quinta-feira, 13 de agosto de 2009

A delicada questão da vigência das medidas provisórias

A delicada questão da vigência das medidas provisórias

1. Um dado histórico recente sobre as medidas provisórias.

Em abril deste ano de 2009 o advogado Walter Ceneviva publicou artigo no jornal Folha de São Paulo sobre as Medidas Provisórias. Falava do “Atoleiro da medida provisória”. Também que sem elas é difícil preencher lacunas da lei em sentido estrito. Por outro lado, diz, o processo democrático subverte-se com elas até mesmo quando se cuida de matéria de urgência. Uma das razões disto está no fato de ela não ser edictada pelo poder legislativo e sim pelo presidente da república. A respeito deste conflito o articulista teceu considerações de cunho político, incluídas considerações sobre o poder da mídia para influir no público no prol do poder executivo federal. Textualmente: “Tem acontecido até de a pauta do Congresso ficar bloqueada pelo número de medidas provisórias do Executivo na "fila" para serem discutidas. O Executivo pode servir-se de várias medidas provisórias encaminhadas ao Legislativo para impedir a votação de projetos quando isso lhe convenha. Trazia como exemplo o caso da Medida Provisória de número 82/02 por causa da “deterioração de rodovias federais, com enorme prejuízo para o transporte de carga”: mais de dez rodovias federais passaram para a responsabilidade do Estado-membro interessado nelas. Eis, porém, que o Congresso não aprovou essa M.P. 82/02 e nem a União queria recebê-las de volta e os Estados pleiteavam indenização pelos gastos feitos com elas. Ou seja, o problema jurídico mal resolvido pelo abuso do Executivo Federal criou situação econômica de dificultosa solução para o país todo.

2. A questão da vigência das Medidas Provisórias.

A vigência das Medidas Provisórias parece ser uma matéria ainda pouco estudada. É matéria que anda despercebida da atenção dos estudiosos. O caso da Medida Provisória de número 82/02 é apenas um exemplo, o de não-aprovação de uma delas.

Tem-se aqui de examinar com extremo cuidado o que se passou com uma Medida Provisória não convertida em qualquer outra forma constitucional de normas.

Se qualquer Medida Provisória não for convertida em lei, nem for expressamente rejeitada, nem vier a ser objeto de decreto legislativo no prazo previsto na Constituição Federal de 1988, neste caso ela perde a sua eficácia própria. Por via de conseqüência só terão surtido efeito jurídico os contratos celebrados durante o breve tempo da sua vigência.

Por quê?

1- Leia-se na Constituição atual a norma do artigo 62 § 3º:

As medidas provisórias, ressalvado o disposto nos §§ 11 e 12 perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de sessenta dias, prorrogável, nos termos do § 7º, uma vez por igual período, devendo o Congresso Nacional disciplinar, por decreto legislativo, as relações jurídicas delas decorrentes. [sublinhado nosso].

2- Voltemos o olhar agora para o estabelecido no art. 62 § 12:

Aprovado projeto de lei de conversão alterando o texto original da medida provisória, esta manter-se-á integralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto. [idem]

3- De imediato, porém, temos no mesmo artigo no § 11, que também sublinhamos em parte, mais um complemento do pensamento anterior:

Não editado o decreto legislativo a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e decorrentes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por ela regidas.

O que se extrai, portanto, dessas três redações de regras jurídicas é que:

(a) há prazo para a Medida Provisória alterar-se, deixando de ser o que vinha sendo — ou se transformar em lei, ou ao menos surgir projeto de lei para ser edictada a lei correspondente a ela, ou se converter em decreto legislativo;

(b) uma vez aprovado o mero projeto de lei (o projeto de conversão dela em lei), a Medida Provisória já vigorará e regerá os fatos; suas normas incidirão sem limitação sobre os suportes fáticos aludidos (até o momento em esse projeto venha a ser ou sancionado ou vetado);

(c) não havendo nem uma coisa nem outra — nem aprovação nem rejeição do projeto em questão —, somente se regerão pela Medida Provisória aquelas relações jurídicas oriundas dos atos praticados no período de tempo em que ela vigorou, isto é, durante o tempo passado entre a edicção dela e o momento em que havia de ser aprovada ou rejeitada, ou durante o tempo em que fosse aprovado (ou rejeitado) o projeto da sua aprovação, ou sobreviesse o decreto legislativo.

Por outras palavras, este dito “conservar-se-ão por ela regidas” (parte final do § 11 do artigo 62 da Constituição Federal de 1988) é uma locução que só pode ser entendida assim: a mantença da eficácia jurídica da Medida Provisória subsiste apenas durante esse tempo inicial da vigência dela, e não pelo tempo posterior, indefinidamente. A Medida Provisória não é dotada de eficácia jurídica de norma de direito sem que (1) ou sobrevenha a lei, (2) ou o decreto legislativo (3) ou o projeto de sua aprovação.

3. Conseqüência teórica e prática.

Pode mesmo ser que muitas das Medidas Provisórias não hajam ainda sido convertidas nem em lei etc. simplesmente por não ter havido consenso a esse respeito até ao presente momento entre os membros do Poder Legislativo. Ou então, salvo engano, eles se esqueceram do assunto...

Vamos a exemplos: as Medidas Provisórias de no 2.229-43, de 6 de setembro de 2001; 2.219, de 4 de setembro de 2001; 2.227, de 4.9.2001; 2.226, de 4.9.2001; 2.227, de 4.9.2001 não consta terem sido convertidas em lei, ou em decreto legislativo, nem que tenha surgido o projeto de sua aprovação.

Segue-se então que, por incidência das normas do artigo 62 §§ 3º, 11 12 da atual Constituição (supra), essas Medidas Provisórias:

(1) existem, mas já perderam a eficácia própria de regra jurídica;

(2) não vigem e, pois,

(3) não podem ser aplicadas;

(4) toda vez que qualquer aplicação que delas se fez, ou se fizer, depois de terem caducado, não surtiu efeito jurídico algum.

A razão disto já ficou dito: o suporte fático ficou sem a incidência das normas de direito que antes incidiam, ou seja, quando ainda tinham vigência essas Medidas Provisórias. A grave omissão legislativa não faz irradiar-se o efeito de a Medida Provisória caduca viger depois de ter caducado. Passados cento e vinte dias da publicação delas pelo Presidente da República, e sendo continuada a inércia legislativa, perderam elas o efeito de norma de direito. Caducaram, caíram para fora do direito brasileiro.

Persiste a sua eficácia tão-somente durante os 120 seguidos à sua publicação primeira, antes da caducidade.

Repetindo, esta caducidade dá-se ao modo seguinte:

(a) sem a sua transformação da Medida Provisória em lei (ou revogação legal);

(b); sem o surgimento de projeto de lei, em que Medida Provisória se converta;

(c) sem transformação dela em decreto legislativo.

A situação jurídica criada pela caducidade da Medida Provisória assemelha-se (digamo-lo só para efeito didático), assemelha-se à coisa julgada recaída eventualmente sobre qualquer regra jurídica cuja invalidade tenha sido corretamente decretada por órgão competente do Poder Judiciário.

4. Complicações para alguns fatos jurídicos.

Suscitamos aqui matéria sobre que não nos manifestaremos por ora. Exigem estudo mais profundo dos pontos ligados a ela. Cumpre pensar nos dois campos, do direito material e do direito processual, ambos com possível implicação do direito constitucional.

Algum negócio jurídico pode ter sido celebrado, ou algum ato jurídico stricto sensu pode ter sido praticado, com a aplicação de certa Medida Provisória já caduca. Como não se pode pensar em anulabilidade, a pergunta daí exsurgida é se qualquer desses dois fatos jurídicos é inexistente ou se é nulo, e se há aí matéria constitucional. É questão atinente ao direito material.

No campo do direito processual cabe indagar como será tratada a coisa julgada material que tenha declarado existente ou válido qualquer deles, ao menos em parte. Exemplo: quid inde se a dita coisa julgada material já tem mais de dois anos, sem ser possível, pois, a ação rescisória?

Há que estudar além de outros, pontos tais como: se esses dois fatos jurídicos são inexistentes ou se são apenas nulos; em qualquer das duas hipóteses, se é mister ação para a decretação de sua nulidade, ou de declaração da sua inexistência perante o Poder Judiciário (ou se algum dos outros dois poderes, por provocação ou sem ela, podem fazer o mesmo que o Poder Judiciário faria); se essa ação prescreve e em quanto tempo; se o prejudicado tem ação contra o Estado por ter havido omissão de algum dos poderes — Executivo e Legislativo; que ação seria essa (declaratória, condenatória, mandamental).

Na órbita do direito processual levantam-se também perguntas como, por exemplo, se há mesmo pretensão à tutela jurídica estatal in casu; qual o juízo ou o tribunal competente; se a matéria inclui necessariamente o direito constitucional; se eventual recurso extraordinário é daqueles em que “o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei” — artigo 102 § 3º da Constituição — (e que lei é esta) etc. etc.

Santos, Estado de São Paulo, 11 de agosto de 2009.

Mozar Costa de Oliveira

(Mestre o doutor em direito — USP).

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

PONTES DE MIRANDA, GÊNIO E SÁBIO

PONTES DE MIRANDA, GÊNIO E SÁBIO [1]

Mozar Costa de Oliveira (Do "Instituto de Estudos Pon­tes de Miranda", Santos, São Paulo)

I — Linhas gerais

Causa curiosidade e admiração a lista dos títulos atribuídos a Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda.[2] O estudo das suas mais de 200 obras dá-nos a impressão de os títulos conferidos ao autor estarem aquém do valor do seu trabalho.[3] Recebeu cerca de uma centena de títulos derivados da sua produção científica. Vieram de Tribunais Superiores, de ins­titutos de estudos, de diversas faculdades e universidades de diferentes Estados brasileiros, de chefes de executivos estaduais, de iniciativa de membros de parlamentos (federal e estadual), da Alemanha e do Japão.[4]

As suas obras, sobre serem muito vastas algumas delas (como as de Direito Privado e Direito Processo Civil), apresentam uma quase inexplicável erudição e, se a comparamos com os trabalhos de outros autores, são de espantosa profundidade. Partem das raízes da Matemática, da Física e da Biologia. Além da pedra angular da ciência ponteana (e da sua linha mestra), que é o método das ciências — método indutivo-experimental —, para acompanhar-se-lhe o pensamento filosófico e sociológico há de mister o estudioso de bons conhecimentos da física, química e biologia. Necessita pelo menos de abrir-se francamente a reflexão sobre alguns pontos dessas ciências, que Pontes de Miranda versa com precisão e largueza, comparáveis às dos especialistas contemporâneos. Veja-se, por exemplo: a) foi com base na matemática que chegou às análises e conclusões, complexas e seguras, da obra sociológica "Democracia, Liberdade e Igualdade — os Três Caminhos" (1945, Livraria J. Olympio Editora, 1945 — 1ª. edição com 663 paginas); b) foi ainda pelos meios da lógica simbólica que, depois de mais de 50 anos de pesquisa, veio a produzir em sete tomos o seu Tratado das Ações (“Tratado das ações”. Sete tomos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970-1978); c) a descoberta ponteana (na sua formulação científica precisa) dos dois grandes princípios sociológicos, da dilatação dos círculos sociais e da diminuição do quan­tum despótico, tem suas raízes no estudo minudente da estrutura do átomo e da molécula, da constituição da célula, sendo que a simetria social vem demonstrada como expansão das leis radicalmente físicas — da simetria e da cristalização, segundo a formulação da física moderna;[5] d) o "Sistema da Ciência Positiva do Direito", 2ª. edição, 1972, ed. Borsoi, contém capítulos longos dedicados ao estudo crítico do estado atual das ciências, em questões como quantitatividade, contínuo, teoria da relatividade (incluídas as suas conseqüências gnosiológicas), determinismo, adaptação, espaço-tempo-energia, hereditariedade, as relações e o conhecimento científico delas etc.; e) em "O Problema Fundamental do Conhecimento" (Borsoi, 2ª. edição, 1972), o delicada pesquisa da sensação e da relação sujeito-objeto está precedido de dados complexos de matemática, física e biologia, sem permitir-se o autor (como em todas as suas obras) qualquer salto a enunciado que não seja resultado de descrição rigorosa dos fatos por meio do auxílio do raciocínio lógico-matemático [6]; f) em "Garra, Mão e Dedo" (Livraria Martins Editora, SP, 1953) temos um trabalho bre­ve (150 páginas), mas com a densidade igual à dos seus tratados. Os dados da zoologia e da psicologia humana são explicados aí, e aplicados, com a segurança de especialista, a dominar aquelas ciências nos seus meandros e nas suas origens — sempre com a objetividade do observador que avança, descobre e conclui, sem se afastar um instante dos elementos indutivo-experimentais que pela só ciência se apresentam ao espírito do homem; g) a sua descoberta dos sete principais processos sociais de adaptação (Religião, Moral, Arte, Ciência, Direi­to, Política e Economia), além de seres fundadas na quantitatividade (método lógico-matemático), estriba-se nos degraus dos hodiernos princípios geométrico-sociais (com análises de Aristóteles a Natorp), dos princípios físico-sociais (estudo lógico-matemático de Platão a Kant), versando em estudo crítico o que aos melhores pesquisadores a ciência proporcionou até aos dias atuais. Quadra notar que não se restringe sua obra[7] a sintetizar os que outros descobriram, senão que o autor segue pari passu o que o pensamento humano num e noutro cientista vai logrando vislumbrar nessa e naquela obra. Quer isto dizer que o atento Pontes observa o vai-vem da segurança científica no apalpar sinuoso dos erros e acertos. E mostra, em meio à plêiade dos cientistas e pensadores (que menciona, analisa e critica), por vezes os pontos exatos, ora as sinuosidades, ou então as anfracturas das descobertas as quais ele, com novos dados originais, vai a pouco e pouco completando e corrigindo[8]. Passa-se o mesmo com o estudo das leis biossociológicas [9].

É próprio do caráter da obra ponteana esse perpassar os momentos relevantes de Matemática, Física, Química e Biologia apresentando-os ele próprio com originalidade e independência de um mestre profissional. Somente depois de nutrido o espírito do leitor pelo longo alimentar-se de dados rigorosos — exatos, precisos e seguros —, só depois de feita a análise e a síntese das descobertas pertinentes, apresenta então ele próprio as suas descobertas originais no âmbito mais geral, vasto e real: o das relações sociológicas com a filosofia e a sociologia científicas. O direito é apenas sociologia especializada — repetiu ele muita vez — e simplesmente o campo em que Pontes de Miranda se tornou mais conhecido. (Tempo houve em que era o autor mais citado pelos profissionais do Direito, seja na jurisprudência seja em peças processuais ou em pareceres jurídicos).

Estava, pois, com razão com o jurista alemão, E. Heymann quando, escrevendo sobre Pontes de Miranda em 1930 para uma revista alemã especializada, explicou que a profundidade e a completude do notável jurista brasileiro (então com apenas 38 anos) só se podia explicar porque a sua ciência jurídico-sociológica arrancava das profundezas mesmas de uma inteligência originariamente familiarizada com a matemática e com a filosofia científica [10].

II — Dotes pessoais e alguns resultados

Na sua singular modéstia, Pontes de Miranda, agradável companhia em reuniões sociais (que apreciava com su­perior bom-gosto), costumava dizer que era apenas "mais um tijolo" na construção histórica da cultura. Nem há negar-lhe o acerto da tese de que: 1) Homem < Ciência, de modo que esta avançará sempre; 2) foi a Assembléia que fez o Homem, e não e converso, de jeito que cada indivíduo é produto de milhões de anos de depósitos energéticos físicos, zoológicos e socio­lógicos [11].

Cumpre, entretanto, para entender-se-lhe a obra vasta e profunda, refletir sobre os traços próprios da sua história pessoal de escritor extraordinário dos nossos dias. Consta ter sido iniciado muito cedo nas matemáticas pelo avô, que também lia ao neto, traduzindo-o do Latim, o "Flos Sanctorum" (Toledo, 1513). E eram as matemáticas a ciência dos seus sonhos de adolescente (14 ou 15 anos) [12]. A sua tia Francisca de Menezes, porém, atenta que andava ao talento do sobrinho, desde a meninice muito interessado nas conversas em que o social fosse tema, advertiu-o de que melhor lhe quadraria, ainda financeiramente, o Direito. La pelos 14 anos acabou por ingressar na Faculdade de Direito do Recife. Logo no início do curso já começava a dominar o latim e o alemão, que aprendeu em companhia dos padres franciscanos sem que ninguém a tanto o exortasse. Daí surgiu em 1909, quando ele tinha 17 anos, o primeiro livro. Artigo, já o publicara antes, sobre Descartes. Esse primeiro livro, "A Margem do Direito", só publicado em 1912, é um ensaio de psicologia jurídica [13], com idéias novas a respeito da atenção. Aí se mostra, pela bibliografia examinada, a familiaridade do jovenzinho com os idiomas italiano, francês, inglês e alemão. E já se faz nítida a linha típica do pensar de um matemático, físico e biólogo. Reside talvez aí o que mais admira e mais explica a sua histó­ria.

Em 1913, aos 21 anos, surge o segundo livro: "A Moral do Futuro", com prefácio de Jose Veríssimo (Rio, F. Briguiet e Cia. Edit. — 276 páginas). Sem perder as qualidades da obra de estréia — que chamou a atenção do jurista Clovis Bevilácqua —, este segundo livro entra ainda mais a fundo na sociologia e nas ciências em geral. Trata-se de uma visão sociológica já robustamente científica. Daí a admiração que o livro causou a Rui Barbosa.

O que não podiam ver ainda então, nem Clovis nem Rui, era o trabalho incomum de uma inteligência que penetrava, com rapidez e segurança desconhecidas em tal idade, os espaços da matemática, física, biologia. Foi com elas que Pontes pegava nas raízes da Sociologia e do Direito. Eis a razão de não preverem os dois a revolução científica ponteana. Esta veio a ser vislumbrada somente pelo próprio Clóvis Beviláqua cerca de dez anos mais tarde. [14]

Há que lembrar a alongada meditação de nove anos que precedeu a edição do "Sistema", de 1922. Entanto, não se pense que tenha sido sua ocupação única, pois vemos a lume os livros de 1916 (sobre "Habeas Corpus"), em 1917 (sobre direito de família) e em 1921 (sobre títulos ao portador). A capacidade de trabalho do jovem pesquisador (casou-se lá pelos seus 22 anos), demonstra-se por mais três fatores: o método, a profundidade e a cientificidade das três obras mencionadas vindas a público entre 1913 e 1922 (este o ano do "Sistema"). Basta refletir no conhecimento da história do direito inglês (que aparece no "Doutrina e Prática do Habeas Corpus"). O "Direito de Família" já ostenta um domínio sobre o direito romano que nenhum outro autor no mundo jurídico parece ter conhecido com tamanha inteireza, além do direito visigótico e do luso-brasileiro.

Inexplicável ao pensador comum, ainda o mais talentoso, é a sua produção literária simultânea, pois é anterior a 1922 todo o conteúdo da "Sabedoria dos Instintos", [15] e da "Sabedoria da Inteligência” [16]. E tais obras, a despeito da sua originalidade a trescalar o frescor de um pensamento que passeia consciente e deslumbrante por novos páramos do espírito, na sua forma clássica de aforismos (sem poderem definir-se tradicionalmente como filosofia, ou poesia, ou meditação), tais obras, dizíamos, pressupõem decerto a leitura da imensa literatura que o antecedeu, dos gregos até Nietzsche, embora Pontes não seja especificamente marcado por nenhuma escola ou tendência filosófico-literária. Isso é singularmente estranho, a não ser que se afaste a hipótese de ser ele apenas uma grande inteligência. Não. Algo mais deve haver, que excede. Só o posto fora da ordinariedade, o criativo, o inesperado achado do espírito, numa palavra o Gênio, assoma como hipótese (misteriosa e fulgurante até para os grandes talentos), hipótese capaz de propinar alguma noção a respeito do fenômeno de tanta produção intelectual de superior qualidade.

Outra circunstância a nos entreabrir a visão não ser de uma "obra genial", mas sim verdadeiramente do radical produto de um Gênio no seu mais próprio sentido histórico, é o de se tratar de trabalhos que a qualquer grande talento exigem horas incontáveis de leitura e de execução material (anotações, fichário, redação, organização de índices variados) e, sobretudo, de penetração mental nas difíceis questões que o método indutivo-experimental da ciência demanda. Ora, tudo isso seria excessivo em qualquer jovem. E mais em Pontes de Miranda, que ainda se dedicava à música, à pintura, à vida social e aos desportos (foi campeão de natação e de equitação), e que se casou cedo tendo, aliás, quatro filhas do primeiro casamento.

Para o comum dos intelectuais, parece efetivamente assombroso que haja produzido tantas obras, de valor científico excepcional (acima do comum das boas inteligências), entre 1922 a 1934, em português, espanhol, francês, inglês e alemão. Foi assim na sociologia, filosofia científica, psicologia e direito. E deu cursos em Haia, Berlim e na Áustria. O matemático J. Petzoldt, precursor de Einstein, agradeceu a Pontes o desenvolvimento que este fez da notável descoberta do primeiro: o principio da determinação única (Eindeutigkeit).[17] O Prof. E. Zitelmann (quando Pontes contava apenas 30 anos) fala-lhe agradecido do quanto a Alemanha e a Áustria lhe deviam, a ele Pontes, como pioneiro da ciência de ambos estes países. [18]

Em 1924 aparece o seu estudo sobre a relatividade geral, escrito em alemão a pedido de M. Planck e do próprio Einstein, e que foi unanimemente aprovado no Congresso de Filosofia de Nápoles de 1925.[19] Esta comunicação científica versa as questões de física ligadas à gnosiologia (teoria do conhecimento). Redigiu-a em alemão du­rante umas férias que passava em Poços de Caldas. Por não estar o Brasil inscrito no dito Congresso, teve de apresentá-la através de uma entidade científica de Berlim, a "Kaiser Wilhelm Stiftung", tal era a conta usufruída nela pelo brasileiro Pontes. No mesmo nível, portanto, de Einstein, Planck e Wolff.

Ora, em 1924 Pontes contava 32 anos de idade. A correção que então fez à teoria da relatividade de Einstein, es­te aceitou, adotou e agradeceu.[20] De modo que expõe ele na "Vorstellung vom Raume" (= concepção de espaço) a correção cien­tífica da descoberta de outro gênio, Einstein. A concepção einsteiniana de espaço (como a de tempo e de energia) ainda era, em parte, conceito com alguma abstração, incidindo em idéia irreal, porque parcialmente incompleta, um tanto oca, pois. O espaço real é o preenchido também pelas relações sociológicas, eis que as energias sociais produzem trabalho, transformação da natureza, como fazem as energias físicas e biológicas. Os diferentes processos sociais de adaptação são seqüências de séries energéticas transformadoras. A interação religiosa, por exemplo, pode harmonizar os círculos sociais ou, ao contrário, produzir calor pelo atrito entre eles. E nisso se imiscui a própria interação biológica e física. Não apenas por­que o indivíduo é, ele próprio, um sistema como o quark, o átomo, ou o par andrógino, o clã, a fratria, a aldeia, o município, o estado-membro, o Estado, a humanidade, o sistema terráqueo, o sistema solar, a galáxia.

Há mais, todavia: o indivíduo continua no sociológico o que há no biológico e no físico, e o sujeito (o observador) constitui-se, ele próprio, como um objeto de interação. Assim, há espaço real aonde chega uma relação social. O peso de cada uma delas é determinável quantitativamente pelos influxos de: Religião, ou de Moral, ou de Estética, ou de Ciência, ou de Direito, ou de Política, ou de Economia (além dos processos físico-bio-sociológicos menos relevantes, como a moda, a linguagem, o bom-tom, a cortesia etc.). Onde fluir alguma energia sociológica, aí surgirá modificação no homem. O seu cérebro altera-se nos neuríolos e na composição destes. Em conseqüência o ambiente, o entorno, também recebe em si algo novo, diferente. Altera-se, pois, algo no “universo curvo” de Einstein.

Já que o indivíduo se altera, pouco que seja, torna-se-nos fácil admitir as mudanças nas subjetividades. Elas, de si criativas, já geram aumento do número e da complexidade dos fatores atuantes. Um espaço euclidiano qualquer (de 100 km, digamos) pode ter sentido diferente para pessoas diferentes. Cem quilômetros para o homem a cavalo são espaço-realmente diferen­tes para o homem de helicóptero. Cinco minutos para um ho­mem desesperado são diferentes de cinco minutos para um homem que, religioso, tem esperança em Deus; ou que tem ciência e sabedoria para pesar equilibradamente os percalços das circunstâncias concretamente adversas. Assim, não há concepção objetiva (extramentalmente válida) do espaço real se não se levarem em conta os processos sociais de adaptação. Eles são deformadores e conformadores dos indivíduos e dos círculos sociais e estes algo influem na natureza.

Note-se o aumento da complexidade quantitativa e qualitativa: os valores adaptativos sociológicos são por sua vez relativos. São mais eficazes ou menos eficazes segundo a sua atuação dentro do sistema em que são observados e medidos, em meio à mobilidade geral do conjunto energético real. Diante da relatividade geral ampla (a ponteana, mais que a einsteiniana), a relatividade de espaço-tempo-energia, podem haurir-se as seguintes conclusões: 1) o mundo dos valores é relativo e mostra-se cada valor como a resultante mecânica de determinado sistema de forças; 2) as relações reais são cientificamente difíceis, mas cognoscíveis, de modo que é possível concluir sobre os valores relativos e, pois, influenciar conscientemente no complexo energético social para se obterem mais rapidamente para a sociedade (nela para o instrumento Estado) os melhores valores (lei da economia energética); 3) não pode o Estado, sob pena de desperdiçar energias, quedar-se inativo diante da religião, da moral etc.; antes, mesmo sendo laico, há de ser um Estado interventivo no sentido de canalizar politicamente as energias sociais e observar regras jurídicas constitucionais que assegurem mais completa adaptação social; 4) como todo círculo social só cresce mediante a vivência simultânea de (a) democracia, (b) liberdade e (c) igualdade, cada Constituição tem de levar em conta a realidade de seu povo, para não atrasar nem precipitar prematuramente o crescimento dele na marcha por esses três caminhos[21]; 5) de qualquer modo, a po­lítica científica tem de atender aos dados de cada círculo social e só tolerar novas regras corretivas de adaptação social median­te a prévia análise, e apurada, da correspondente matéria social (espaço-tempo-energia de n dimensões do respectivo sistema), evitando as soluções a priori, decorrentes de proposições racionalistas (absolutas, cognoscitivamente despóticas, retóricas); 6) não autoriza a Ciência que se perscrute a verdade (substancialismo racionalista) mas, sim que se apreendam proposições verdadeiras; isto é mais humilde que a pretensão metafísica de esgotar epistemologicamente o Universo, mas é o conhecimento efetivo a que chega o Homem[22]; 7) só essa modéstia resignada do conhecimento humano é capaz de livrar o espírito de abismos e de vaziamento; em verdade o método indutivo-experimental leva o homem a conhecer mais com segurança maior e fornece-lhe as leis mais gerais da natureza (princípio da determinação única, dilatação dos círculos sociais, diminuição do quantum despótico) que revelam às sociedades humanas o sentido e a orientação do mundo, e que são paradigmas para se saber um tanto mais sobre o acerto e o erro, o avançar e o recuar da vida humana (em religião, moral, arte, direito, política e economia). [23]

Todo esse conhecimento mais penetrante da realidade, conseguido pelo manejo magistral dos ramos da ciência moderna em muitas das suas profundezas, deságua na surpreendente visão sociológica de Pontes de Miranda já nos seus 40 anos de idade, distanciado de qualquer tirada retórica, avesso ao misticismo e aos vôos brilhantes, fáceis, da metafísica (em que o risco inconsciente de antropocentrismo é uma constante).

Haveremos de convir que os seus dotes físicos e psíquicos estão além do próprio conceito de incomum. Só o transbordamento e o mergulho criativo de Gênio é que poderiam ter apreendido tanto, e feito tamanhas e tão úteis descobertas, empurrando a Ciência para frente, queimando em vida etapas que costumam ser vencidas em centenas de anos por trabalho simultâneo de vários sábios. Não consta tenha havido até hoje outro pensador que aos 40 anos haja contribuído mais que Pontes para a educação[24], o direito, a política e a ciência do social em geral.

III — Domínio e aplicação da ciência (aspectos gerais)

Já acentuamos a assimilação ponteana de todo o caudal da ciência até os fins do século 20, desde as suas raízes. É uma característica frisante da produção do escritor. Essa totalidade de conhecimentos, de assimilação, de criticas e de descobertas, tudo isso publicado em obras de inexcedível rigor de método, já mostra que estamos diante de um Sábio.

Lendo-se um pouco das suas obras, vai-se tendo a impressão crescente de que não há campo científico de que ele não esteja a par. Não apenas como quem acompanha as revelações dos descobridores, mas como quem os acompanha nas descobertas mesmas, delas participando lado a lado com eles, no mesmo grau de domínio do material e da pesquisa, ou em grau superior (pelas correções que faz).

Cumpre destacar fatos pouco divulgados: 1) participava, como sócio e diretor, do "Instituto Manguinhos"; 2) fazia, com outros biólogos, experiências com caranguejos; 3) descobriu bactéria, que lhe levou o nome ("pontesia[25]); 4) foi o autor dos cálculos matemáticos da abreugrafia; 5) é o único latino-americano a figurar como sócio da "Association of Symbolic Logic"; 6) privou da admiração do matemático J. Petzoldt e foi amigo chegado de A. Einstein, cuja teoria da relatividade corrigiu e completou; 7) através de Einstein tornou-se amigo do ma­temático Goedel, a quem Einstein considerava o maior da história, depois de Leibnitz; 8) recomendado a Goedel por Eins­tein como homem de forte pendor para a matemática, Goedel expressou-lhe seu desagrado por se dedicar especialmente ao Direito; mas ao expor Pontes a Goedel a sua pesquisa sobre a classificação das ações e das sentenças (com base na mate­mática) [26], o judeu alemão retrucou-lhe que prosseguisse nas pesquisas do direito e que a classificação quinária era "produto perfeito da mente humana"; 9) o "Tratado das Ações", que Pontes considerava como o seu melhor livro, escrito du­rante mais de meio século, é todo fundado na matemática su­perior aplicada, e os cálculos correspondentes, se publicados, ocupariam dois tomos; 10) no campo da ciência jurídica, foi o primeiro escritor do mundo a aplicar ao direito, em todas as suas conseqüências, o método indutivo-experimental; 11) além da extensão das suas obras, ele entra tão profundamente nas questões teóricas do direito, e com tal precisão de análises, que aquilo que se não acha em autor nenhum, tem em Pon­tes solução exata e clara; 12) exaure, no direito, a crítica às teorias conhecidas sobre as mais diversas questões; 13) não existe outro autor que analise tão profunda e pormenorizadamente o direito romano, canônico e visigótico, além de versar com desconhecida erudição, em seus pormenores e em sua visão sistemática, o direito luso-brasileiro; 14) a análise a que submete o direito comparado é, de seu turno, tão variada, organizada e completa que mal se pode entender como, mesmo trabalhando doze horas diárias em media, pudesse encontrar tempo para preparar tão complexo fichário de fontes; 15) a questão de aproveitamento de tempo e ponto digno de estudo na sua história, tal a extensão das suas obras, a sua completude, a perfeição metodológica, a erudição, a análise de pormenores, a sistematização rigorosamente objetiva e imparcial das mais diversas teorias, em questões de historiografia, lingüística [27]), paleontologia, botânica, microfísica, química, biologia geral, psicologia experimental, etnografia, metodologia da investigação científica [28], história da filosofia [29], filosofia científica [30], sociologia científica [31] e ciência do direito [32].

Em rápidas pinceladas ai estão alguns traços de um gênio e sábio, que tanto amou o Brasil. Teria completado 100 anos em 23.04.92. Viveu durante quase 88 anos, dos quais mais de 70 gastou em pesquisar e produzir trabalho científico (além de alguma literatura de raro sabor).

O valor de Pontes de Miranda, ao que pensamos com outros estudiosos da sua obra, é ainda insondável. Ele entrou na História há muitos anos, pensamos também. Jamais sairá dela, espera-se. Seu trabalho decerto ficará como ficaram os de Heráclito, Parmênides, Platão, Aristóteles, Agostinho, Bacon, Tomás de Aquino, Grosseteste, Alberto Magno, Avicena, Dunz Scoto, Ockam, Suarez, Descartes, Pascal, Leibnitz, Newton, Marx, Avenarius, Mach, Planck, Petzoldt, Einstein, Husserln, Russell, Curie e as dos outros gênios e sábios. Como em outros casos, contudo (Vivaldi e Bach são exemplos), bem pode ser que vá levar tempo... A eficácia maior ou menor da obra ponteana na História, bem como a maior ou menor rapidez com que vai produzir resultados, é alguma coisa que depende dos brasileiros. Do governo e do Povo.

No seio do Povo estão os cultores da Ciência. E não só da Ciência. Também os homens devotados à Religião, os cultivadores da Moral, os amantes das Artes, os profissionais do Direito, os pesquisadores da Política, os estudiosos da Economia. Essas camadas pensantes da sociedade podem pressionar o conglomerado social no seu conjunto para que seja receptivo aos avanços marcado por um Gênio profícuo, por um Sábio operoso. Essa abertura de mentalidades e a revitalização da atividade representa progresso em cultura, no sentido de enriquecimento da vida nas suas dimensões mais importantes. Não há progresso material sólido sem que o ser humano se valorize nos demais espaços da sua realidade concreta. Aí se incluem a dimensão política, o avanço tecnológico e de pesquisa, o envolvimento artístico, o respeito pelo direito, a vivência moral e a ascensão religiosa.

Esse movimento biológico, tão complexo, que constitui o coexistir dos homens entre si, é a vida humana real. Suas defi­ciências e seus percalços são o muitíssimo que ainda resta de ignorância, erro e violência. O trabalho do Gênio e do Sábio serve continuamente ao aplainamento dessas dificuldades. O desbaste das quinas vivas e a adaptação crescente das realidades entre si são o que faz a vida melhor: é progresso e cultura.

Um Povo, mais livre e mais igual, ao pensar e discutir os seus próprios problemas e soluções, cultiva a democracia. O governo do Estado é apenas instrumento da vida do Povo. A inversão dessas funções é retrocesso; amiúde incidem nele muitos povos. De modo que, para servir ao Povo, ao governo convém também tomar iniciativas para conservar essas obras de Pontes de Miranda, e propagá-las — reeditar, editar as não-publicadas, propagar o nome e os trabalhos do autor. O tempo encarregar-se-á por certo de mostrar que pouco brasileiro terá feito tanto por sua Pátria. Cumpre abreviar esse tempo, encurtando-o para que a Pátria de hoje não míngüe, sofra menos, cresça menos retardada no seu desenvolvimento. Eis o destino que lhe abriu, com as bases últimas da Ciência, esse verdadeiro Gênio do Brasil e legítimo Sábio das Américas, ainda tão pouco valorizado.

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[1] Este trabalho já fora publicado em papel, com poucas diferenças. Ver OLIVEIRA, Mozar Costa de. Pontes de Miranda, Gênio e Sábio. “Revista da Faculdade de Direito de Caruaru” (PE) — Direção de Pinto Ferreira —, ano XXIII, n. 17, 1986.

[2] De 23.04.1892, Mutange (AL) a 22.12.1979 (RJ).

[4] PONTES DE MIRANDA, Biobibliografia, Homenagem da Editora Forense, pags. 7/9; Semana do Advogado de 1970 (OAB, Secção do Rio Grande do Sul, pags. 13-24).

[5] Ver Introdução à Política Científica (Garnier, Paris, 1924), pags. 8-150.

[6] Ver O Problema Fundamental do Conhecimento, 1972, 2ª. edição, Borsoi, pags. 21-28, 43-47, 55-66, 69-81, 86-105, 135-170, 196-209, 230-232, 259-275.

[7] Introdução à Sociologia Geral, Pimenta de Mello & Cia., 1926 — 1º Prêmio da Academia Brasileira de Letras.

[8] Introdução a Sociologia Geral, pags. 87-156.

[9] Ibidem, p. 157-173.

[10] Ver o nosso Pontes de Miranda: uma vida pelo Direito, in Revista do C.C.J.E.A. — Universidade Federal de Santa MariaRS, pag. 116.

[11] Os dois enunciados são uma constante das suas obras sociológicas e especificamente nas jurídicas. Delas extraiu no correr dos anos proposições como: a metafísica pertence ao processo religioso (com alguns elementos de Ciência) e não ao processo científico de adaptação social; a mentalidade racionalista (por ser apriorística, dedutivista, escolástica), por querer a tudo abarcar (sem a indicação segura dos fatos), é mais conducente a erros multifários que a humildade da mentalidade empírica (já esta é descontínua, esparsa, experiencial, singularizante). Ambas somente se suplantam pelo método indutivo-experimental: 1) observar, reduzir, simplificar e, então, se possível, 2) generalizar, mas 3) voltando aos fatos singulares, diacrônica e sincronicamente, com as regras gerais acabada de extrair. De modo que, em virtude da evolução e da relatividade, a todo rigor, assim nas ciências físicas e biológicas como em sociologia (e, portanto, no Direito) o sentido e a orientação das regras dos vários processos de adaptação social (das regras jurídicas, por exemplo) só se podem conhecer com segurança através da análise das relações sociológicas; nunca de fórmulas abstratas ou de princípios a priori, antropocêntricos. A rigor as leis são, em verdade, apenas de valor estatístico, embora confiáveis e indispensáveis para a vida humana em cada estádio ou fase das civilizações. Novamente aqui, pois, a regra geral da teoria da relatividade: espaço-tempo-energia. Todos os processos sociais de adaptação são energia: ou seguram, ou empuxam, ou dão marcha a ré durante os vaivens dos jatos de espaço e de tempo da atividade humana na história.

[12] Ver o nosso Pontes de Miranda, uma Vida pelo Direito in Revista do C.C.J.E.A. (Univ. Fed. de Santa Maria-RS), passim.

[13] Edit. Francisco Alves & Cia., em 220 páginas.

[14] “Não tivestes modelos [...], criastes a ciência, que outros apenas entreviram”. Ver Jornal do Comércio, de 11.02.1923, segundo palavras do editor na 2ª edição do Sistema de ciência positiva do direito, 1972, páginas XIII-XIV.

[15] O livro Sabedoria dos Instintos já estava pronto em 1913 (ver Pontes de Miranda, Obras Literárias, J. Olympio 1.960, advertência da 1ª. edição).

[16] Também A Sabedoria da Inteligência é fruto de meditações anteriores a idade de 23 anos do autor (Obras Literárias, J. Olympio Edit. 1.960, pg. 143).

[17] Ver Sistema da Ciência Positiva do Direito, 2ª edição, pág. XIII. Leia-se também, com grifo nosso: “Do precursor de Einstein, o matemático e físico Joseph Petzoldt, o mestre recebeu em uma longa carta, a seguinte observação: "Fizestes-me grande alegria com a remessa da vossa obra assombrosa. Digo-vos, por isso, o meu mais profundo agradecimento. Estou surpreso, não só de haverdes profundo agradecimento. Estou surpreso, não só de haverdes perlustrado a extraordinária abundância da literatura cientifica dos domínios mais deferentes, como também difíceis, como o da teoria da relatividade, e fico muito contente de poder expressar-vos toda minha maior simpatia pelo que concerne ao vosso ponto de vista biológico. Mui particularmente, estou eu de acordo com terdes feito fundamento da vossa teoria o princípio da determinação única (Eindeutigkeit) e da estabilidade".Para escrever esta obra em quatro volumes (2ª ed.), o mestre trabalhou com exatamente 1.618 outras obras.No lançamento da obra, durante banquete que lhe foi oferecido, Clóvis Beviláqua o considerou como um "verdadeiro mestre do direito". In >> http://www.trt19.jus.br/mpm/secaopatrono/vida.htm#. [acesso em 05/08/2009].

[18] Ibidem, pág. XII.

[19] PONTES DE MIRANDA, Vorstellung vom Raume, Atti del V Congresso I de Filosofia, Napoli, 1.924, p. 559-566.

[20] Ver o discurso do advogado Dr. Alter Cintra de Oliveira — Semana do Advogado, OAB do RS, 1970, p.17.

[21] Democracia, Liberdade e Igualdade — os três Caminhos, Livraria J. Olympio Edit., 1.945, 1ª edição, págs. 629-643; Os Fundamen­tais atuais do Direito Constitucional, Freitas Bastos, 1.932, págs. 285-406.

[22] O problema fundamental do conhecimento, 2ª edição. Borsoi, 1.972, págs. 195-196, 245 e 263-264.

[23] Por aí se vêem as promissoras perspectivas e o valor histórico concreto das descobertas ponteanas para se fazer o julgamento, a “avaliação” de humanismos, filosofias e ideologias. Diga-se o mesmo em relação ao direito, à moral, à economia e à política. Afortunadamente.

[24] Tocantemente à educação em geral e, particularmente para a psicologia e a psicanálise, é de assinalar-se o livro desaparecido — Methodo de Analyse Sócio-psychologica, editado em 1.925 — do qual nenhum exemplar se conhece mais. Nem o próprio Pon­tes o tinha desde havia muitos anos. Conservam-se fragmentos, e trechos em alemão, e em inglês. O psiquiatra Sá Carneiro, em conferência dada no Rio alguns anos depois, afirmava que a psicanálise freudiana seria revolucionada quando se entendessem e se aplicassem a psicanálise e a psicoterapia as descobertas ponteanas sobre os sete principais processos de adaptação social (Religião, Moral, Arte, Ciência, Direito, Política e Economia). São notáveis os cálculos das cargas dos vários processos de adapta­ção em pessoas diferentes entre as quais parecem ter figurado Epitácio Pessoa e Luiz Carlos Prestes (entre outros) por Pontes examinados na indução e na experimentação do método. Ponto central e a relevância dos diferentes depósitos sociais encontráveis em cada indivíduo (peso de Religião, Moral, Arte, Ciência, Di­reito, Política e Economia).

[25] Parece, pois, sem relação com a “pontesia” de Hasselmann,1926

[26] A classificação é a quinária, não por essência, mas por peso ou carga preponderante (e sem que a ação de certa classe corresponda, co-extensivamente, sentença de classe idêntica): declaratória (positiva e negativa), constitutiva (positiva ou negativa) condenatória, mandamental (positiva e negativa) e executiva. É o conteúdo dos sete tomos do Tratado das Ações (Edit. RT) a que se dedicou desde 1918 (mais de 50 anos de pesquisa) — ver J. H. Corrêa Telles, Doutrina das Acções, edição íntegra, annotada, de accordo com o Código Civil Brasileiro pelo Advogado Dr. PONTES DE MIRANDA, ed. Jacintho R. dos Santos, Rio, 1918, pág. 7.

[27] Em Garra, Mão e Dedo, Martins Edit. S. A., 1953, persegue os étimos ou raízes das palavras até as longínquas vozes dos animais (ver ps. 4-8. 28-30, 45-47, 51, etc.).

[28] Ver Sistema da Ciência Positiva do Direito, 2ª ed., Borsoi. T. IV, pag. 362.

[29] Ibidem, 2ª ed., Borsoi. T. III, págs. 167-247; O problema fundamental do conhecimento, 2ª edição, Borsoi, págs. 35-52, 107-136, 207-214.

[30] Além de Garra, Mão e Dedo e O problema fundamental do conhecimento, há a importante Vorstellung vom Raume (Atti del V Congresso Internazionale di Filosofia — 1924), Napoli (1925), págs. 559-566; é onde corrigiu, completando-a, a teoria da relatividade de Einstein, como vimos.

[31] Introducção à Política Scientifica (1924); Methodo de Analyse Socio-psychologica (1925); Los principios y Leys de Simetria en la Sociología General (Madrid, 1925); Introdução à Sociologia Geral (1926); Democracia, Liberdade e Igualdade — os três Caminhos (1945) e vários livros sobre os novos direitos do homem, de 1933 (três lustros antes da carta da ONU). Saliente-se que deixou preparada a sociologia da estética e muitos apontamentos para as outras sociologias particulares: da religião, da moral, do direito, da política, da economia e sobre problemas atuais da ciência. Pretendia escrevê-los a partir de 1980, ao modo como apontamos.

[32] Foi no direito que Pontes de Miranda mais se tornou conhecido, mesmo fora do Brasil: constitucional (5 obras), direito internacional privado (3 obras: uma publicada no Brasil, outra na Holanda e a terceira na Grécia), direito privado (9 obras), teoria geral do direito (cerca de 10 obras, algumas publicadas na Alemanha e na Suíça), processo civil (3 obras principais, sendo uma com 15 e outra com 16 tomos), pareceres diversos (18 tomos). Valha observar que publicou comentários a todas as Constituições do Brasil desde 1934, sendo que a de 1946 abrangeu 8 tomos e a de 1967 (Emenda 1/69) foi a 6 tomos.

Nota-se ainda, que o Tratado de Direito Privado (Borsoi) tem 60 tomos, onde são citadas 11.728 obras jurídicas diferentes, e 193 não jurídicas. E o autor deixou material preparado para uma 2ª edição aumentada que elevaria essa obra para cerca de 100 volumes. Já o Tratado das Ações, Editora Revista dos Tribunais S. A., é de sete tomos, e custou ao autor mais de 50 anos de pesquisa e de cálculo. Considerava-o como o seu melhor livro.