, em lógica e matemática, com a sua própria incompletude (“theorem of incompleteness”, Vollständigkeitssatz” — Kurt Gödel). Como isto faz parte da “condição humana”, o pesquisador tem de estar sempre atento ao momento em que surgem novos dados para corrigir-se. Nem por esta razão se pode renunciar ao pensamento cauteloso, nem à correspondente escrita. E mesmo assim veremos, contudo, que as proposições formadas, escritas, passadas a outrem ou não, ainda terão de corrigir-se. Por quanto tempo (aí está!), não sabemos. E se a própria teoria da incompletude for, em si mesma, incompleta? Avanço continuado dos saberes e o muito indutivo-experimental apresenta-se-nos como o instrumental mais confiável. O que também por ora sabemos (saboreamos, sentimos, experimentamos) é que, sim, o saber não parece ter fim nesta existência (“A ciência avança sempre”, enunciou Pontes de Miranda). O instinto-inteligência (isto é o Homem) haverá, pois, de estar sempre aberto a novos e mais novos jetos, a dados e mais dados para assegurar-se um pouco mais do avanço do conhecimento. Parece não haver possibilidade de um “dies irae” para este processo. Sim, porque também a ciência é um processo social de adaptação. Anda sempre, a menos que lhe fechemos o círculo ficando propositalmente sem ter para onde ir. Não parece haver causa, porém, para desespero e sim para humildade e esperança. Ou então caímos no niilismo, que é desequilíbrio da personalidade. Como ele chega a prejudicar a saúde, ao menos por um imediatismo “filosófico” (biológico), temos de arredá-lo como erro de pensamento e de sentimento. Este argumento está fora da lógica formal...

66. Um sapere de sabor novo. Se a experiência do Ser Absoluto Unitário, como realidade ex-sistente, não é demonstração da ex-sistência de um Ser Superior, a neurociência, com proposições extraídas de laboratórios e confirmadas neles, é por certo novo ramo de conhecimento. Resiste a testes no rigor do método indutivo experimental. Está a dizer que não se pode afastar, como ilusório, um ων diverso do mundo sensível. Os circuitos cerebrais têm arranjos específicos (=neurônios); a nossa mente percebe realidades mais profundas que só “matéria”. Daí esta firme expectativa — a espiritualidade continuará a ser campo de experiência humana. Quando o ob-jeto é Deus, vale o dito: “Deus não vai embora”.[77]

X — NEUROTEOLOGIA[78]

67. O que é. A neuroteologia vem a ser uma metateologia e uma megateologia: procura descrever como surge o princípio teológico das religiões. Ela examina os elementos universais de qualquer experiência religiosa, independentemente da origem. Também aponta caminhos de ação para relações de família, de devoção, perdão, sentimento de pertença. Isto ajuda a esta percepção: o ser humano integra-se em algo mais vasto que a percepção do ego. É deste modo em qualquer raça, povo, organização. Os circuitos cerebrais são idênticos em funcionalidade, em toda a Terra. Ocupa-se também a neuroteologia de toda a ação encontrável em religiões: ritos, mitos, vivências. Leva à síntese corpo-alma,[79] traz compreensão ampla sobre perdão, comunidade, amor, causalidade, totalidade, justiça etc.[80] A neuroteologia apresenta métodos novos pelos quais se possam compreender anseios profundos e formação de mitos; nestes mitos acham-se fontes criadoras de linguagem, sentido e sentimento. As respostas são holísticas, sistêmicas; aproximam-se de uma “concepção” de Deus-no-Universo. Contudo, mais que localizar uma “causa”, vê-se o homem no encontro com o “Ser do Amor”. O exame do Ser Absoluto Unitário propicia uma descoberta intrigante para quem não consegue crer: é muito possível a ex-sistência de realidade mais real que a realidade conhecida pelos métodos tradicionais.

67-a — Será este um horizonte insuspeitado? Essa experiência cognitivo-afetiva, examinada na individualidade ou na socialidade, aguça o senso comum, refina a sensibilidade e alarga o campo da investigação científica.

68. Nova ontologia. A neuroteologia enriquece a integração “ciência-religião”, compatibiliza conhecimento e pietas. Aproxima o mundo da mente ao de uma ontologia transcendente possível.[81]

68-A — Terminando. Cabe aqui uma que outra conclusão. Eis algumas: (a) O ser humano ainda sabe muito pouco, e de quase nada; (b) o ser humano é, também ele, um jato-entre-jatos no Universo (ou Multiverso) em expansão, um ser a adaptar-se entre seres inumeráveis, numa difusão toda feita de éρος e λóγος, paixão e razão, amor e inteligência; (c) o pensamento e a afetividade têm raízes na biologia; (d) o homem tanto mais se conhece e se vence, e sobrevive bem na adaptação geral, quanto mais ultrapassa divisas: as do ego e as dos obstáculos; (e) sobretudo mediante o λóγος é que, a final nós tocamos um pouco do mundo exógeno (“realidade objetiva”), mas para chegar ao final em nada se pode prescindir existencialmente do éρος; (f) é também negando-se, e silenciando objetos, que o éρος humano se enche do Grande Amor; (g) a experiência mística é coeva do ato humano de conhecer; (h) religiosidade e ciência são vivências próprias da natureza humana, de fontes inarredáveis, enraizadas no instinto-inteligência (Homem).

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[1] Andrew NEWBERG, Eugene D’AQUILI e Vince RAUSE, Why God won’t go away. New York: Ballantine Books, 2002. Será indicado como “Newberg et alii, 2002; {pág.}”. O terceiro co-autor, V. Rause, é escritor independente; escreveu depois a resenha da obra posta em:

http://www.poanight.com/poagospel/porquecremos.php (tradução portuguesa).

[2] NEWBERG et alii, 2002: 1-10.

[3] São as técnicas principais usadas no estudo da biologia do conhecimento pelos dois neurologistas: Newberg, assistente do departamento de radiologia da divisão de medicina nuclear da Universidade de Pensilvânia, durante mais de seis anos estudou a fisiologia do cérebro, relacionando-a com a experiência religiosa; D'Aquili, Phd falecido, foi assistente de psiquiatria da mesma universidade por 20 anos. A pesquisa de laboratório é sobretudo com monges do Tibet e franciscanas católicas, em estado de meditação. Outros fundamentos são cerca de 70 trabalhos publicados nos últimos 20 anos na área de neurologia (Newberg et alii, 2002: 208-223).

[4] Metafísica é filosofia racionalista pura, conhecimento muito apriorístico tirado de conceitos formados sem as cautelas iniciais e finais da empiria. Já o pressuposto do conhecimento da natureza é uma metafísica especial: o que nela é geral, depende da concretude das particularidades. KANT, 1991: 11-13.

[5] Amor, universal e misteriosa energia cósmica, CHARDIN, 1967: 7-14.

[6] Ecologia mental, mística e presença universal do Absoluto, BOFF, 1996: 36-44 e 50-52.

[7] Entre guaranis Deus é o “Pai Primeiro que se criou a si próprio no início da Vazia Noite” (JUCUPÉ, 2001: 25). Os fatos parecem contradizer Freud, no exagero de a relação de alguém com o pai, no tempo da infância, ser uma constante perturbadora, que volta nos sonhos adultos (FREUD, 1989: 76-79).

[8] Os autores usam os dois termos, self e ego. Estamos entendendo por self o sujeito pensante, por ego (=subjetivo) a posição do sujeito pensante como seu “ponto de observação”. Neste último caso, a própria individualidade pode se tornar alvo da visão do sujeito pensante (sub). Essa tradução está de conformidade com a teoria do conhecimento de PONTES DE MIRANDA,1972, “O problema..”: 22, 105, 196ss, 255ss. Outras obras deste serão freqüentemente trazidas a confronto. Também nosso ensaio, COSTA DE OLIVEIRA, 2001: passim.

[9] NEWBERG et alii, 2002: 11/34.

[10] Extração: Pontes de Miranda, 1972, "Sistema....": 135-139, 174ss, 233ss.

[11] Conceito e julgamento: Pontes de Miranda, 1972, "Sistema....": 21ss, 229-238.

[12] Para estudo destas realidades básicas, Pontes de Miranda, 1972, "Sistema....", II: 40, 68, 246; IV, 296; 1980, 57 e 73-78.

[13] Valores: Pontes de Miranda, 1972, "Sistema....": I, 10ss, 191; II, 75 e 288.

[14] Para Nietzsche a religião começou com erro de interpretação da natureza, falha intelectual; não proveio de um impulso e necessidade. NIETZSCHE, L. III, n. 151, 1980: 132.

[15] Jeto: Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 83-103.

[16] Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 83-103.

[17] Badiou: só a arte liga o pensamento filosófico à vida. A arte não precisa do filósofo, e este sim, precisa dela. SAFATLE, 2002: 4-6.

[18] Conceito: Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 229-240.

[19] Esta é a proposta de solução gnosiológica, não dos autores comentados e sim de Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 137-170.

[20] Pontes de Miranda, 1953: 125-133.

[21] Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 23ss.

[22] Atitude gnosiológica segura, Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 91-105.

[23] NEWBERG et alii, 2002: 35-53.

[24] Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 171-189.

[25] Filosofia, no sentido tradicional de reflexão-reflexão, GIACOIA JR, 2002: 9.

[26] Nos dias que passam tem-se dado com razão importância grande à etimologia. As raízes da palavra guardam muito da história do termo empregado. Por vezes ele indica o gesto inicial primitivo. Exemplo clássico está na palavra mãe. Livro útil neste sentido, para o latim, está em ERNOUT, Alfred e MEILLET, Antoine. Dictionnaire étymologique de la langue latine: histoire des mots. Paris: Klincksieck, 2001.

[27] NEWBERG et alii, 2002: 54-76.

[28] Com a “Logik der Forschung” de Karl Popper tem-se, sim, de conceder que com a empiria pura, só com ela, não se constrói ciência. Mas, sem coleta inicial de dados não se pode generalizar, coisa própria da ciência. O método indutivo-experimental inicia-se com a observação, depois vem essa generalização. Por fim se chega ao esforço de teste — com a experimentação. Na experimentação o teste é mesmo o de encontrar a refutabilidade, o falseamento possível. Sem ele as proposições formadas nada têm de confiabilidade. Isto, porém, não faz desmoronar a convicção de que todo o conhecimento humano começa na empiria. E mais: “tudo quanto se conhece se conhece ao modo humano”. Ou seja, mesmo na observação já se generaliza algo, fora de tempo. Mas, essa distorção prematura é corrigível por mais e mais coleta de dados e de esforço de falseamento e experimentação. Parece certo também, qualquer que seja o método adotado, que o nosso conhecimento é sempre apenas aproximativo. Grandemente probabilístico é o nosso conhecimento. Faz parte da “condição humana”. Humildade sim, aporia definitiva, não.

[29] Representação: Pontes de Miranda, 1953: 69-83 e 1972, "O problema....": 59ss.

[30] Sobre a ontologia, ex-sistência como “objetologia” (no direito), ADEODATO, 2002: 227-233.

[31] Sobre a moral na perspectiva católica, JOANNIS PAULI PP. II, 1993: 73-85 e 96-102.

[32] Sobre esta última asserção: Pontes de Miranda, Vorstellung vom Raume. Atti del V Congresso Internazionale di filosofia. Napoli, 1925. A emoção individual-social de cada um insinua-se na concepção de espaço-tempo. Nenhuma concepção é, a todo rigor de lógica material, idêntica no indivíduo A e no indivíduo B. * Ver também nosso “A gnosiologia estudada com dados das outras ciências”. Santos: Leopoldianum – Cad. Posgrad, 2001, p. 33-37.

[33] NEWBERG et alii, 2002: 77/97.

[34] Sobre ecologia mental, mística e presença universal do Absoluto, BOFF, 1996: 36-44 e 50-52.

[35] Sobre mártires cristãos e os comunistas, entrevista com FREI BETTO, 1985: 326-330.

[36] Em HEIDEGGER, 1992: 43-52, além de outras passagens e obras (como 1957:11-13 etc.; 1980: 15-18 etc. etc.), são constantes idas e vindas, na contemplação do “Sein”, entre idéia e sentimento, pensar e agradecer, ouvir a voz do ser do mundo e do eu, percepções de moral (Würde), arte (Gunst), religião (Opfer), economia (Nutzen), ciência (Wahrheit), física (Stimme), linguagem (Sprache) — tudo na p. 50. Por vezes, diz, pensar o Sein é pensar o Universo; em outras, a carência (“Schweben in Amgst”, pág. 32). A metafísica, história da verdade sobre o ser, não o alcança (p. 44). O ser não se deixa objetivar, nem representar, nem construir (p. 46). Donde: (a) ora vai à mística com o mundo, ora fica na antropologia do pensar como tal; (b) daí a inevitável contradição em belíssimo poetar intelectualizado; (c) em larga escala, uma ontologia da subjetividade (donde a aceitação do autor). Mas escreve como se, fora da experiência mística, nós pudéssemos nos livrar da percepção da corporeidade, que é (também matéria é). Lembremos o consignado em KANT, 1991: 11-13, 135 — quando a razão pesquisa os últimos princípios da matéria, acaba no vazio. Dos objetos tem de voltar-se para os limites de si próprio: buscando os fundamentos últimos das coisas, resvala para a definição dos próprios limites. Metafísica é a filosofia pura, ou seja, conhecimento racional tirado só de conceitos. Já a matemática introduz uma exposição do objeto, em visão a priori, para fundamentar o conhecimento. O pressuposto do conhecimento da natureza é uma metafísica especial: o que nela é geral, depende da concretude das particularidades. KANT, 1991: 11-13. (Está a faltar, pensamos, o estudo neurocientífico da “contemplação metafísica”, semelhante ao feito com a mística; quiçá haverá de trazer revelações de interesse para a cultura).

[37] Histórico da mística: ARMSTRONG, 1996: 242-295.

[38] NEWBERG et alii, 2002: 98-127.

[39] Oração e liberdade, na experiência mística: ROHDEN, 1976: 123-140.

[40] A transfiguração, símbolo de perpétua afetividade: GUARDINI, 1938: 310-319.

[41] Citando obra de 1890, edição 1963 (JAMES, William. Varieties of Religious Experience. New York: Unisity Books), dizem Newberg et alii que para James, no estado místico a pessoa, consciente, em fala que antecede a linguagem e não envelhece, faz-se una com o absoluto. James terá percebido corretamente que o “mecanismo essencial” da experiência mística acha suas raízes em estádios mais profundos e primaciais do que descrevem a teologia tradicional e a revelação das escrituras. Não refere porém que tais mecanismos estão inseridos no cérebro, postos em funcionamento pela mente que procura caminho em direção a Deus — que a atrai.

[42] Sobre cura pela oração, LAHAYE, 1993:93-128, 169-190 e 209-230 (best-seller) e SCANLAN, 1978: 81-111.

[43] Newberg et alii traçam as diferenças entre o genuíno e o doentio. A literatura a respeito é vasta, com experiências descritas por místicos, pelos de milênios atrás e pelos que vivem. Ver TUOTI, Frank. X. Why not be a mystic. New York: Ed. Crossroad, 1995, passim.

[44] Sobre religião-doutrina, causa de divisão, ARMSTRONG, 2001: passim. A luta religiosa, produto de contumácia do ego, MAOMÉ, 1983: 1304 (Corão).

[45] Entre muitos textos, HEIDEGGER, 1992: 24-42 e 43-52 (com rápidos comentários mais abaixo). A discussão seria longa.

[46] Sobre a “realidade objetiva”, MENEZES, 1971: passim.

[47] Está na “Contemplación para alcanzar amor” (LOYOLA, 1952: 204-206). Religião como “mitologia científica”, sem afetividade, FRIAS FILHO, 2002: 9.

[48] Muitos homens de ciência foram e são dedicados à experiência mística. Têm uma fé psicanaliticamente profunda. A esse respeito ver FERREIRA, Pedro Magalhães Guimarães. A Fé em Deus de Grandes Cientistas. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio e Editora Loyola, 2009. (O autor é sacerdote jesuíta, matemático e engenheiro, com curso de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro e cursos de pós-doutorado na University of California e na Brown University).

[49] Sobre a subjetividade – pós-modernidade e existencialidade, LIBÂNIO, 2000: 35-40 e 77-87.

[50] Na “fenomenologia na natureza” o espaço absoluto não é experimentável. É imaterial, mera idéia. (KANT, 1991: 127). Ora, pensamos, para a ciência atual é também difícil admitir a total vacuidade. Entretanto, a só “reflexão reflexiva” (filosofia tradicional) não chega ao conhecimento do mundo extramental. Falta-lhe o método indutivo experimental, co-natural ao homem: o empírico, a indução, a experimentação. A diferença com a mística é que, nesta, a experiência existe sem indução nem dedução.

[51] Descoberta do matemático Joseph PETZOLDT, Máxima Mínima und Oekonomie, Altemburg, 1891, p. 11 (apud Pontes de Miranda, 1972 “Sistema...”: IV-198).

[52] Sobre a noosfera, o mais alto patamar do homem (com indicação bibliográfica específica), BOFF, 1998: 118-123 e 153-163.

[53] NEWBERG et alii, 2002: 128-141.

[54] Sobre hostilidade e proximidade da filosofia com a religião, em pensadores alemães, subsistente a perspectiva religiosa, HABERMAS, 2001: 25-29.

[55] Inácio de LOYOLA, 1952: 230-232.

[56] Crença e ciência (“fé e razão”), em visão católica: JOÃO PAULO II, 1998: 29-38.

[57] NEWBERG et alii, 2002: 142-156.

[58] A falibilidade da lógica formal, corrigível com sua instrumentação de inferência e de análise estrutural: COSTA, 2002: 5.

[59] PONTES DE MIRANDA, 1925: totum. Ver também o nosso artigo Paixão, Razão e Natureza (investigação sobre o discurso normativo)”. Revista de Estudos e Comunicações – Leopoldianum [revista da Universidade Católica de Santos]. Santos: v. XX, nº 56, páginas 65-77, abr./1994. [Trata-se de um resumo de nossa tese de doutorado ainda não publicada, composta sob orientação do Professor Miguel Reale].

[60] HEIDEGGER, 1992, passim.

[61] “Universo”, o todo a partir das partes e as partes a partir do todo, OLIVEIRA, 2002: 117-148.

[62] Realismo, substancialismo, ciência: Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 207-214.

[63]A realidade do jeto: Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 203 ss.

[64] Denso estudo da gnosiologia em dimensão psicológica, no Iluminismo: CASSIRER, 1998: 123-177.

[65] Discussão escolástica, ausentes os dados empíricos: SALCEDO, 1957:396-413.

[66] NEWBERG et alii, 2002: 157-172.

[67] Santo Tomás, no seu intelectualismo suave, tem por certas muitas considerações sobre Deus: existência (Q. II), infinitude (Q. VII), o estar nas coisas (Q. VIII), algo cognoscível (Q. XII), os nomes de Deus (Q. XIII), como Deus conhece (Q. XIV) (SANTO TOMÁS, Summa, 1951: 15-130).

Continua aberto o caminho Pontes, 1973: 23 (af. 34). E agora com novos dados positivos!

[68] Sobre a religião escritural (=revelada), distinguindo espírito religioso e realidade, e aludindo à “religião da arte”, contra a ciência positiva (HEGEL, 1988: 488-515).

[69] Sobre re-sacralização da sociedade e seus efeitos destrutivos, ARMSTRONG, 2001:365-371. Dialética hegeliana — no indivíduo o espírito absoluto atua, mas a “unidade” faz-se através do povo, que não é multidão. Nada isolado tem sentido sem esse todo (HEGEL, 1967: 53-54). Para o conceito de massa, forma de organização e movimento política, ARENDT, 1986: 499-528. Multidão é povo desorganizado; organizado, é massa (Pontes de Miranda, 1979: 188-195).

[70] OLIVEIRA, 2001: 12-18.

[71] OLIVEIRA, 2001: 21-38.

[72] Ecumenismo: ARNS, 2001: 217-221.

[73] Escreveu Miguel Reale sobre a falseabilidade, referindo-se a Pontes de Miranda: “Seria enlearmo-nos numa crítica externa infecunda lembrar que a teoria do conhecimento, em nossos dias, já superou asserções ilusórias do cientificis­mo oitocentista, mostrando quão relativa é a objetividade das chamadas ciências exatas, e que, bem longe das certezas inabaláveis, o que caracteriza o saber científico é o reconhecimento de sua constante refutabilidade crítica, através de renovadas tentativas e testes experienciais.” REALE, Miguel. Pontes de Miranda, um metafísico que se ignora. In Figuras da Inteligência Brasileira. 2ª edição, refundida e aumentada. São Paulo, Editora Siciliano, 1994. (Discurso de saudação a Pontes de Miranda ao ser recebido na Academia Brasileira de Letras no dia 15 de maio de 1979, p.147).

[74] Ciência e filosofia: Pontes de Miranda, 1972, "Sistema....", I, 35 e 312.

[75] Como o jeto é posto no geral do conhecimento: Pontes de Miranda, 1972, "O problema....": 241-255.

[76] Sobre a incompletude (de Kurt Gödel), que se aplica a toda modalidade de conhecimento humano, escreveu-se [...] “Gödel's first incompleteness theorem shows that any consistent formal system that includes enough of the theory of the natural numbers is incomplete; there are true statements expressible in its language that are unprovable. Thus no formal system (satisfying the hypotheses of the theorem) that aims to characterize the natural numbers can actually do so, as there will be true number-theoretical statements which that system cannot prove. This fact has severe consequences for the program of logicism proposed by Gottlob Frege and Bertrand Russell, which aimed to define the natural numbers in terms of logic (Hellman 1981, p. 451–468). Ver Gödel's incompleteness theorems From Wikipedia [setembro de 2009].

[77] Se haverá a morte de Deus ou se Deus tem futuro, também ARMSTRONG, 1996: 397-431 e 432 ss.

[78] NEWBERG et alii, 2002: 173-180.

[79] O corpo humano, corpo-no-Universo: CHARDIN, 1965: 33-35, 265-271 e 277-280.

[80] Matéria, “carnal” e “espiritual”: CHARDIN, 1957: 121-129.

[81] A abertura da inteligência a novas realidades, em salto, é modo de a ciência avançar em revolução, alterando paradigmas (KUHN, 1996: 92-110).

77 VAZ, 1956: totum.