sexta-feira, 31 de julho de 2009

HONDURAS: uma deposição legal e não um golpe de Estado

HONDURAS: uma deposição legal e não um golpe de Estado

País algum pode viver em paz sem respeito ao direito constitucional. O ex-presidente de Honduras, Zellaya, foi deposto porque atentou contra o direito constitucional do seu povo. No dia 23.06.09 o Congresso hondurenho havia aprovado lei proibitiva de referendos ou plebiscitos em até 180 dias antes ou depois de eleições, mas Zelaya tentou um referendum para ser re-eleito (mais quatro anos). Esta tentativa de fazer uma consulta popular para reformar a Constituição, no sentido de permitir-lhe um novo mandato, foi declarada ilegal pelo “Corte Suprema de Justicia” do país — contrariava a dita lei válida e a Constituição mesma. A deposição de Zelaya no dia 28.06.09 foi igualmente decretada pelo órgão judiciário nacional máximo, cuja ordem ia ser cumprida pelos militares. Zelaya resistiu-lhes e só então foi preso pelo exército cujo comandante depusera e a quem “Corte Suprema de Justicia” reintegrou no cargo.

Diz a Constituição hondurenha no artigo quatro que a alternância na presidência é obrigatória, e quem atentar contra estar norma comete crime de “traición a la Patria”. Vigem ali outras normas relevantes quanto ao ato ilegal do ex-presidente: perde a própria cidadania quem “incitar, promover o apoyar el continuismo o la reelección del Presidente” (42, item 5); o dever de número um do presidente é cumprir a Constituição (artigo 241, 1); Honduras tem Congresso, composto por deputados diretamente eleitos para quatro anos de mandato (artigo 189); o judiciário tem como órgãos máximos a “Corte Suprema de Justicia” e o “Tribunal Nacional de Elecciones”; a “Corte Suprema de Justicia” compõe-se de nove membros escolhidos pelo Congresso (artigo 303-305); é este tribunal supremo que julga os atos ilícitos do presidente da república (artigo 319,1); os militares da ativa são inelegíveis (artigo 240, item 1); é militar quem tiver função no “Alto Mando, Ejército, Fuerza Aérea, Fuerza Naval, Fuerza de Seguridad Pública”, além de alguns outros organismos menores (artigo 273); compete às Forças Armadas defender “la alternabilidad en el ejercicio de la Presidencia de la República” (artigo 272); a reforma da Constituição compete ao Congresso Nacional e nunca pode alcançar, entre outros artigos, “los artículos constitucionales que se refieren [...] al período presidencial” — que é só de quatro anos — (artigo 374). De modo que Zelaya perdeu o cargo por ordem judicial fundada na Constituição vigente naquele país. Ou seja, Zelaya foi deposto por haver atentado contra a Constituição democrática de janeiro de 1982. Cometeu ato ilícito. A eficácia jurídica desse seu ato contrário a direito está prevista: perde o cargo. Isto longe está de ser golpe de estado: é aplicação do direito constitucional.

Todos os povos ganham quando respeitam o direito. (Também no Brasil, se fôssemos mais sérios, seria assim — o atentado contra a nossa Constituição Federal segundo o artigo 85. A perda do cargo está prevista na nossa lei de nº 1.079, de 10 de abril de 1950, ainda vigente com algumas modificações).

Não houve golpe de estado. Ao contrário, os poderes constituídos evitaram que Zelaya praticasse, ele sim, o seu golpe personalista contra a própria Constituição. Espanta por isso toda a atual movimentação internacional contra Honduras. É sem razão de ser. Cumpre primeiro saber o que é uma Constituição e lembrar a velha regra jurídica supra-estatal de não-intervenção. Esse apoio prático ao ex-presidente, legitimamente deposto por ordem judicial, funciona como um ato branco de intervenção, supra-estatalmente vedado desde pelo menos o ano de 1948 (Carta da ONU). Contradizem-se nos dias de hoje a própria ONU, a OEA e muitos países, incluído o Brasil; cometeram injustiça grave contra Honduras. Não deve ser este, porém, o estado atual da civilização no Ocidente. Sobranceiro aos anseios políticos, carregados de paixão interesseira, o primado há de ser do Direito, responsável pela paz estável.

Mozar Costa de Oliveira

(Mestre e doutor em direito)

terça-feira, 7 de julho de 2009

A DOGMÁTICA JURÍDICA, A TEORIA GERAL DO DIREITO E AS IDEOLOGIAS

A DOGMÁTICA JURÍDICA, A TEORIA GERAL DO DIREITO E AS IDEOLOGIAS

Resumo:

(I – Teoria do direito e matéria social — 1) Teoria do direito e tradição; 2) Construção teórica (duas fases). II – A dogmática jurídica — 1) Primeira metade do Séc. XX (estruturação) 2) A partir dos anos 60 (crítica). A) Universidade de Frankfurt; B) Universidade de Wisconsin; C) Universidade de S. Paulo. III – Transformação social e direito — 1) problemática e evolução; 2) Teoria do direito e dogmática jurídica (função e alcance). IV – A ideologia e os seus desacertos.

Conclusões.

I – TEORIA DO DIREITO E MATÉRIA SOCIAL

1) Teoria do direito e tradição.

1.1 – Mentalidade científica na Alemanha.

Deve-se sobretudo ao movimento alemão das Pandectas um dos mais vigorosos esforços já enviados para se obter uma visão geral sobre o direito, pelo método da redução da complexidade do material jurídico, herdado especialmente do “Corpus Juris Civilis”, [1] e sem perder o pé da realidade extra-mental, ou quase isto. Lembremos aí os nomes de Savigny, Wach, Jellinek, Winscheid, Gierke. Tiveram o mérito de introduzir maior clareza, superior precisão conceitual e mais exatidão de terminologia no mundo do discurso jurídico. Esse momento, unido ao da escola de exegese, exerceu influências poderosas no Brasil, inclusive na própria elaboração do nosso Código Civil, através de C. Bevilácqua[2].

Essa almejada precisão de conceitos veio a bom tempo, no que se refere à segurança das expectativas no mundo jurídico, mormente no tocante ao direito privado. Depois, por extensão, e graças à obra de outros juristas particularmente dedicados ao direito público, espraiou-se também aos demais domínios do Direito — constitucional, administrativo, penal, processual e, mais modernamente, ao direito tributário. O clima cultural da ciência alemã, impregnada de exame dos fatos extra-mentais, livrou essa tendência científica das sendas perdidas do pensamento filosofante, vazio de realidades como é próprio do racionalismo — esta idade juvenil do pensamento do homem.

1.2 – Racionalidade formal.

É sabido que se tem aí, em termos da análise sociológica de M. Weber, o fenômeno típico da racionalização formal, de tal sorte que se instrumentalizassem lógico-formalmente técnicas intelectuais capazes de realizar uma aperfeiçoada concatenação de “meios-fins”, em função de uma maior eficiência no tratamento sistemático das palavras, dos conceitos, dos institutos, das categorias [3].

Buscou-se com isso a fundamentação racional do direito mediante o assentamento de princípios, cuja compreensão serviu aos gestos fecundos da pesquisa, alcançando-se ao sentido do mundo normativo, cuja estruturação lógica de significados, propiciasse a segurança extrínseca, havida como típica do direito como instância de formação e de evolução social [4].

1.3 – Técnica.

O apuramento da técnica é determinado por verdadeira economia do pensamento, num processo típico de redução de complexidades [5]. Em verdade, porém, ao fim da primeira década deste século um clássico já denunciava latejarem nos “princípios”, encobertas e dissimuladas, reações instintivas e irracionais [6].

Entre os defeitos das técnicas conscientes e inconscientes, de que se serviram quase todos os juristas dessas correntes do pensamento, já há muito que se criticarem alguns, como a restrição das fontes do direito quase que exclusivamente à lei escrita, em lugar de se ver nela um simples meio técnico de fixação de parcela do direito.

1.4- Crítica ao legalismo.

Esse absolutismo da lei foi particularmente criticado como um dos exageros de Windscheid e de Binding, de modo especial por causa do falso dogma da plenitude lógica do direito (“Geschlossenheit”), acompanhado de outro — o da legalidade integral do próprio Estado de Direito. A construção lógica de um “Estado de Direito”, como fonte única de interpretação da ordem jurídica, na dimensão da calculabilidade das ações sociais, foi panorama que seduziu mais tarde a Fuchs e H. Kelsen. A hipótese, atraente, levaria a atividade do intérprete à simplicidade operacional da quase pura subsunção lógica e dedutibilidade de conseqüências, de efeitos, de eficácia. Cumpre porém lembrar também que, ainda no fim do século passado e depois, mais vigorosamente, no século XX, essa posição legalista foi criticada, entre outros por Stier-Somlo e Oertmann. Propugnou-se uma elaboração mais aprofundada da teoria jurídica, com os trabalhos de Zittelmann, Jung, Eherlich (livre pesquisa), Hellwig (os atos jurídicos como fonte mesma do direito), T. Sternburg (criação consciente do sentido do direito, a confundir-se com a própria ordem jurídica). No Brasil avulta a obra de Pontes de Miranda, pelo despontar do princípio da “predominância crescente do espírito independente” do pesquisador do direito, da “democratização da interpretação”, e fundamentalmente, a mentalidade do método inductivo-experimental na pesquisa do sentido e da orientação da regra jurídica mediante a investigação do conteúdo das relações sociais [7].

1.5 – Crítica ao conceitualismo.

Também a crítica dos conceitos em face da sua relatividade e da relatividade da linguagem, foi empreendida por Eisele e por Saleilles. Essa relatividade liga-se por certo às forças sutilmente penetrantes da ideologia no palco trágico em que se processa a luta do homem no ato de conhecer “objetivamente”, “imparcialmente”, com “cientificidade absoluta”.

Essas grandes estocadas no simplismo quase-lógico de espírito exegético-pandectista afrouxaram o rigorismo da racionalidade formal. Contribuíram para que se diluísse, no seu tanto, a ilusão da perenidade das classificações e a da natureza absoluta dos conceitos jurídicos. Aproximou-se o Direito, então, sociologicamente, de uma admissão — ao menos nos meios acadêmicos da França (F. Gény) e especialmente da Alemanha nas quatro primeiras décadas do século XX — de ser ele apenas uma dentre muitas dimensões de estrutura da sociedade e do Estado.

Pôde então, mesmo fora dos arraiais do “freies Recht”, apregoar-se a necessidade de se interpretarem os fatos jurídicos, e de serem ele julgados, mesmo “contra legem”: sempre que a matéria social mesma, apreendida com rigor (sem se alijarem nem a história nem a lingüística), mudar de estrutura em cada caso surgido (“caso concreto”). Significava já isto que os movimentos inegáveis de exigências das demais instâncias de formação social (como a moral e a economia), podem decidir, eles próprios, que o processo dinâmico da vida social altere a estrutura dela. Assim, modificada a qualidade da matéria, não há como se conservar a descrição da sua forma: “cessante ratione legis cessat lex ipsa”. Esse princípio operará na interpretação da sistemática das normas jurídicas como funciona a cláusula rebus sic stantibus em determinados negócios jurídicos [8].

2) Construção teórica (duas fases).

2.1 – Esquemas de explicação.

Seja como for, após o ingente esforço da pesquisa jurídica, intensificada com o debate da escola pandectista e da exegese (às voltas com seu debate particular com a escola histórica), e com mais todo o enorme enriquecimento que a ambas se seguiu, superando-as em produção e originalidade neste século, chegou-se a grande perfeição formal no âmbito do Direito. Traçaram-se os esquemas fundamentais da visão teórica do fenômeno jurídico. Melhor diremos, vários foram os esquemas de explicação sistematizadora da própria ocorrência do fato jurígeno — que, em verdade, não se satisfazia de todo com as abstrações formais.

Para nos restringirmos aos trabalhos desenvolvidos na Alemanha e em círculo restrito no Brasil — e, apenas por questão de espaço, pondo entre parênteses metodologicamente a importante concepção quase que tipicamente latina das duas tridimensionalidades, genérica e específica —, cumpre destacar a precisão, aliada à generalidade funcional, da concepção de n dimensões, presente na assim chamada dicotomia de “suporte fático” (“Tatbestand”) e “regra jurídica” (“Regel” ou “Norm”); “dois” (em verdade n) elementos que, acoplados, constituem o fato jurígeno, ou seja, o fato jurídico.

2.2 – Esquema binário fundamental e as derivações falseáveis.

A teoria geral do direito serve-se desse aparente binário (regra jurídica – suporte fático) para classificar as regras jurídicas e iniciar a classificação dos suportes fáticos. Segue-se-lhe a classificação (quinária) dos fatos jurídicos: o negócio jurídico, o ato jurídico “stricto sensu”, o ato-fato jurídico, o fato jurídico em sentido estrito e o ato ilícito. Em seqüência, aprofundando-se na matéria sociológico-jurídica, a teoria — que se apresenta à livre crítica, dotada de rico cabedal histórico, com foros de científica —, estuda os fatos jurídicos em três planos distintos, que de certo modo são logicamente sucessivos: o plano da existência-inexistência, o plano da validade-invalidade (com a fundamental distinção, no direito material, entre nulidade e anulabilidade) e o plano da eficácia-ineficácia. Neste último plano dos fatos do direito foram descobertas quatro eficácias, todas elas a indicarem relações jurídicas: direito-dever, pretensão-obrigação, ação-sujeição, exceção-abstenção. A teoria (inegavelmente de alta praticidade, como o demonstra a própria jurisprudência brasileira) vai por diante com a classificação dos direitos, dos deveres, das pretensões, das obrigações, das ações e das exceções. Pesquisa, transubjetiva passou a revelar, organizar, interpretar; e aplica a ordem jurídica, trabalhando com esses elementos penosamente induzidos do material jurídico (não imposto sobre ele). São “falseáveis” porque o método pode sujeitar a testes todos os resultados obtidos e examinar se são falsos ou se são verdadeiros. Por outras palavras: trata-se de proposições cujo conteúdo se pode conhecer como sendo ou de produção ideológica (mais passional), que se tem de rejeitar, ou de produção do espírito livre (não dominada pela inspiração passional) que se há de acolher.

2.3 – O método indutivo-experimental.

A travação rigorosa dessas categorias, uma vez observado o requisito da lógica material (indução-experimentação, a começar pela própria operação gnosiológica), vem a fundar, com o auxílio de elementos sociológicos inabluíveis, uma dogmática jurídica de confiança. Será ela então dotada de grande segurança para o jurista, com descortino amplo de “ações” sociais, as intersistemáticas (direito das gentes e sobredireito) e as intra-sistemáticas (do direito constitucional para baixo, contando também com as regras não-escritas). Entremeiam-se, assim enriquecendo-se, a teoria geral do direito e a dogmática jurídica, cujas raízes, embora sociologicamente longínquas, têm contactos com o movimento a que aludimos no início — as Pandectas. Por elas, liga-se ao direito romano. Este, altamente individualista, tem que ser profundamente reformulado. A maior segurança em adaptação tão profunda há de contar com o caminho atualizado das ciências. A consecução de uma teoria geral do direito, a um tempo extra-subjetiva e pratico-funcional, firmou-se no direito romano individualista. É necessária uma vigilância constante da razão científica (pelo método indutivo-experimental) para não se generalizarem essas concepções incompatíveis com os movimentos sociais rompedores das barreiras classistas. Temos de manter as categorias descobertas, como fato jurídico, suporte fático, regra jurídica, os três planos em que naturalmente se têm de examinar os fatos jurídicos etc. Mas, sem fixar no tempo presente o que já foi superado pelo tempo passado, ou seja, ideologizado inconscientemente em capital, trabalho, direito, esquerda, indivíduo, coletivo, bom e mau, bem e mal.

Esta tarefa de libertação intelectual é difícil porque a ideologia é pegajosa; exigem-se, amadurecimento da inteligência e esforço árduo de respeito à pessoa, para superá-la. Salvo algumas exceções, é ainda mais difícil nas pessoas mais jovens, menos experientes no trato com gente e com livros de ciência.

2.4 – Os processos sociais de adaptação.

Deixamos claro que a teoria do direito a que nos referimos não é a binária, no seu conteúdo. É, ao contrário, tão plural que apresenta combinações de n possibilidades, porque inclui necessariamente com todos os valores das instâncias de formação social. Entram no fato jurídico, quaisquer das energias dos vários processos sociais de adaptação social, sem que se possa “a priori” privilegiar um em relação aos demais. Escolher tal “a priori” seria o gosto, por exemplo, de um marxista ortodoxo no tocante à economia; ou de um jusnaturalista escolástico quanto à moral ou à religião. Assim seria quanto ao mais: seja a estética, seja a ciência, seja a política — todos esses processos de adaptação social serão “valores” encontráveis nas regras jurídicas ao serem elas abertas à exegese, com o fito de se lhes descobrirem a orientação (o que captam da matéria social complexa) e o sentido (se vão para o “indivíduo”, ou se mais para a “sociedade” toda). Ora, um dos elementos sociais com que opera — e temos aí também um importante processo social de adaptação — é a linguagem.

2.5. – Linguagem e evolução.

Quem fala de linguagem fala necessariamente de tradição; e de história do animal social. A palavra é sinal (notação) por trás do qual está o conceito. Palavra e conceito são ambos exteriorizações do esforço técnico com que o animal (social que é), procura captar a realidade do seu ambiente — no qual é, a um tempo, receptor e agente. Ocorre na palavra, e no conceito, o fenômeno da seleção, que é umas das leis de formação social. Por isso — já acentuara E. Mach — em cada conceito há uma história por vezes milenar (“Erkenntnnis und Irrtum”, Leipzig, 1920, p. 126). Nos dias de hoje é sabido como a linguagem tem merecido estudos aprofundados. Frisa J. Habermas que determinado sistema social se mantém, nas trocas com a natureza ambiente, mediante ações instrumentais de técnica; e o faz internamente mediante ações comunicativas que ocorrem segundo normas válidas. A estruturação da validade aparece na linguagem intersubjetiva, cujos conteúdos são controlados por uma linguagem metacomunicacional sobre as relações interpessoais.

2.6 – Efeito transformador da linguagem.

Assim continua Habermas — a linguagem funciona como uma espécie de transformador: os processos psíquicos são colocados dentro de uma estrutura de intersubjetividade comunicativa e com isso os episódios íntimos são transformadores em conteúdos intencionais. O conhecimento converte-se em proposições e as necessidades (e os sentimentos) transmudam-se em expectativas normativas — que são preceitos e valores. Daí duplo fenômeno: o da subjetividade da experiência psíquica e o da exigência de generalidade — a objetividade do conhecimento e a legitimação de normas válidas. O duplo fenômeno da subjetividade da experiência psíquica, com mais o da exigência de generalidade (“Allgemeinheitsanspruch”), é o que assegura o “significado comunitário” (“Gemeinsamkeit”).

Essa análise de J. Habermas [9] deixa entrever a intensa troca de “valores” que a linguagem veicula, como transformador social, no seu vaivém de conceitos recebidos e entregues, de agente social para agente social. Transmitem-se destarte historicamente, por passagem, por entrega (“traditio”) de modo incessante e quase imperceptível, os legados e as heranças de valores, de idéia-força, de comandos, de situações de subjugação, de despotismo, de ideologias dominadoras — algumas mensagens mais fortemente dominadoras e individualistas que outras. Estas idéias-força atuam como defesa dos indivíduos e dos grupos. Livrar-se desses escudos protetores parece ser um risco e não uma obra libertadora das personalidades. Por isso se pode dizer que as ideologias são semelhantes às religiões e aos sistemas morais no que estes dois processos sociais de adaptação têm de estabilização, de resistência a mudanças.

2.7 – Linguagem e irracionalidade.

Acentua igualmente J. Habermas[10] que as mais profundas mensagens, tocantemente à massa das representações psíquicas, são as da tradição cultural, de tal modo portanto que paralelamente com os legados de aprendizado de ciência (conhecimento mais objetivo, mais imparcial), temos as vivências especialmente espontâneas, naturais, “não-planejadas”: são as experiências intersubjetivas de religião, de ética e de estética, mesmo com os acréscimos de hermenêutica consciente. Todas elas são sensíveis à intervenção estatal, cercada aí de suspeita e de exigência de legitimidade.

Ora, essa análise de professor de Frankfurt confirma com riqueza de dados a historicidade da linguagem, bem como a sua carga ideológica. Chama a atenção para a necessária cautela com que se hão de examinar as próprias categorias jurídicas tradicionais arguta e oportunamente construídas pela teoria do direito: elas tecem a sua construção eidética com a necessária mediação de mensagens lingüísticas e conceitos, diz o autor. A crítica às bases dinâmicas das segundas intenções, latentes nas ideologias, tem de ser levada a cabo quando se tem o intuito de descobrir as injustiças sociais transmitidas de geração em geração por meio do próprio discurso jurídico. Identificadas as distorções esse intenso trabalho de racionalização formal ficará exposto a exigências de retificação impostas pela racionalidade material ou substantiva. Sempre que o magistrado para cumprir a prestação jurisdicional, em cujo bojo latejam conflitos entre conceitos possivelmente antagônicos, há um estremecimento dos neuríolos com algum receio de errar — de se afastar das ideologias desconhecidamente encravadas. Em geral, o esfriamento necessário para o julgamento converte-se, pervertidamente, em na afirmação de ele ser um órgão sempre neutro perante os valores do universo circundante. E a sua situação pessoal piora porque cresce o orgulho.

2.8 – Justiça material

A teoria geral do direito poderá destarte travar em parte a continuidade de explorações, desajustes, dominações. A experiência das sociedades em que floresceu a sociedade industrial é no sentido de ser de mister buscarem-se caminhos que, no binômio segurança-justiça, assegurem sim o primeiro elemento, mas com esforço eficaz de aumento do segundo — Isto há de ocorrer em todos os setores da vida social: político, econômico e cultural [11].

Essa atividade de crítica deve informar o aprendizado do sistema jurídico de todas as sociedades, mormente as que se encontram em estágio de desenvolvimento, por modo tal que o esforço de racionalidade formal (eficiência e sucesso na solução do problema “meios-fins”) seja conscientemente acompanhado de racionalização material, ou seja, de desconcentração do poder, distribuição do produto social e integração do sistema, mediante o enriquecimento pluridimensional de toda a população em democracia, liberdade e maior igualdade. Nos cursos de graduação em direito (e nos cursos internos das carreiras jurídicas públicas) uma disciplina importante é sobre a ideologia: o que é este fenômeno social, como explicitá-la em vez de negá-la, os desvios que pode causar ao aprendizado, à exegese e à aplicação de qualquer sistema jurídico, como se lhe podem corrigir os efeitos danosos etc.

Estaremos, linhas abaixo, a apontar algumas pistas de reflexão, conducentes à transição social de uma sociedade desfigurada pela excessiva dominação tradicional de poucos sobre os muitos, seja a dominação praticada pela “direita” seja pelo “esquerda”. Será dada atenção especial ao papel da crítica na operacionalidade da teoria geral do direito e da dogmática jurídica.

Temos hoje na Constituição Federal de 1988 o inestimável préstimo do conceito de Justiça, dignidade, pessoa e solidariedade (preâmbulo, art. 1º-III e 3º-I). Figuram na introdução da sistemática constitucional e nos seus fundamentos. Esses conceitos são de direito material. Logo, temos na Constituição mesma regras jurídicas de exegese de todo o sistema jurídico nacional. Tal a espécie “justiça”, para além das formas e fórmulas.

II – A DOGMÁTICA JURÍDICA

1) Primeira metade do século XX (estruturação)

Na ciência do direito trabalha-se sobretudo com os fundamentos metajurídicos do direito, havido este como estrato da formação social, ou seja, um processo social de adaptação que se permeia nos demais, cujo o conjunto delas forma o todo da realidade sociológica: são os sistemas religiosos, sistemas morais, sistemas estéticos, sistemas de conhecimento (ciência), sistemas econômicos e sistemas políticos. Com o direito, constituem eles os principais processos sociais de adaptação.

Na teoria do direito (theoréin= ver) manipula-se o material social no intuito de se extraírem categorias que correspondam às várias classes de relações jurídicas, de tal ordem que se logre por essa via a cosmicidade — digamos assim — da congérie, plural e quase desconcertante, desse fervilhar opulento, que é a vida social. Busca-se localizar o fenômeno jurídico em meio ao risco cipoal da vida societária dos homens, nas trocas com a natureza circundante, e entre si.

A dogmática jurídica é como que uma fase lógica e tecnicamente posterior mas imprescindível, nessa luta epistemológica do animal social, no afã de dominar o real, de que é parte atuante, em círculos sociais e complexos. Tal a diversidade de sistemas e subsistemas de diferentes colorações, qualidades e intensidades, que sacodem a vida na qual o nosso real é o que é.

O intuito dogmático é eminentemente construtivo, no sentido de formar um corpo doutrinário coerente, a partir dos dados colhidos pela investigação da ciência do direito e já selecionados e organizados, com maior clareza e com mais precisão pela teoria do direito. Supõe-se o conhecimento das regras ou normas jurídicas e a sua classificação, presuntivamente a corresponder à facticidade dos fenômenos jurídicos. Parte ela, ainda, de certos conceitos recebidos da teoria do direito a respeito de valores prevalentes, que a tradição recolheu, acumulou e que eventualmente terão sido ainda mais enriquecidos pela evolução, no seu estágio atual. Continua ela a tarefa de se interpretarem “significados”, organizados em painel de coerência lógica, de tal modo que o resultado dessa técnica tenha a dimensão pragmática de instrumental destinado à operacionalidade da exegese e da aplicação do sistema jurídico, em cada uma das suas normas, guardada a coerência formal e o equilíbrio funcional. Liga-se portanto, fortemente, à técnica jurídica esse ingente esforço de construção dogmática.

Ora, um dos primeiros princípios apontados para a construção dogmática corresponde ao que H. Kelsen chamou de “Grundnorm”, já inserido no maior campo do direito, que é o direito das gentes — “pacta sunt servanda” (KELSEN, H. Teoria pura do direito, 3ª ed. Coimbra: Armênio Amado, 1974, p. 21-28 e 267-308). A norma fundamental, por ser norma, localiza-se logicamente dentro da teoria do direito. Mas o princípio dogmático correspondente a ela é o do “respeito à palavra dada”. Ele há de inspirar confiança que facilite a adaptação, tornando mais eficaz o esforço para viver, na expressão de Pontes de Miranda (Sistema de ciência positiva do direito, 2ª ed., II, p. 222). No fundo, porém, esse princípio básico da dogmática é de expressão formal de racionalização, vale dizer, é construção altamente descompromissada com a função de equilíbrio substantivo das relações sociais. Não cogita de se, o que se “prometeu” com a “palavra dada”, foi afiançado em regime de igualdade material, em equilíbrio de opções de liberdade entre iguais (= mais iguais) ou, ao contrário, se a equação “inter agentes”, resultou de uma rendição, em nível de decisão estranha à racionalidade. Paira aí portanto, no fundo, a concepção de contratualismo. E o que resta se a dogmática é vista como esquema abstrato.

Um segundo princípio, inspirador da dogmática, de interesse para este trabalho, é o da “praticabilidade (técnica) do direito”, acentuado já por Von Ihering. Com efeito, não se basta o jurista com a conceituação abstrata (ratio) que lhe propicia a teoria do direito. O direito-em-ação é troca social. Consiste na contínua aplicação concreta, tanto a interindividual espontânea como aquela feita pelo Estado, tanto na mera remoção consensual de obstáculos como na solução de situações conflitivas. Parece evidente que a aplicação concreta era vista pelos pesquisadores do século XIX, interessados na compreensão e interpretação do direito romano (altamente individualista) numa perspectiva centralista, de judicialização das disputas. A extrematização de tal atitude mental é utópica; acentua-se atualmente a imperiosidade de uma revolução copernicana no tocante a esse centralismo [12].

O que mais importa no momento sublinhar é, o caráter decisional, no limite espaço-temporal da racionalidade, latente nesse segundo princípio de operacionalidade técnica, que serve de começo da dogmática jurídica.

Quadra ressaltar as críticas altamente construtivas que se operaram, nos arraiais mesmos da concepção científico-positiva do direito. Deu-se isto assim na Alemanha como entre nós.

Cumpre pois avaliar, nesta primeira fase, alguns trabalhos tenazes que, em “vol d’oiseau”, podem arrolar-se na sua temática ao modo seguinte.

1 – Não é a lei a fonte única das verdades jurídicas (R. Hugo, 1812); 2 – A lei contém lacunas (E. Eherlich, 1888); 3 – A função interpretativa do aplicador é livre e, em âmbito mais geral, a pesquisa do conteúdo das normas é livre (O. Büllow, 1885); F. Gény (França), 1899; Ehlich (1903); 4 – A exegese é independente da vontade do legislador (R. Sternberg, 1904); 5 – As lacunas são inevitáveis, de modo que não há a plenitude lógica do direito (E. Zittelmann, 1903; E. Jung, 1900); 6 – Os próprios atos jurídicos são fonte de interpretação do direito (K. Hellwig, 1907); 7 – Cresce o predomínio do espírito independente do jurista, cujo material de pesquisa é o próprio conteúdo plural das relações sociais (Pontes de Miranda, 1922); 8 – É de mister acurada crítica aos conceitos e à linguagem, em vista da sua relatividade intrínseca (Eisele e Saleilles).

Com essa orientação anti-abstrata das fontes, já a pesquisa se colocou em postura de visão crítica do direito; assim foi na sua interpretação e também na sua aplicação.

Não há negar, contudo, que os resultados econômicos da sociedade industrial, com as críticas conseqüentes, provieram de uma orientação sistêmico-funcional, ora organicista ora dialética (Ex.: M. Weber, E. Durckheim, K. Marx). As ideologias sacudiram profundamente as interações sociais no século XX, quer no domínio da consciência política que no mundo econômico, o plano empírico assistiu-se à ação transformadora das evoluções e das revoluções — a começar pela soviética. Duas grandes guerras não podiam senão ter profunda influência nos meios acadêmicos e de produção científica. Daí a retomada dos estudos críticos do direito com a urgência (se não com a impaciência) de mudanças sociais, desbastando-se a dominação e domando-se as desigualdades sociais, sem minimizar tampouco as preocupações com as liberdades fundamentais e com as várias formas de vivência democrática.

O mundo contemporâneo viu-se da contingência de experienciar debates de relevância, endereçados ao reexame dos fundamentos do direito, à teoria jurídica e à dogmática jurídica. Com a unificação da Alemanha e o desmantelamento do sovietismo surgiram questões inesperadas. Depois, o temor do terrorismo internacional levantou, e continua de suscitar, problemas dantes não vividos. Vive-se tudo isso em meio aos golpes deferidos com os chamados “dias sociais” (= conquistas no plano da Igualdade), sob a poderosa atividade político-econômica da globalização — dilatação do círculo social econômico comandada pelo neoliberalismo. Quadra lembrar ainda as novas questões relacionadas com a Internet (incluídos aí os direitos autorais).

2) A partir dos anos 60 (crítica)

Um rápido balanço das pesquisas levadas a efeito nos últimos 20 anos teria de dar conta dos estudos empreendidos pelo menos por três universidades, cuja produção acadêmica vem em parte ao nosso alcance. Em rápidos traços esboçaremos aqui idéias oriundas de três centros de pesquisa e ensino: Frankfurt, Wiscounsin e USP (Brasil). Respingaremos tão somente os tópicos essenciais ao desenvolvimento de presente trabalho, indicando número reduzido de autores, no tocante à crítica da teoria e da dogmática jurídica.

A – UNIVERSIDADE DE FRANKFURT

A lei anda junto com a ideologia, tendendo ambas a uma redução das complexidades da matéria social. [13]

Isto vem a significar que, na dinâmica da interação social (complexo vivo e em marcha das ações sociais), a ideologia se esconde nos conceitos e se infiltra na linguagem, duas técnicas humanas com que trabalha a dogmática jurídica. Ressalta a importância da asserção já que os clamores da legitimação representam um fermento de alteração da estrutura da sociedade. A estática estrutural está sob constante influição valorativa de transformação da correspondente dinâmica, isto é, traz no seu próprio bojo um processus. A ideologia é, em resumidas contas, força alheia à racionalidade; quando consciente, é idéia-força, no sentido da psicologia profunda dos nossos dias (paixão). Segundo Luhmann, tem ela pelo menos duas funções: uma pragmática e outra simbólica. Pela função pragmática a ideologia dirige a escolha de programas de valor com os correspondentes sacrifícios e renúncias — que se repartirão por entre os membros do sistema social. Já a função simbólica da ideologia assegura o consenso daqueles membros do grupo humano, que terão de esperar por alguma compensação, mantendo em suspenso de algum modo os seus próprios valores (Id., ib., p. 98).

A ideologia serve-se de escoras, simbólicas e atuantes, no prol de sua função reflexiva. Assim, por exemplo, nos sistemas sociais de ideologia marxista esse símbolo, não-sujeito a mudanças na sua concepção, instrumentaliza a contínua reinterpretação da própria ideologia. É o Partido um instrumento de “reflexividade” (China, Coréia do Norte, Cuba). Nos regimes outros, liberais, há outras variações simbólicas com a mesma função de reflexibilidade sistêmica. Variam, e freqüentemente convivem. Exemplos: as eleições periódicas, a constituinte, os regimentos internos dos tribunais. Cuida-se, diz Luhmann, de pontos ideologicamente neutros, constituindo-se num denominador comum, em leito de convergência consensual geral; com os mesmos efeitos de “reflexibilidade”, viabiliza-se a articulação de discussão dos valores vigentes e abrem-se alas para a mudança efetiva na matéria social, incluída aí a legislação [14]

Assoma então o fenômeno da capacidade plástica, reflexiva, dinamizante, mutável, adaptante, assim da lei como das ideologias em determinado sistema social. É justamente em virtude de serem, ambas, mecanismos reflexivos [15]

Há diferenças cruciais entre os símbolos de reflexividade — marxista e não-marxista. Distinguem-se pelo modo como cada lado destas duas concepções institucionaliza a formulação política dos valores. [16]

Ora, há diferentes níveis de programação (esta terminologia diz bem da posição acentuadamente sistêmico-funcional do professor alemão), no interior dela as ações sociais desenvolvem-se. Em crescente grau de abstração esses níveis são os quatro seguintes: a) referências a pessoas; b) referência ao papel social; c) referência ao programa de ação; d) referência a valores.

O segundo e o terceiro nível são os mais comuns, por serem mais distantes dos extremos: concretude e abstração. Os valores são símbolos de preferência; ideologizam-se. As pessoas impactam por sua atualidade; mobilizam-se. É pois sobretudo nos dois eixos de “papel social” e de “programa de ação social” que adequadamente se articula a busca de significados para a vida individual e social.

Como porém os valores formam o eixo mais abstrato, são eles com mais facilidade objeto de consenso. A ideologia possibilita a avaliação teórica dos valores vigentes e coerentemente alcança a sua discussão. Em conseqüência disso serve-se o grupo da lei para programar as ações.

Note-se ser no campo dos valores que mais se põe socialmente a indagação de verdade, e é na contextura da lei (generalizando: no âmbito do direito) que mais se coloca o problema da justiça. É certo porém, em face da intrincada complexidade social, que tanto os conceitos de verdade e justiça, vêm por fim, eles próprios, a esgarçar-se em conceitos idealísticos (id., ib., 106-110 e 118).

Não se pense todavia que essa análise venha a terminar em aporia pessimista na obra de N. Luhmann. Ainda assim é possível a redução de complexidade social. Esta aí, é certo, problema epistemológico verdadeiramente dramático em face da relatividade do conhecimento e do caráter essencialmente pegajoso da ideologia, a achegar-se perigosamente até a cidadela do discurso científico.

Aquela redução é contudo possível pela constante busca do reconhecimento e da exploração cognitiva do conteúdo da ação; traçado de estrutura, construção de subsistemas, departamentalização dos significados, adoção de mecanismos reflexivos e de rede de comunicações, voltado para dentro e para fora. Logra-se destarte, afirma Luhmann, a regulação cibernética, que assegura a calibração incessante do sistema social. [17]

A superação da subjetividade do pensador é devida então à racionalidade dinâmica, qual iluminismo sociológico confiável. Sobe-se a este nível na medida em que os problemas da vida social vão sendo enfrentados pela crítica das normas, e dos papéis, e das instituições, e dos processos e dos símbolos. Contanto que correspondemente se adotem as alternativas funcionalmente equivalentes.

(pág. 121).

Em síntese: para o funcionalista alemão é na crítica reflexiva das instituições, em clima de discussão aberta, que se desenvolve, ao menos até certo ponto, o processo de obtenção cognoscitiva da forma de expressão da matéria jurídico-sociológica apesar da atuação da força ideológica. Têm-se a segurança e a clareza, mínimas, exigidas à dogmática jurídica tolerável para a ciência humana. Por aí, simultânea, se arma a dinâmica corretora dos seus defeitos constantes. Assiste-se à evolução incessante do sistema jurídico-social, esquematizado em dogmática. E a ciência positiva pode dar passos.

Percebe-se então em Luhmann o interesse pela institucionalização da crítica reflexiva, incessantemente retomada, como condição e como solução, sempre interpretativa, e por isso “plástica” das instituições, como caminho possível, confiável, adotável — da mantença e da revisão constante de uma dogmática jurídica. É bem de ver-se que tal modelo de crítica e de criatividade social não são estranhas, como medidas de eficácia, ao progresso jurídico-sociológico de sociedades em desenvolvimento, como são, por exemplo, os países da América Latina. Mais geralmente, dos países emergentes.

Em certo confronto com a posição de N. Luhmann está a de outro professor da mesma universidade de Frankfurt. Esse é de orientação dialética, mas que tem pontos em comum com a do seu colega. Trata-se de autor já acima citado — Jürgen Habermas. Da sua complexa e já relativamente extensa produção acadêmica ocorre, para os fins deste trabalho, destacar a questão da legitimação com que geralmente se defrontam, de maneira peculiarmente intensa, os povos em desenvolvimento, pelo fato mesmo (entre outros) de estarem a experimentar mudanças internas. Em cada um desses povos estão os seus estudiosos e os seus profissionais do direito.

Tais mudanças são mais visíveis na economia e na política, que envolvem freqüente alteração no mundo jurídico. Estes dois processos sociais de adaptação põem em delicada situação as construções dogmáticas da sua herança, nesta matéria. A razão disto está nas características próprias desses dois processos sociais de adaptação: são a um tempo muito instáveis e violentas (rompedoras dos demais tecidos sociais).[18]

Destaca Habermas três propriedades dos sistemas sociais em geral: 1) dá-se em todos eles fluxo de trocas, externo e interno, isto é, de ações e de normas de comportamento. Aquelas se sujeitam à crítica do critério de “verdade”, e as normas expõem-se à crítica dos pedidos de “justificação” ou “validade”; 2) as mudanças de metas variam em razão dos fatores gerais de produção social e também em razão do grau de autonomia do sistema mesmo. Limitam-se, em qualquer caso, pela lógica do desenvolvimento de variantes visões de vida (“Weltbilder”), de tal sorte que o ambiente interno dos indivíduos se apresenta como plural, e mesmo paradoxal; 3) a intensidade do desenvolvimento é determinado pela capacidade de aprendizado do grupo, de modo especial pela capacidade de diferenciar entre teoria e técnica. Também pela existência de espaço para processos de aprendizagem discursiva.[19]

O fenômeno da exigência social de legitimação ocorre tanto mais quanto o governo seja interventivo no sub-sitema cultural do grupo. O fenômeno vem a flux na medida em que o Estado se mostrar ativamente interessado em dirigir a produção espontânea das idéias e dos sentimentos religiosos, éticos, estéticos, educacionais e jurídicos. A exigência dos participantes do grupo é no sentido de aumentarem a sua zona de influência nos destinos sociais, mormente por efetiva participação dos cidadãos nos processos políticos de formação da vontade (“politischen Willensbildungsprozessen”). Em outras palavras: demanda-se uma vivência democrática substantiva, superior em conteúdo à democracia clássica de ordem formal.[20]

Além da crise econômica, mais ou menos cíclica, surgem as crises de racionalidade (falhas na administração estatal). Somam-se a elas mais duas: a de legitimação e a de motivação.A crise de legitimação ocorre em proporção com a quantidade e complexidade de encargos que o Estado toma para si. Nessa mesma medida vem o Estado a ser cobrado pelos participantes: que ele justifique mais tomada de incumbências. Por fim, a crise de motivação liga-se ao esvaziamento causado pelo Estado, por ter ele se encarregado de carcomer o enraizamento espontâneo da criação natural e a formação das tradições culturais. [21] A crise de motivação é tanto mais grave, tanto mais alargada e mais profunda, quanto mais a ideologia oficial diferir da ideologia social. Por isto a crise de motivação está à base da crise de legitimação. [22]

Estas poucas considerações, em obra de pensador dialético, entreabrem as cortinas aos furacões de descrédito e de corrosão que sofrerá a dogmática jurídica de um Povo ao qual o Estado, por seus agentes e por seus aparelhos burocráticos, vai pouco e pouco dando as costas [23]. Uma de duas: ou as categorias dogmáticas se abrem, em termos de exegese e de aplicação (em função das mutações da própria matéria social), ou passa a ser um mundo à parte, estranho e repudiado pelo grupo, sendo suicida esta segunda hipótese — passaria a ser mais uma verborréia desprezível de generalidades.

B – UNIVERSIDADE DE WISCONSIN (E.U.A.)

A faculdade de direito dessa universidade norte-americana tem desenvolvido intensa atividade de estudos críticos do direito. Toma posição consciente de, transformando a teoria em práxis, aperfeiçoar-lhes a simbiose; fazer da própria tarefa acadêmica um múnus social de empreendimento de mudanças sociais, acompanhando as exigências silenciosas do tempo.

A crítica é encarada como uma tradição própria do Ocidente. A despeito de sua posição afeiçoada ao trabalho em nível de conexões intersubjetivas de consciência social (“interpretativismo”), afirma-se como mais um galho de um tronco comum: o espírito empírico, herdado da Inglaterra. São muitos os nomes que se alinham, com diversos pontos de sintonia: Mensch, Kennedy, Selznick, Nonot, David Trubek e outros.[24]

A matéria prima do trabalho crítico é nuclearmente a “doutrina”. Parte ele da premissa de ser nela que se reflete a realidade da vivência em todos os setores da vida jurídica. Outras hipóteses de trabalho são as seguintes: 1) o chamado sistema jurídico não se constitui propriamente em “sistema”, porque ele é essencialmente despedaçado (= “indeterminação”); 2) o discurso jurídico não tem especificidade própria, sendo antes eminentemente amorfo no tocante ao material que deveria versar (= antiformalismo); 3) o mundo jurídico é forçosamente paradoxal — falta unidade, falta coerência nos seus pontos de vista contraditórios (=contradição); 4) não é preeminente a vivência jurídica como se fora fato decisivo para a conformação social (= “marginalidade”).

As conseqüências dessas premissas são claras, diz o autor: não há qualquer possibilidade de um estudo científico do direito. Está ele necessariamente carregado de ideologia e de retórica (paixão); termina em estradas sem fim (aporia). Nem pode a vida social depender da realização do direito como condição da calibração e sobrevivência daquela: as questões sociais hão de ser enfrentadas diretamente, à sombra do direito, com ou sem a efetividade dele.

Por mais que se discorde do ceticismo que ressumbra dessas premissas, assim tão pessimistas, a posição de D. Trubek apresenta interesse no seu desenvolvimento e nas suas aplicações. Serve de pano de fundo capaz de questionar a firmeza da confiança, a depositada na dogmática jurídica não científica. Dizemos não científica aquela que se resume e comodamente se satisfaz com palavras ocas, “abstraentes”, destituídas de realidades extra-mentais — numa palavra sem compromisso com os fatos extramentais, com a vida real.

Nota-se pela exposição feita que o dito professor procura, aliás, nesse seu trabalho restabelecer o diálogo entre a sua própria atitude interpretativista e o método “empírico”, mostrando como ambos são, em verdade, empíricos. [25]

Busca mostrar que nem todo adepto dos métodos de pesquisa-de-campo ou tem preconceito determinista, ou o tem positivista. A desvantagem da primeira tendência é o fatalismo: inútil é o trabalho em prol das transformações sociais de melhoramento das condições de vida acarretadas pelo capitalismo atual. As escórias da mentalidade positivista consistiram na ilusão daninha de os problemas sociais se poderem reduzir a proposições de fato.

Percebe-se o aplauso com que o professor Trubek saúda a dimensão de experiencialidade, ou seja, de levarem-se em linha de conta as irradiações que a chamada ordem jurídica projeta sobre a sociedade. [26] São de louvar-se, diz, os esforços da equipe dos estudos empíricos do direito: problematizarem, questionando-o, o corpo de verdadeiras crenças, que a doutrina tradicional internaliza como verdades absolutas. Assim, é estudando os estudos jurídicos tradicionalmente herdados de geração em geração que se pode esperar mais vigorosa revisão na “ordem jurídica”, no seio mesmo do capitalismo atual.[27] Articulando o pensamento crítico em torno daquelas quatro premissas — indeterminação, antiformalismo, contradição em marginalidade do direito —, o método interpretativista adotado pelo autor põe-se em estado de alerta vigilante para surpreender os fundos psicossociais do pensamento dos juristas tradicionais (doutrinadores, juízes, professores, advogados etc.). O propósito é o de perceber de bom ângulo as interconexões do discurso jurídico — tal como ele aparece na interação social globalmente considerada.

Entende então que as relações sociais são um amálgama de cosmovisões a constituírem, elas próprias, a vida social mesma (uma parte da própria Natureza). No ritmo em que as relações sociais tecem a vida (a vida que se vive mundo a fora e que se examina academicamente), os estudos críticos do direito não podem senão ser, simultaneamente, uma ação política transformadora. [28] O direito manifesta-se na própria consciência jurídica de tal sorte que, trabalhando com as consciências, estará o crítico ao mesmo tempo exercendo a função de reformador social em algum sentido. Donde ser de particular interesse para as sociedades do capitalismo ocidental (com graves defeitos a serem combatidos), localizar na consciência do direito oficial, na mentalidade dos juristas, as noções justificadoras de desigualdades substantivas, da hierarquia excessiva e de diferenças de oportunidade no complexo social.

O conjunto dessas ideologias formam “significados” de que os atores sociais precisam, como de esteios intelectuais e emocionais, para continuarem a viver. Tal é o caso, por exemplo, da falsa convicção de que as situações implantadas, de elevada desigualização social, são “naturais”, ou “necessárias”, ou “justas”, ou “desejáveis”. Ora, é contra essas falsas bases ideológicas — sempre que o forem — que se hão de assestar as baterias dos estudos críticos do direito. Pensa David Trubek ser “operacionável”, praticável, essa metamorfose por isso que em toda ideologia, das que se apontaram, fermenta algum germe inicial de verdade. E a “verdade”, dizemos nós é o desiderato e o objeto formal mesmo da atividade da ciência positiva; ninguém tem “a verdade” senão que consegue aqui e ali algumas proposições verdadeiras.

Valha dizer, todavia que, expostos tais estudos à discussão, pode-se estabelecer um denominador comum para o debate, e o debate é indispensável à realização das transformações sociais a qualquer ideologia conduz. Integram esse denominador comum (leito a que todas as vertentes acorrem) idéias-força tais como: “há o desejo de todos de bem viverem”, “vale a pena o diálogo”, “é bom conselheira a não-violência”, “convém o entendimento”.

Crítica mais livre leva a maior emancipação, como acentua Klare. Com ela caem algumas paliçadas de muitas ilusões ideológicas. Passa-se destarte, das dogmáticas atuais, algumas estabelecidas a priori ora por ingenuidade ora por cinismo, para sistemas novos e melhores. Essa passagem haverá de dar-se sem se reificarem (na terminologia de Lukács, coisificação) as convenções atuais, como se elas representassem a perenidade das situações de desequilíbrio e de disfunções de que ainda padece o capitalismo pós-liberal. [29]

Eis aí a razão de as críticas à ordem jurídica — despedaçada e caótica por sua própria natureza — exercerem-se de maneira aguda sobre a própria consciência jurídica (identificada com a doutrina corrente, tradicionalista). Levanta-se aí então o marco por onde se inicia a transformação social, afirma.

Cumpre atentar, pensamos nós, para uma particularidade de cunho epistemológico, ínsita à corrente crítica norte-americana. Cuida-se do “fato”, fato de sabor idealístico em seus pressupostos, de a ordem jurídica ser co-extensiva à própria consciência jurídica. [30] Tal nem sempre se dá. A consciência crítica há de resultar de um esforço livre constante; sem isto, decai-se em outro tipo de ideologia. Esse vai-vem é próprio de quem pensar com liberdade e sinceridade.

De qualquer modo, e fazendo-se abstração da discutibilidade desse pressuposto epistemológico, encarando-se os resultados sociais do movimento de modo pragmático, o fato é que voltam à tona com esse respeitável movimento jurídico-sociológico da escola de Wisconsin, as questões de “verdade” e de “legitimação”, com elementos relevantes na matéria social e, portanto, na teoria do direito e na dogmática jurídica. São, a nosso ver, elementos empíricos de que deve cuidar a epistemologia desenvolvida no método indutivo-experimental.

Os “scholars” de Wisconsin têm consciência de que a sua ação crítica retira campo de atuação das esquerdas puxando-lhes o tapete, como diz o vulgo. A razão disso é ainda a torrente das ideologias, este líquido onipresente em que nos movemos e somos. No fundo atua a fé no “valor-verdade”, como o maior segredo desse movimento de libertação. E, de envolta com esse valor-verdade, a fé nos valores dos direitos fundamentais clássicos, sem contudo abdicar de pôr a mão na ferida para desocultar neles o muito que albergam de mistificador e de instrumento de dominação.

Buscam assim os profissionais dos estudos críticos do direito voltarem-se sempre à atividade de descoberta e de desmascaramento destas cosmovisões simplesmente justificadoras: de poder, de mando, de despotismo aproveitador, de dominação perturbadora. O alvo são os atuais “sistemas de sentido”, que inconscientemente passam a imperar como dados do próprio “senso comum”. Esses sistemas internalizam a aceitação de inúmeras situações de disfunção social, como se tais desvios fossem co-naturais à sociedade hodierna.

Daí o esforço intelectual coerente por “decodificar” as estruturas: explicando-as, expondo-as às consciências, retirando-as do seu envoltório, no bojo delas escondem-se intenções psicanalíticas de vontade de poder. [31] A dogmática jurídica, com a sua construção de estruturas, é quase o centro do alvo desse espaço crítico.

A despeito de sua opção pelo interpretativismo — inçado de discurso lógico-dialético, e de dados psicológicos, em que o interesse das ideologias é uma das mais expressivas constantes —, os adeptos dos “estudos críticos do direito”, segundo David Trubek, em reconciliação, devem dar as mãos a outra corrente que reputa aparentada à sua: o estudo empírico na sua acepção de crítica. Esses métodos são elos de continuidade, aperfeiçoada, de uma mesma tradição: a sondagem não doutrinária, anti-dogmática, do direito.

Nessa tentativa de síntese, não se hão de desprezar os dados do dia-a-dia da experiência jurídica, bem explorada pelo elemento behaviorista do empirismo. O esforço conjunto haverá de concentrar-se na crítica aos males do alto capitalismo tal como vigente hoje, modificando-o para tornar formas mais humanas, extirpando dele sistematicamente o seu formidável poderio desestabilizador, dominador. A violência dele é eficiente não só no plano econômico. Também no nível político é grande o seu potencial devastador. Em tal tarefa Trubek reconhece pontos de contacto com dois marxistas — Gramsci e Lukács —, com seus respectivos conceitos de “consciência hegemoníaca” e de “reificação”.

No processo de reificação produz-se a perenização de valores contingentes, firma-se a dogmática jurídica como necessário e objetivo o que, em verdade, é freqüentemente arbitrário e subjetivo. O fenômeno da “hegemonia” é aquele pelo qual as idéias, a flutuarem nas consciências, devem ser tais que sirvam aos interesses das classes dominantes. Não se há de descartar o problema freudiano da negação: escamotear o problema para não ter de passar pelos sacrifícios de enfrentá-lo. O peso das dificuldades, que se vislumbram nos horizontes do confronto, transformam-no em mui penosa tarefa.

Interpretar o mundo, operando ao mesmo tempo a transformação dele (Kennedy e Klare), [32] sem se privilegiar o econômico em detrimento das demais forças sociais, nem vice-versa. Antes, mostrar que idéias e estruturas se sintetizam e se constituem mutuamente, fundindo direito e sociedade, acoplando-se direito público e direito privado, iniciando-se por essa via a lenta caminhada, rumo à racionalização substantiva.[33]

Esse trabalho de libertação não deve confinar-se nos interiores das universidades, senão que a ação social se há de estender aos ambientes de trabalho e influir nas elites dirigentes. [34]

Na linha de pensamento de D. Trubek, e quase que a traçar seu roteiro de ação, está o trabalho de Marc Galenter, no programa de pesquisas e debates da faculdade de direito da universidade de Wisconsin (“Justice in many rooms: courts, private ordering and indigenous Law”, Madison, 1981). Acentua o autor que o centralismo judicial de todas as disputas é uma utopia porque o direito atua, mesmo decisoriamente, fora da produção oficial de sentenças e acórdãos, escreve o autor nas páginas 2-4. Repetindo as antigas críticas de Jhering, acentua: (a) que as categorias jurídicas manejadas pela dogmática jurídica por vezes são disfarces de insuficiência epistemológica; (b) as normas freqüentemente não passam de quimeras. Muitas são as leis que existem e regram, fora dos documentos em que outras são publicadas. A “lei-em-ação”, ou “direito-em-marcha”, é tão mais amplamente vigoroso do que a lei dos códigos, como a linguagem falada em relação ao reducionismo simplista da linguagem escrita. [35]

Propugna, na aplicação efetiva do direito, que o processo judicial oficial subsidie formalmente a aplicação informal dos direitos, em verdadeiros julgamentos a que a própria comunidade, em seus diversos subsistemas, procede. Devem esses julgamentos ser endossados pelo Estado sem mais formalidades, de tal sorte que se popularize, com validação oficial, a arbitragem através das lideranças naturais e espontâneas. [36]

Entende ainda ser mais eficiente para a troca de símbolos (com garantia de comunicação efetiva da atuação do direito — “impacto do direito”) que a própria comunidade venha a admitir sanções outras que não as da só tradição jurídica. Tais são, em amostragem, as sanções de diminuição dos níveis de crédito, os cortes no seguro e na previdência, as suspensões de emprego, os golpes justos e equilibradores na reputação comercial. Tal modernização de sanções — entende o autor — conferem mais realismo, nos dias que passam, à efetiva atuação do direito, processo regulador efetivo de relações importantes da vida social — aquelas pelas quais teve o direito de interessar-se. [37]

O autor chama a atenção para o direito-em-marcha: a regulação endógena, a autonomia regulativa, o auto-regramento de vontade, a aplicação espontânea do direito.[38]

Estas idéias foram em verdade profusamente difundidas antes pelos clássicos da ciência jurídica, quiçá prevendo eles tempos mais turbulentos (inclusive na ordem internacional e supranacional) dos que os experimentados há meio século.

São originais as observações do professor norte-americano dos nossos dias, chamando a atenção para a conveniência (ainda pouco entendida) de se racionalizarem oficialmente, nas sociedades atuais, regras sobre a arbitragem por órgãos de classe, ou associações de bairro, ou ligas, ou “conselhos”. Algumas espécies: os problemas de vizinhança, de locação residencial, de títulos de crédito em negócios jurídicos entre empresas comerciais, ou entre indústrias, ou dos bancos com cada uma delas. Trata-se aqui de expedientes não categorizados na dogmática. Não se confunde com a arbitragem atualmente vigente no sistema jurídico brasileiro.

No tocante ao direito trabalhista o autor propugna igualmente o arbitramento. Fá-lo porém com a previsão cautelosa de que a sua função somente será adaptante na hipótese de serem fortes os sindicatos, com efetiva capacidade de barganha. [39]

Como se vê, o autor, no particular, coincide com as idéias — se bem que com outros intuitos, fortemente conservadores —, de Max Weber. De qualquer modo, a tendência tem de ser mais geral. O esforço pela descentralização e desoficialização da justiça haverá de atingir todos os recantos da vida social. [40]

Esses ligeiros traços a respeito de apenas dois autores da escola de Wisconsin apontam para o delicado papel que a dogmática jurídica tem de desempenhar, mormente em se tratando de sociedade em desenvolvimento, onde o programa de mutações que se aguardam impacientemente (quiçá perigosamente) é de maior alcance e de âmbito mais alargado que os de países — como os ricos do hemisfério norte —, dotados de instituições substantivas muito mais bem calibradas que as dos pobres.

Por certo que se hão de adotar amoldamentos plásticos no sentido de as categorias jurídicas — no sentido poder de travação exegético — terem também a capacidade de elevarem o “tônus” da vida social: a saudável exigência de legitimação, de verdade e justiça material [41].

C – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (Fac. de Direito do Largo São Francisco).

A Faculdade do Largo São Francisco (Direito da Universidade de São Paulo) é das mais tradicionais do Brasil. Um tanto recente nela todavia é o desbravamento pelas trilhas da sociologia jurídica. As vocações surgidas nessa matéria foram plantadas no campo de orientação para mestrado e doutorado em filosofia do direito, que tanto deve à laboriosidade e à produção de seus professores mais antigos; destaca-se a figura de Miguel Reale. Cabe aqui destacar a novel orientação que se foi aos poucos imprimindo, à sociologia do direito. Sem embargo de serem vários os lentes que se interessam pela matéria, cumpre destacar, em traços muito rápidos (por isso mesmo imperfeitos e incompletos), linhas de pensamento de professores titulares que se têm destacado no campo da filosofia e da sociologia jurídica. Ligam-se ambos ao pensamento europeu e norte-americano, cujos passos acompanham, e buscam transmitir a alunos selecionados assim do bacharelado e como sobretudo do curso de pós-graduação. O presente esboço é, rápido bosquejo, sem intuito de passar em revista um arco completo das linhas de pensamento. Ficamos pois com o pouco daquilo que de perto toca ao presente estudo.

No livro “Teoria da Norma Jurídica”, Forense, Rio, 1978, o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr. ensaia a pragmática da comunicação normativa, os fenômenos (e os respectivos conceitos) de modelo, pragmática, discurso normativo, validade e legitimação são aí examinados. No sistema social os atores relacionam-se, entre outros modos mediante a ação lingüística. Os sinais, que se intercomunicam, são mensagens de significações. A pragmática vem a ser justamente o estudo dos sinais em relação à intersubjetividade dos comunicadores. A sintaxe os considera na sua mútua interconexão, a semântica os examina nas suas relações com o objeto. A interação lingüística é portanto troca de mensagens. O discurso é dualidade dinâmica de troca de mensagens, o diálogo é reflexão. Falar é comunicar algum tipo de sinal lingüístico. Os interlocutores afirmam ou negam, falando inclusive pela linguagem do silêncio, ou perguntando. Entre os interlocutores forma-se uma atmosfera de dúvida até que se esgote — se ele ocorrer — o consenso. Essa franja de expectativa intelectual constitui o “dubium”.

No discurso estabelece-se por consenso inicial, uma regra básica do discurso: a do onus probandi. Os interlocutores aceitam, para dialogarem, esse princípio fundamental. No assumirem esse encargo de se darem ao trabalho de fundamentar o “dictum”, a atitude é de racionalidade. Com a quebra dessa norma resvalam os interlocutores para o mundo da irracionalidade.

Quando o discurso segue a linha da racionalidade sem se satisfazer com o seu limite de esgotamento, os caminhos da consciência discursiva estendem-se no sentido do valor-verdade. É o discurso homológico — ambos os interlocutores caminham juntos, no mesmo sentido. Se porém o inverso se dá, ou seja, quando os discorrentes, ainda que fazendo concessões à busca de algum consenso, desistem de prosseguir com a demonstração de “verdades” (= proposições plenamente justificadas no entender de ambos os interlocutores da interação discursiva), então o fenômeno é bem outro: o do discurso heterológico. Neste o escopo e o limite não são os de “verdade”. São antes os de uma decisão: um como que marco chantado para além da linha da racionalidade.

Na tomada da decisão já não contam os elementos de convicção, racionalidade, valor-verdade. A decisão é corte na racionalidade pura. No fundo essa ruptura resulta de luta; armas — os argumentos de persuasão. Cada qual procura justificar ao máximo o seu interesse, a razão de estar-ali a adotar aquela solução, de dissenso.

A retórica assume papel relevante. A solução toma-se bilateralmente ainda, mas não porque seja ela o escopo de uma situação de “verdade”. O “dubium” ficou em estado de aporia relacional para os interlocutores; é de mister que se resolva por outra “razão”, ou seja, exsurge a necessidade de absorver-se a insegurança, por isso que os interlocutores não conseguem prosseguir, adota-se “solução de compromisso”. Conheceu-a bem a psicologia e a ética.

O máximo de irracionalidade dá-se contudo no momento em que se infrinja a norma do ônus da prova. Neste ponto o diálogo termina. Acaba toda a sua razão de ser. Segue-se o monólogo que é, em relação às linhas de pensamento a serem eventualmente ainda descritas (discurso), uma violência, uma imposição, um trauma, um gesto passional.

A todo rigor, o próprio começo do discurso é inçado de irracionalidade. Deve-se isto à ideologia — experiências de vida. Os interlocutores consentem em adotar o ônus de cada qual justificar as suas próprias asserções. Como esse começo convém (“racionalmente”) a ambos os interlocutores, como marco inicial necessário, ele é visto como se fora o início mesmo da racionalidade discursiva.

Se na outra ponta da linha as situações não são da gravidade da quebra da regra básica do onus probandi, nem o são da menos grave de se tomar a decisão conjugada consensual (fim do discurso mediante tomada de decisão) — segundo interesses recíprocos —, o resultado é diverso. Isto é, quando ambos os interlocutores se dispõem ao discurso homológico, sem entretanto conseguirem elementos de convicção capazes de extinguirem o “dubium”, então o resultado é uma situação de aporia.

Neste caso todos os argumentos racionais trazidos à colação têm a sua resposta e cada nova resposta faz surgir nova questão, alternativamente discutível em termos da racionalidade. O quadro geral do discurso continua aberto, sem limite de “verdade”, sem solução. Chega-se a um limite de capacidade de convicções, mas com o mútuo reconhecimento de que não está ainda aí o fim da linha de pensamento racional possível. Em tal caso a ambiência é importante: o diálogo, o discurso homológico de cunho consensual, pode prosseguir. Continua acessível o campo da esperança a respeito da “verdade”, sem necessidade de tomada de decisão. Nesta é forte a carga do elemento vontade; prevalecem os motivos de interesse para além da linha suave, indicativa, da racionalidade luminosa.

Neste contexto exsurge disponibilidade lógico-racional à revisão. configura-se uma abertura metódica, decorre ela do próprio limite de intersubjetividade, reconhecido conscientemente. Quando esse modelo descritivo se aplicar à práxis política, e se puderem localizar partidos dispostos à discussão “sem fim” [42], o clima político-social — com reflexos decorrentes na ordem jurídica, no “jus condendum” — é o de rigidez revisível; o diálogo é mantido pela observância do onus probandi. Também subsiste crítica contínua aos próprios núcleos de decisão subjetiva. Esses núcleos decisionais são cosmovisões, são “Weltbilder”, que se organizam psicológica, lógica e dialeticamente em incrustações ideológicas.

A consciência dialógica, de que a ideologia é um limite (revisível) à racionalidade, conduz à recíproca admissão de aporias e de limites de racionalidade. Torna então “racional” (conscientização) da necessidade de decisões no campo social) o fim provisório do discurso racional, para atendimento urgente das imposições existenciais. É bem de ver que esse tipo de discurso político-jurídico tem seu palco próprio, e imprescindível, na democracia clássica (sem prejuízo — é claro — das outras dimensões dela, descobertas mais recentemente). As tomadas de decisão em tal clima discursivo resultam portanto de reconhecimento de limites à racionalidade. E os atores sociais assumem, aceitam, a “fatalidade” dessa limitação. Tal se dá sem que qualquer deles se assenhorie do discurso e o rompa, impondo ao “alter” a sua “opinião”. Se o fizesse, seria injustificadamente, com infração da cláusula reguladora fundamental — o discurso fundamentante e o discurso fundamentado, coordenados segundo a regra do ônus da prova.

Ora, a reflexividade desse discurso, uma vez conscientemente assumido o fato de lhe ser co-natural ora homologicidade ora a heterologicidade (racionalidade e irracionalidade, duas dimensões inelimináveis do discurso), tal reflexividade — digo — explica e torna aceitável, por ser imprescindível e recomendável, necessário e conveniente, o esforço de persuasão (=limite do esforço de convicção), a que se segue a decisão (esta “decisão” é o ponto de aceitação do limite reconhecido da racionalidade). Com a luminosidade de tal reflexão, possível, por ser experimentada na práxis do discurso jurídico-político (social portanto), fica também justificado, dentro do quadro reconhecido de contingência e de relatividade da epistemologia, que a decisão é um momento seletivo determinado por ascendência provisória e revisível.

Nesse momento, até com aparatos – sutis de “violência simbólica” (demonstração de prevalência de valores), a incerteza e a insegurança, posto que precariamente, terminam. Encontra aí o seu final temporário a situação dúbia e conflitiva dos atores sociais. [43] Simultaneamente, a própria reflexividade, ao fim da refrega emocional de ideologias e de valores-verdade, — descerra os horizontes das expectativas dos “vencidos”: a prevalência dos valores do “outro interlocutor” não representa esquema definitivo. Não é proposição absoluta, a vitória, nem perenização de posições sociais. O reconhecimento de que a última instância em que se toma a decisão — porque não tenha havido consenso —, é necessariamente de irracionalidade, depura as consciências discorrentes da crença de dogmas e de cânones impositivos. [44] Esta circunstância torna viável a continuação da convivência. As esperanças são depositadas na construtividade (limitada, contingente, relativa) do diálogo democrático. [45]

Como a dogmática jurídica é estrutura racional de decisões (sobre as normas), já se vê o quanto ela tem de ser diáfana à luz das energias sociais (cultura, economia, política), que atuam sobre o espírito do intérprete e do aplicador da lei [46]. Em linha interpretativo-reflexiva, na pesquisa dos temas atuais que preocupam a sociologia geral, a filosofia social e particularmente a sociologia jurídica, o livro de José E. C. O. Faria, “Retórica política e ideologia democrática”, Rio de Janeiro, Editora Graal, 1983, submete à crítica — com linhas de parentesco com a orientação metodológica da Universidade de Wisconsin — as questões e os problemas enfrentados pela democracia liberal dos nossos dias. Porque a ideologia representa um limite, um marco de rendição provisória do espírito perscrutador, ela é por isso mesmo tema aberto permanentemente ao aprofundamento das indagações de legitimidade das estruturas sociais.

Dado o inevitável drama epistemológico de não se conseguir um conhecimento inteiramente isento (movemo-nos nós mesmos, partes integrantes de fluxos e refluxos de dados psíquicos, que procuramos objetivamente analisar na vida social), não há senão assumir a democracia como espaço e palco permanente de atuação e de pesquisa, submetida ela própria à sempre repetida retomada de crítica reflexiva, que se possa diminuir a franja da ideologia (generalizada e inesgotável). Pode-se conviver em progressiva diminuição das suas cargas paralisantes. Essa experiência social é possível no pensamento social, no discurso jurídico-político e na programação das ações sociais.

Generalizando: a assunção consciente dos limites da racionalidade deixam entrever as limitações da origem e do surgimento nas normas jurídicas: por decisão aparecem e por decisão se substituem, sem que em tais processos se possa pensar em perfeição acabada de obra humana. Política e direito, assim como se implicam, ambos implicam outrossim outras realidades não-autônomas — como o mundo econômico e o cultural.[47]

Ora, esse reconhecimento de falta de completude aponta para a contingência da teoria e da dogmática jurídica tradicionalmente amadurecida. Têm ambas de se adaptar intrinsecamente, isto é, lograr a sua correspondência funcional com uma realidade social muito mais rica e complexa. [48]

Para não correr certos riscos da aplicação oficial do direito positivo — que se encerra em categorias dogmáticas — a sociedade industrial vê-se na contingência (para a sua própria segurança) de solucionar os seus conflitos por acordos alheios às câmaras burocráticas do Judiciário, mesmo fora da lei.[49]

A conciliação de interesses, no plano das liberdades fundamentais e no plano sócio-econômico, depende não apenas de uma revisão da ordem jurídica. Antes, tem-se de levar em conta também a capacidade de confronto e de barganha de todas as classes sociais. O direito, nas sociedades em desenvolvimento de modo especial, traduz certa imposição de desequilíbrio entre as classes. Essa assimetria incorpora-se à ordem jurídica, de tal sorte que surge a crise de confiança (no plano substantivo) em relação à legitimidade do sistema. [50]

O processo mesmo de liberação social, em face da crescente diferenciação de papéis, faz aumentar a complexidade social. E exige mudanças num clima de abertura à discussão de valores, o que se não pode realizar fora dos quadros da democracia.[51]

Entanto, a concepção mesma de democracia envolve atitudes emocionais de preferências quanto ao tipo concreto do seu funcionamento, embora os homens cuidem ser regidos por conceitos (valor-verdade) que não por ideologia — por esse limite de racionalidade, de natureza provisória, e dinâmica.[52]

A ruptura das incrustações ideológicas é porém crescentemente viável: dá-se mediante a argumentação voltada para a questão prática do comportamento humano na sociedade: uma dialética. Suscitando também indagações sobre a problemática inserida no alto grau de complexidade social, estruturalmente diferenciada. Assume-se atitude metodológica contraposta ao pensamento sintetizante que se observa na fixação clássica da teoria do direito e na dogmática jurídica. Em vez de se partir do axioma (ou seja, proposição tomada por indiscutível), com que se constrói escalonadamente a sistemática jurídica, inicia-se a análise a partir dos dados — já em si plurais — do senso comum. Os elementos destes a pouco e pouco vão se abrindo às exigências da análise, penetrando nos núcleos ideológicos que subjazem aos conceitos correntes. [53]

As aberturas de pistas, para a administração eficiente de todo o complexo dos problemas sociais, não é tarefa de que o aparelhamento estatal (governo, burocracia) se possa desincumbir sozinho. Mesmo dentro da história do Estado liberal o próprio conceito de democracia — e a vivência de democracia — não se pode conter apenas no arcabouço do modelo clássico de representação e de voto. Para além da sua função de proteção, de desenvolvimento e de mecanismo de equilíbrio, a democracia assumiu nova modalidade: a democracia participativa. Veio esta reconhecer o caráter altamente abstrato e simbólico do direito positivo que se insinuou na teoria jurídica e na dogmática. Foi necessária a atuação crítica e criativa de todos os setores sociais na gestão da vida em comum, à margem dos anéis burocráticos do Estado.

Tal atuação resulta em busca incessante de atitude informal. Tenta-se a procura efetiva de mudanças mormente em termos de diminuição das desigualdades econômicas. Tudo isto se faz, até certo ponto — nas sociedades em desenvolvimento —, “à sombra do direito”, no dizer de Trubek (supra). É que o centralismo – (Galanter, supra) tende a funcionar centripetamente. É que lhe abre quase que tão-somente a perspectiva dominadora: “segurança nacional”, mantença da “ordem”. Sente calafrios o governo, diante do risco de fracassar socialmente, e deixar de figurar como “dono do país”, como “protetor da nação”. [54]

Um dos fatores da crise do modelo clássico da democracia liberal é o fato de não apenas ela ter sido indiferente às distorções econômicas com que se debate a população. Mais que isto, foi a protetora do que Macpherson cognominou de “individualismo possessivo”. Como o direito reflete e mantém essas situações de vida, os modelos clássicos — mormente depois dos fatos desestabilizadores surgidos após a 2ª Grande Guerra — passaram por revisões críticas rigorosas e continuadas, em perspectiva tal que a modalidade de democracia participativa é de cunho muito mais construtivo. Visa à eficiência de um “viver bem” geral, consciente de as clivagens sociais darem origem à luta de muitas classes.

Essas classes mudam de feição no modo de prevalecerem socialmente. Despontam novos poderes de auto-imposição e também de barganha. No fundo, dois fenômenos são aí perceptíveis — que cumpre sejam destacados: a) é inevitável (e desejável) o surgimento de centros decisórios paralelos ao Estado; b) há sinais claros de um processus, irreprimível em longo prazo, de mais uma fase definitiva de socialização.[55]

As conseqüências para a dogmática, inspirada na teoria jurídica da nossa própria herança cultural, tem de amoldar-se aos novos conteúdos relacionais no plano jurídico. A teoria jurídica, que perde de vistas a constante perscruta ao mundo sociológico global, torna-se em pouco tempo um marco do passado. É papel do intérprete do direito, ao lançar mão dos meios técnicos de manejo da construção dogmática, evitar o envelhecimento dos paradigmas. Haverá para isso que renovar o conteúdo dos seus moldes jurídico-conceituais e superar a estática normativa mediante impulsos ao processo dinâmico da funcionalidade intrínseca da lei, a regra jurídica escrita é mera forma contingente do real. O que confere funcionalidade à dogmática é a própria vida social, diferenciada e complexa, conhecida e instrumentalmente inserida na sistemática jurídica. [56]

III – TRANSFORMAÇÃO SOCIAL E DIREITO

1) Problemática e evolução

Obra de fôlego seria a descrição e a interpretação sociológica dos movimentos multifários e extremamente complexos de uma sociedade em desenvolvimento, que se encoraja à evolução social. Para o nosso intento, nos limites estreitos deste trabalho, bastar-nos-emos com uns poucos traços, que nos sirvam inclusive de material empírico e de amostragem prática.

Há em tais sociedades — como no caso do Brasil — excessiva estratificação social, com aguçamento das dificuldades em face de sua imperfeitíssima integração social. O desenvolvimento, regional e setorial, caminha referto de desigualdades, com intensa exploração social (consciente ou inconsciente). O centralismo governamental apresenta-se crônico, embora seja uma federação o Brasil. Vige um direito administrativo caótico: serve desordenadamente a planejamento centralizado absorvente. Governa-se na esteira de uma praxe histórica rançosa — por resoluções e portarias, emanadas de um grande complexo de anéis burocráticos, em que os próprios direitos subjetivos clássicos temem de se fazerem valer judicialmente. Paira um véu de represálias extra-jurídicas. Desbasta-se, e corrói-se, de modo incessante a natureza do direito público. Investimentos e política de alocação de enormes recursos provenientes da arrecadação fiscal fazem-se freqüentes “à sombra do direito”, sem consulta à sociedade, legítima destinatária dos resultados”. O Executivo federal, com o monopólio do planejamento, torna-se regulador e árbitro das questões nacionais, manipulando estatísticas e decisões. A forma de atuação pública tem baixo grau de transparência.

O empresariado, mais ou menos atônito, cala ante a corrupção, ou a integra grande parte (cerca de um terço) da população, faminta e inculta; marginaliza-se. A classe média urbana torna-se crescentemente insolvente, acuada, com “status” cada vez mais baixo.

Entanto este quadro é freqüentemente emoldurado de retórica e de propaganda oficial, com laivos de grandeza ou de ameaças veladas. A legislação cresce desordenada, quase que diariamente (emendas constitucionais, previdência, ensino, instituições financeiras, ações executivas especiais, prazo de caducidade e de prescrição, processos administrativos, liames com o poder público). No afã de tentar suprir a falta de credibilidade do governo (sintoma de corrosão de sua legitimidade), vemos de um lado a metástase oficial de alienar as causas da ineficiência, e de outro o esforço renitente por um continuísmo político de grupos. A coalizão é tramada nos bastidores e mantida, no máximo grau possível, no sigilo. Representantes dessas camadas oligárquicas insinuam-se nas grandes empresas paraestatais que ainda restam. Situam-se em linha ou em “staff”, sempre em pontos altos do organograma. Algumas vezes a presença é apenas oficiosa. São acalorados os ciúmes por poder.

O descontentamento e o ressentimento das classes mais oprimidas pelo sistema político-econômico ora se erguem para o combate à situação, ora se diluem em forma de desalento em relação a soluções, à estrutura vigente, a instituições e autoridades. Incluem-se aí as autoridades do Legislativo e do Judiciário — simplesmente identificados como “governo” ou “burocracia oficial”. Uma forma abscôndita de ideologia muito simples insinua-se continuadamente nos meios judiciários do Brasil. É o uso muito afagado da palavra “Corte” para designar apenas tribunal. Esconde o culto ao ocupante do cargo, como se fosse um “nobre” posto acima da plebe: autoridade>povo, autoridade não como serviço ao povo, mas como poder sobre o povo.[57]

Nos anos 80 surgiu, nos grandes centros brasileiros sobretudo, uma classe operária nova. Também espantaram organizações religiosas mais conscientes e conscientizadoras. Serviram ambas de terreno de que nasceram organizações outras: associações de funcionários públicos (de categorias diversas), associações de bairros de periferia, central única de trabalhadores, união nacional dos estudantes. Revigoram-se associações de produtores rurais, associações de trabalhadores rurais, de comerciantes, de industriais, sindicatos multifários.[58]

São hoje grupos mais ou menos informais no seio do Estado, que o pressionam. Exigem dele cada vez mais recursos e mais eficiência — com a lei ou por fora da lei. Pleiteia-se hoje eficiência substantiva, soluções em termos de justiça distributiva em seu sentido amplo. Demanda-se a satisfação de interesses e de necessidades. Cada grupo ou sistemas de grupos sente seu punctum dolens. Revela-o. Em função dele reivindica [59].

Ao crepitar de tanta dificuldade cresce, em caráter crônico, a emigração rural. Parte miserável de povo é, contraditoriamente, nutrida por propaganda consumista intensa. Entanto, os que detêm o poder e a força econômica não têm estado dispostos a perder relevantes parcelas da sua cômoda situação.

O fenômeno é até mais vasto: nenhuma classe ou indivíduo em meio à crise geral está disposto a ceder algo dos seus “direitos adquiridos”. A luta de classes (que nunca teve apenas a forma clássica, sublinhada por Marx até ao exagero) mais e mais se torna difusa. Não é apenas a dicotomia (tradicional) capital X trabalho. É o aperto e a pressão de quase todos.

Há um aspecto positivo ou construtivo: a vontade de achar soluções substantivas, alterando-se profundamente a ordem vigente, em tudo o que for necessário. Naturalmente o conceito de necessário aí apresenta gama de variação larga, em função das diferenciações sociais. Enquanto não se consegue clima político para uma nova constitucionalização dos direitos econômicos e culturais, intensifica-se a busca de soluções informais: pressões, decisões por poder de barganha, negociações — auto-regulação enfim — inclusive com experiências bem e mal sucedidas [60]. Outras vezes a descrença no oficialismo estatal explode em violência pelas próprias mãos, em matéria de política e de justiça. O narcotráfico e o desemprego aguçam a violência urbana.

Ninguém nega a necessidade imperiosa de reajuste macroeconômico e de pacificação social em prol da tarefa ingente da reconstrução nacional. Daí a convicção mais ou menos generalizada: a conveniência do diálogo profundo, de se achar um leito de algum consenso capaz de canalizar e harmonizar os conflitos, restaurando-se a autoridade. Autoridade que, começando pelo mérito inicial de ser legítima, proceda à gestão de coisa pública a serviço de uma racionalização de larga eficiência substantiva e da diminuição planejada da desigualdade social.

Daí o problema da atualização exegética da dogmática. Muitas são as questões que se põem à teoria do direito em tais circunstâncias: conjuntura e estrutura de uma sociedade em crise e em evolução, em termos de religião, de moral, de concepção estética, de aprendizado (ciência e técnica), de política e de economia — em todas as suas minuciosas interconexões com o direito vigente. A Constituição Brasileira é de 1988. Até julho de 2009 recebeu 57 emendas. Nenhuma delas cuidou de dar efetividade aos direitos sociais regrados no art. 6º, que diz: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. A regra jurídica do art. 5º, § 2º, tão importante por remeter ao Direito das Gentes, continua com exegese insincera. Daí a baixa efetividade dessas regras jurídicas porque elas traduzem direitos sem ação: os direitos mutilados porque se alguém os cumpre, não podem pedir a devolução, já que não cumpriu o indevido; mas, se não forem cumpridos o outro interessado não tem como exigir (não tem pretensão jurídica) nem premir judicialmente (não conta com ação de direito material).

2) Teoria do direito e dogmática jurídica (função e alcance)

Em face do quadro empírico de sociedades em desenvolvimento, a análise dos fluxos de energias sociais, na sua concentração e descontração, centralização e descentralização, a despeito de sua extrema complexidade, apresenta um esquema básico. Corresponde ao fenômeno dialético de implicação recíproca: implicação e polaridade entre burocracia, violência e retórica. Sua mútua atração, absorção e refluxo dá-se em sistema relativamente fechado. Caracteriza o Estado como aparelho (órgão social) altamente diferenciado dentro de uma sociedade em cujas linhas atua centripetamente. Essa aparelhagem fica cada vez mais distante da população em termos de realidade, de valor-verdade, de racionalização material.

Dir-se-ia que com tal estrutura social a parafernália sofisticada de uma teoria do direito, longamente amadurecida e estratificada em dogmática altamente racional — ambas nutridas em sua origem por pesquisas respeitáveis dos cientistas do direito dos últimos 100 anos — estaria em absoluta alienação e se tornaria perfeitamente dispensável, ou inútil, ou até nociva.

Reconhece-se que ao Ocidente atual a mais avançada fase de racionalização material. Está ela no Estado constitucional democrático e social, Deve-se isso em grande parte ao denodo dos trabalhadores da Europa. A sua própria estruturação, à base de classes, deu ênfase ao poder de barganha e aos direitos sociais (trabalho, sindicato, seguridade, previdência), com a conseqüente diminuição do velho poder do capital com as restrições à liberdade econômica própria do “laissez-faire”.

A evolução prossegue no sentido de uma integração social ampla: a coesão construtiva e consciente de um arco mais global, que apanhe todas as instâncias, ou espaços sociais — do plano político ao plano cultural e econômico. Esse processo tende a reduzir o dinheiro, o poder e a lei a “valores-meios”, introduzindo-se novo fator no prol da diminuição dos mecanismos de dominação e de justificação procedimental, ou formal. Alastra-se a tomada de consciência social: é indispensável a travação juridicamente institucionalizada entre poder, dinheiro e cultura, como condição insubstituível de coesão social do pluralismo e da diferenciação. Também a consciência de dignidades da pessoa se globaliza. Significa isto que o sentido que a juridicidade toda vai assumindo, marcada pela crítica, é a de um “processus” crescentemente social [61].

Como resultante desse processo de adaptação crescente [62], há um meio de a dogmática sobreviver. Conta ela com pontos, linhas e estruturas técnicas a dura penas alcançadas. Fixaram-se mercê de teorias elaboradas com base em classificações e pesquisas rigorosas. O caminho a tomar no manejo teórico da sistemática jurídica (na função de exegese e da conseqüente aplicação da lei), é o método da abertura e ampliação dos seus conceitos em proveito da função social que o Estado não tem tido (mas tem de ter). O impulso dos movimentos mesmos da sociedade no seu todo multifário, pede o “viver bem”, em todas as dimensões da matéria social. Tem-se aí mais uma indicação da ciência: a exigência vital conduz o intérprete, e leva o operador do direito, ao exame respeitoso da relação social colhida pela regra jurídica.

Nem se pense que a função do jurista se vai converter na do político. Não: seria desestabilizar o processo jurídico de adaptação social. A segurança do jurista, e a sua relativa eqüidistância da política e da economia, mantêm-se. Cumpre àquele reeducar-se a cada dia no método indutivo-experimental . Altera-se a inteligência da dogmática segundo a ditarem os fatos sociais larga e meticulosamente examinados, que não as opções ideológicas, ou a retórica pomposa. Quanto mais mudam as relações sociais, ao sabor dos vai-vens políticos e econômicos, mais tem o jurista de se educar na ciência: lógica, matemática, biologia e sociologia. A ciência jurídica é sociologia especializada. Nas relações jurídicas entra toda classe de relação social: religião, moral, estética, econômica, política — além das intra-jurídicas e das científicas.

A consistência do jurista, a reeducar-se incessantemente no método científico, alarga qualquer dogmática (afora a patologia dos estados totalitários, com terminologia jurídica a seu serviço). Ela flexibiliza-se na medida em que conceitos e linguagem são compreendidos por indicação de cada fato social “sub examine”, e na sua colocação bem aproximada (o mais que positiva for) dentro do âmbito geral das mudanças — no seu sentido e orientação.

Alcança-se com isso duplo objetivo, em grau aceitável: (1) afastar o formalismo fundamentalista e (2) dissipar o criacionismo ideológico. Já se vê a relevância da postura científica (sem utopia, com modéstia, sem desespero, com realismo). A ciência jurídica — como qualquer outra — não se erige em onipotência metafísica. Seus dados são estatísticos. Basta-se com eles a vida; eles podem progredir em conteúdo, sem aporias definitivas, descartada a ansiedade paralisante.

O direito — com a sua interpretação (teoria) e com a instrumentação de aplicabilidade (dogmática) — não poderia continuar com a sua concepção ideológica de subsistema “autônomo”, indiferente, alheio, satisfeito com a lisura procedimental (“due process of law”, “procedural fairness”). Em lugar da fidelidade e da docilidade, assoma rompante, e conflituosa por vezes, a “desobediência civil” (Hannah Arendt). Assiste-se neste caso à exteriorização de convicções sobre a ilegitimidade do Estado como elemento de segurança. Já não basta que o direito funcione como instrumento de asseguração de “império da lei” senão que. Mais ainda que em outros tempos cumpre se encontre, com base nas relações reais — valor-verdade — do burburinho social, o sentido da estrutura da sociedade, cada vez mais necessitada de descentralização. Administração da coisa pública e satisfação das necessidades humanas no plano político, econômico e sócio-cultural [63] — eis aquilo de que as populações necessitam, eis o sentido e orientação das regras jurídicas, que o jurista haverá de pesquisar e em cada caso revelar [64].

A exegese e a aplicação de categorias (ex., negócio jurídico, ato jurídico stricto sensu, ato-fato jurídico, ato jurídico em sentido estrito e até ilícito) tem de receber a ampliação que a sociedade lhe trouxe. Por exemplo, as resoluções descentralizadas de conflitos numa comunidade de favela hã de ser admitidas e, se instado a julgar, o Judiciário tem de reconhecer em tais soluções comunitárias e eficácia de negócio jurídico. Analogamente no concernente a comunidades altamente diferenciadas do Interior. No fundo enxerga-se nestas o estabelecimento de efetivas regras jurídicas não-escritas, salientadas pela ciência positiva do direito.

Mas há que se intensificar a validade e a eficiência de atuação de tais movimentos sociais, sua produção jurídica insere-se na velha categoria de “costume”, ou de “uso”. A universidade, bem como as lideranças de classes sociais, e de grupos éticos ou religiosos (sociedade ditas filosóficas, associações religiosas, CEB’s etc.) podem e devem incentivar a proliferação de seus julgamentos informais, que o Judiciário deve homologar, como se homologa negócio jurídico plural (“Gesamtakt”). Preserva-se a conquista científica da categoria jurídica, que os novos fatos, com a ajuda da ciência, acolhem sem forçar simetrias nem artificializar os conceitos.

No tocante a conflitos de classes economicamente diferenciadas, há de ser crescente a orientação pela “ratio legis”. Ela é revelada segundo a modelam os tempos presentes, mais convulsionados por mudanças mais rápidas e enérgicas [65]. Evidentemente que tal postura, para ser a um tempo desejável em termos substantivos e confiável em procedimentalidade formal, demanda dos julgadores (aplicadores da lei em geral) aquela rigorosa formação científica a que aludimos linhas atrás. Note-se: profunda sensibilidade social é fator científico importante. Sem ela distancia-se a riqueza de mundo empírico. Têm aí as universidades, e os movimentos morais, e os religiosos, amplo papel a desempenhar. Isto porque, se de um lado a classificação dos fenômenos jurídicos deve ser exata (portanto justa), de outro lado a aplicação da ordem jurídica — em mutação no plano das convicções — a fatos novos, exige ainda mais precisão: a precisão dos limites de flexibilidade conceitual ricamente herdada do passado. Com o passado nunca a sociedade rompe de todo — e provavelmente não quer fazê-lo. Tal o caso de muitas liberdades civis, “burguesas”, conquistadas ao longo de muitos séculos: direitos de vizinhança, certa liberdade econômica (ao menos em forma de “micro capitalismo”), sossego público e, por certo, todas as liberdades fundamentais[66].

De qualquer modo a boa formação teórica, o senso prático e a sensibilidade popular para os problemas gerais hão de conduzir, em tal conjuntura de transição social (em que as águas da socialização crescente não são um onda mas um movimento definitivo de irrigação), hão de conduzir a um esforço intelectual de penetração do sentido e orientação das regras jurídicas particulares, sistematicamente travadas e dogmaticamente cerzidas. O critério de inspiração exegética serão sobretudo os princípios diretores do sistema jurídico, tal como o revela, atualmente, a situação de mudança social [67]. É a matéria social em movimento natural a ditar sincronicamente a interpretação das normas com eventuais substituições de valores, de ideologias (algumas envelhecidas), de símbolos (alguns novos). Mercê de tal fecundidade exegética, hoje mais apregoada e há muito sugerida, não se tem necessidade de dinamitar a dogmática, com seus termos, seus conceitos lógicos, sua terminologia, a sua linguagem sintática. A teoria mais científica substitui os seus conteúdos; porque vê melhor e enxerga mais a vida social (theoréin = ver). Contanto que se respeite a natureza-das-coisas, com instrumentos rigorosos de controle técnico — cumpre frisar.

É pertinente esse esforço exegético de revelar a “ratio legis” mediante o exame das relações sociais atuais, em dinâmica transição natural. E desejável que a “ratio legis” se incorpore à mentalidade jurídica, servindo à convicção de ser o direito uma função vital, não uma transmissão mecânica de sinais gráficos [68]. Produto da coexistência, ele tende a regular a sociedade mediante sistema de proposições que, vigorando, se fazem metassubjetivo. O direito constrói a tessitura da vida social, num sistema de coesão e adaptação dos indivíduos em conjunto (“enablement and facilitation”). O conhecimento dos sistemas jurídicos atua como diagnose de disfunções e também de um projeto perpétuo de reconstrução [69].

Esta concepção de dogmática como fenômeno eivado de laivos ideológicos é a mesma de qualquer construção teórica aplicada. Como sempre e em tudo, a rigor nenhuma ciência é neutra. Conscientemente assumidos os transes ideológicos; obtém-se a dimensão “responsiva” do direito (teoria). Pode deflagrar-se uma dogmática atuação ajustadora, construtiva, humanizante, causa eficiente de justiça substantiva, no sentido de M. Weber. Tudo flui, na natureza mas a razão pode orientar o trânsito das paixões [70].

Por outro lado ainda, o incentivo à difusão dos centros decisórios é fenômeno de descentralização do poder. Portanto de desburocratização com que se alivia a carga de centralismo dominador do Estado retórico e antidemocrático. Atomiza-se, esfuma-se, pulveriza-se, dilui-se — no seu tanto — o esquema ditatorial, mediante a distribuição informal de agências decisórias, compelindo-se o Estado a assumir a nova forma de que as sociedades naturalmente precisam: o de ser instrumento manejável e eficiente de felicidade individual, dentro da integração social.

Frisam-se, por conseguinte, as classes sociais com as suas representações, o seu direito de manifestação e crítica, o aumento do seu peso como força de conversão, exigência, barganha. Enseja-se a negociação entre atores substancialmente iguais, e não apenas formalmente iguais. Valorizam-se as resoluções classistas dos conflitos: sindicatos com os seus associados, associações outras com os seus filiados, órgãos de classes (CREA, CRM, OAB, As. Comercial, Federação das Indústrias, “Conselhos de Vizinhança”) [71].

Podem surgir as institucionalizações de fiscalização de órgãos públicos por representantes classistas, acompanhando, por exemplo, o trabalho da Magistratura, do Ministério Público, do Tribunal de Contas. Também o aumento do poder da competência do Judiciário em matéria política e administrativa etc., a fiscalização do abuso de poder do próprio Ministério Público, são sugestões “de lege ferenda” [72].

A concepção substantiva da justiça tem por corolário a impugnação sistemática das leis injustas, desadaptantes, disfuncionais mesmo se conforme à Constituição Federal [73]. Questão “de jure contendo” é então o uso e o julgamento das ações populares para a própria desconstituição de tais leis, válidas mas ilegítimas. “De lege lata” já se tem o alcance interpretativo de alargar o campo das nulidades e anulabilidades de negócio jurídico administrativo e ato jurídico stricto sensu administrativo (lei 4717/65, artigos 2º a 4º). Reduzem o campo da discricionariedade dos administradores mediante o julgamento exato do que convém à comunidade, especialmente em vista de manifestações públicas livres (localização de indústrias, programação de obras públicas). Quando a “discricionariedade” fere o interesse público, já se converte em arbítrio; contraria a dogmática, interpretada esta segundo o sentido e orientação das suas regras jurídicas específicas.

Cabe assinalar que mesmo juristas admiradores da obra de H. Kelsen admitem, ao menos implicitamente, que os primeiros princípios são, no fundo, misturados de irracionalidade. Vale dizer, a ideologia está no berço no “Cogito” [74], o que faz imperiosa a postura crítica constante no intuito de desvendar e retirar a máscara desestabilizadora das dominações históricas.

Sempre que as dominações se intrometeram na elaboração das leis, ou se insinuaram na cristalização mecânica do próprio costume jurídico, uma de duas coisas é provável: contrariedade ao Direito das Gentes, ou ilegitimidade.

É função da teoria do direito (explicação), claro está, manter-se em dia com a dogmática (efetivação), flexibilizando a ossatura desta para que ela se adapte ao direito vivo (não escrito), continuadamente criado no seio da coletividade, moldado pela interação mais espontânea dos atores sociais. Surgem sempre novas formas e estruturas, e linhas de força. Equações diferentes e modelos mais adequados, implícita mas verdadeiramente atuantes, podem tornar obsoletas algumas regras jurídicas. Portanto estão efetivamente, já na sistemática, muitas cristalizações de normas jurídicas não-escritas. Algumas nascem opulentas de substancialidade justa (valor-verdade): traduzem melhor a exigência profunda da natureza-das-coisas.

Na mesma ordem de idéias de autores de linha progressista, como Boaventura dos Santos e Vieira-Gallo, Norberto Bobbio sustenta também que é necessário evitar contradições substantivas de determinado sistema jurídico. Cumpre defender-se a permissão de os atores sociais resolverem por arbitramento, em visão sistemática mais vasta que a dogmática literalista, as suas pendências. E o recurso à eqüidade — mesmo no sentido velho de “pietas” — deve ter maior expressão nas decisões oficiais entre partes economica ou politicamente desequilibradas por uma posição marcada pela própria sistemática vigente [75]. O fim da justiça não é somente a paz no sentido acanhado de T. Hobbes. O direito, obra da natureza humana, precisa do resultado da justiça substantiva. A ciência jurídica há de estar voltada para o questionamento dos valores estabelecidos; eles de convertem em objeto de reflexão crítica [76]. Há de se descobrir as equações dinâmicas das compatibilidades naturais, isto é, adotar a exegese que os fatos (suporte fático) ditarem como justa.

Duas observações. Duas observações, para concluir esta Parte. A primeira: já na sistemática do direito brasileiro vigente, tem o jurista elementos de regras escritas que funcionalizam uma visão teleológico-social do direito. Quanto ao direito privado, o art. 5º da lei de Introdução ao Código Civil regra: “Na aplicação da lei, o juiz atenderá atos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Os termos, vagos, podem deixar espaço para algumas ideologias. Por isso mesmo é que servem de leito institucional para a flexibilidade da dogmática: por mais abstratos os valores (em relação a pessoas, papéis e programas), são eles mais facilmente objeto de consenso (J. Habermas, supra).

Quanto ao direito público é de grande elasticidade a Constituição Federal. No preâmbulo temos: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar ao exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade , a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

No artigo 1º:

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

No artigo 3º:

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O artigo 5º, § 2º remete ao Direito das Gentes:

Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. [77]

E mais que a discussão sobre monismo ou dualismo em relação à Constituição Federal, trata-se de se poder afirmar, ou negar, que a regra jurídica do Direito das Gentes está acima das Constituições de cada Estado da Terra. Ou é supra-estatal o Direito das Gentes, ou não é. Se não houver o primado do Direito das Gentes, se não houvesse normas jurídicas em situação de superioridade relativamente a todos os Estados da Terra, o mais forte poderia fazer com os demais tudo que lhe aprouvesse e não haveria aí ilícito jurídico. Seria uma situação de caos, que o direito não seria capaz de solver: “lei do mais forte”, violência e medo. A natureza humana pede solução desse tipo de conflito e não aumento de conflito.[78]

A segunda e última observação desta Parte é de que precisamos de uma constituição federal que construa um estado teleológico definido, um Estado de “fins precisos”. Suas metas têm de ser as liberdades fundamentais e, no plano das igualdades, os novos direitos do homem: ao trabalho, à subsistência, à assistência, à educação e ao “ideal”. Escusado dizer que a articulação dessa dialética de implicação e de polaridade entre essas duas dimensões de fundo (liberdade e de igualdades), tem de acontecer em democracia (co-discussão, voto e controle) [79]. Com tal clareza da Constituição, toda a dogmática recebe — para facilitação técnica da exegese — a orientação de uma medula-mestra, concreta e inconfundível, que a revitaliza constantemente. É em prol da harmonia na natureza social de que o Direito é fator. E nele atua mais poderosamente que a Razão, a Paixão. Em ambas estão verdadeiramente alojados elementos lógicos, matemáticos, físicos e biológicos. A natureza é social desde o fundo, na sua estrutura e no seu dinamismo essencial — da matéria ao espírito.

IV – A ideologia e os seus desacertos.

A ideologia. Note-se que a discursividade com conceitos universais é, exteriorizada em termos, conceitos, frases. Quando o pensador prefere a retórica, logo se vê que se sentirá bem com o seu o pensamento encoberto pela estética e pelos ares da filosofia clássica. Mas é inverificável o acerto, ou o erro, desse seu discurso jurídico. Não é conhecimento seguro, exato, nítido. Poderá ter — e geralmente tem — uma poderosa força motriz diretora. A ideologia fixa posições porque teme outras, diferentes; como se fosse uma técnica, ela fixa posições perante a dinâmica das mudanças dos valores sociais dos processos sociais de adaptação. Teme, sobretudo, as alterações nos campos extremos, os mais resistentes a novas idéias ou valores (Religião, Moral) e os mais propulsores de sacolejos sociais (Política, Economia). Pelo fato de o Direito conter em si muito valor religioso, moral, político e econômico, a fuga ideológica almeja a priori precaver-se contra mudanças de paradigmas.

Ora, todos esses processos culturais são processos sociais de adaptação. Sem dúvida. Mas são força, e não “luz” pura, indicatividade, objetividade imparcial, conhecimento confiável, Ciência. A ideologia pode estar a impedir toda novidade que lhe põe em insegurança os valores já concebidos. Impedirá novas idéias e formará novos conceitos, trancando-os a seu jeito e gosto. Ou seja, influirá na revelação da dogmática jurídica e na teoria geral do direito; poderá ser um empecilho importante para o avanço do conhecimento do direito objetivo (=sistema jurídico vigente). O mais seguro instrumento para se obstarem os danos da ideologia é o método indutivo-experimental, pois é justamente no requinte agudo, minucioso e amplo do método inductivo-experimental que se notabiliza o seu proveito, para se enxergarem com clareza os problemas jurídicos e se apontarem as soluções mais confiáveis. Cuida-se, digamos em síntese, de se eliminar até ao ponto ótimo a série dos espelhos pessoais, porque (1) ele persegue a escória das franjas subjetivas; por outro lado, (2) ele busca atingir o máximo das similitudes entre as idéias, os conceitos, as proposições ou frases de exposição, a aplicação da teoria.

Ideologia e complexidades. A ciência sociológica contém até agora o mais vasto dos conhecimentos. Com o mínimo de hipóstase e de afirmações hipotéticas, ou meramente opinativas, casuais, lotéricas. Não se entende a realidade jurídica sem ser a realidade jurídica conhecida pelos seres humanos. Fora da realidade conhecida só existiria (?) uma outra realidade (?) sem qualquer sentido, porém.[80] Por mais impessoal que o conhecimento jurídico seja, a esse conhecimento jurídico impessoal tendemos nós (mas só assintoticamente): ele será sempre o nosso conhecimento jurídico. O conhecimento jurídico de que dispomos é produzido em nosso espírito. E o mesmo se passa com qualquer conhecimento humano sobre parcelas do mundo. Calha notar, todavia, que as subjetividades criadas pela ideologia podem ser reduzidas pelo método indutivo-experimental. Quanto mais se reduzirem as complexidades por este caminho, mais avançará o conhecimento científico do Direito e melhor agenda terão os profissionais dele em todo o país.

Conclusões.

O mundo circundante força o profissional (e os não-profissionais) a organizar as suas idéias e as idéias de outros muitos com o fito de obter um conhecimento firme o direito. O direito objetivo é um conjunto de regras jurídicas. Do cerne destas se forma uma “cópia” do direito objetivo; esta cópia é a teoria geral do direito. Se corretamente feita essa “cópia”, a teoria geral do direito é instrumento valioso de conhecimento científico (seguro, fiel, aplicável ao universo geral dos fatos do mundo), a partir do conceito de fato jurídico. Mas, todas as pessoas podem ser influenciadas no inconsciente por algum tipo de ideologia. A ideologia pode ser um empecilho difícil de ser removido das inteligências. Para evitar essa corda bamba, para alguém se livrar dos efeitos maléficos da ideologia, o modo mais seguro será a adoção do método indutivo-experimental na ciência do direito. Esse caminho é penoso; temos porém no Brasil os trabalhos de um gênio nosso — Pontes de Miranda —, a suprirem as deficiências. Cumpre se adote a postura serena e humilde de aprender com ele, lendo uma e mais vezes (“eu sei muito pouco, e de quase nada”).

Em Santos, 06 de julho de 2009.

Mozar Costa de Oliveira (Desembargador aposentado, professor aposentado da Universidade Católica de Santos, mestre e doutor em direito pela USP).


[1] Pandectas ou Digestum em latim, ou Código de Justiniano, foi trabalho mandado copilar em 533 pelo imperador Justiniano I; continha as lições do melhores juristas romanos como Papiano, Gaio, Paulo, Ulpiano e Modestino. Depois, já na Idade Média, recebeu o nome de “Corpus Juris Civilis”. Serviu este à mantença dos conceitos do direito romano perante as invasões dos povos bárbaros, e durante as invasões feitas pelo império romano. Foi como que a matéria prima dos estudiosos alemães, notadamente a contar do século XIX.

[2] Ver Pontes de Miranda. Sistema de ciência positiva do direito, 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1979, especialmente os tomos II e III.

[3] Ver, p. exemplo, VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, particularmente os capítulos X, XIV e XV.

[4] KROMMAN, A. T. Max Weber. Stanford: Stanford University Press, 1983, p. 97, 110-111; SCHLECHTER, W. The rise of western rationalism. Berkely: Un. of California Press, 1981, p. 105, 108-109, 111-113; ALBROW, M. Legal positivism and bourgeois materialism; Max Weber’s view of the sociology of Law. In: British Journal of Law and Sociology. s.l.: s.e., 1975, v. 2, p. 17-18, 25.

[5] PONTES DE MIRANDA. Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, v. III, p. 249-298.

[6] IHERING, R. von. Geist des römischen Rechts. 5ªed. s.l.: Leipzig, 1981, 1ª parte, p. 51 seg.

[7] O método inductivo-experimental vem a ser a tese central da obra de Pontes de Miranda, no Sistema de ciência positiva do direito (v. nota 5), o que suscitou o interesse e a admiração de F. Gény, E. Zitelmann, R. Pound, J. Petzoldt (cfr. v. I, p. XI-XIV).

[8] Ver do mesmo PONTES DE MIRANDA. Sistema, v. II e III, também, do mesmo autor, com generalização máxima da teoria da relatividade, em vista da matéria sociológica atuante no sistema nervoso central, Vorstellung vom Raume. In: Atti del V Congresso Internazionale di Filosofia, 1925, p. 559-566.

[9] Legitimation Crisis. Boston: Beacon Hill, 1975, p. 10 ss.

[10] Op. cit., p. 70/75.

[11] Ver BOBBIO, N. La teoría pura del derecho y sus críticas. In: Contribución e la teoría del derecho. Valencia: F. Torres, 1980, 138-139; TEUBNER, G. Substantive and reflexive elements in modern law. In: Law and society review. s.l.: v. 17, n. 2, 1983, p. 250-257, 264-270 (e toda a parte final deste nosso trabalho).

[12] GALANTER, M. Justice in many rooms: courts, private ordering and indigenous Law. In: Disputes Processing research program, Univ. of Wisconsin Law School, 1983, p. 2-4.

[13] LUHMANN, N., The differentiation of society. N. York: s.e., 1982, p. 93.

[14] id., ib., p. 99 e 105-106.

[15] p. 106.

[16] P. 100.

[17] P. 120-121.

[18] Estas idéias foram introduzidas e aperfeiçoadas no Brasil por meio de F. C. Pontes de Miranda, notadamente na 1ª edição do Sistema de ciência positiva do direito, em 1922; a 2ª edição veio cinqüenta anos depois, em quatro tomos.

[19] Legitimation Crisis, Beacon Hill, Boston, 1975, pág. 8.

[20] David Trubek, op. cit., pág. 36.

[21] Pág. 50-52.

[22] Pág. 36.

[23] HABERMAS, J. Legitimation crisis. Boston: B. Hill, 1975, p. II, cap. 6.

[24] A base por nós assumida para este resumo é um trabalho do D. Trubek (“Justice in many rooms: courts, private ordering and indigenous Law”, originalmente publicada no “Jornal of Legal Pluralism”, 1981, n. 19, pág. 147). Nossa fonte é, porém, a publicação em forma de apostila, parte de “The Disputes Processing Research Program”, pág. 1-47.

[25] Pág. 1-11.

[26] Pág. 6-12.

[27] P. 13-16. Observe-se que essa internalização de crenças é exatamente o papel da ideologia, qualquer que sua a sua coloração.

[28] P. 16-19. A conclusão é de realçar-se: qualquer teoria geral do direito encerra uma tendência inconsciente de conformar a sociedade a um certo tipo de idéias. Não nos livramos de todo da nossa ideologia. O auto-exame e o exame social há, pois, de ser um hábito de todos os apreciadores de democracia e das liberdades fundamentais (físicas e psíquicas) e tem de estar continuadamente repleto de sinceridade. O estudioso que queira se libertar dessa preocupação, por ser só “jurista”, é um ingênuo.

[29] P. 17-19.

[30] Ver p. 20-25.

[31] P. 25-31.

[32] De Karl E. Klare, ver Labour Law in An Era of Globalization: Transformative Practices & Possibilities (co-edited with Joanne Conaghan & Richard Michael Fischl, Oxford: Oxford University Press, 2002).

[33] Voltamos à obra de D. Trubek (“Justice in many rooms: courts, private ordering and indigenous Law”, originalmente publicada no “Jornal of Legal Pluralism”, 1981, n. 19, pág. 147). Nossa fonte é, porém, a publicação em forma de apostila, parte de “The Disputes Processing Research Program”, pág. 45-57.

[34] Idem, ibidem.

[35] P. 4-5.

[36] P. 5-9.

[37] P. 11-13.

[38] P. 17-19, 23-24.

[39] P. 23, nota 36.

[40] P. 25.

[41] Quanto à justiça material, temo-la promissoramente escrita na Constituição Brasileira, prólogo e art. 3º-II. Incumbe ao intérprete retirar-lhe todo o rico conteúdo, com a cautela recomendada poder método indutivo-experimental. Sem este há o risco dos vãos filosofares, toda a gosto do intelectualismo elegante, categorial, utópico.

[42] “Sem fim” (em termos, porque a vida mostra continuamente limites à racionalidade, impondo tomada de decisões para satisfação urgente de interesses existenciais não puramente racionais

[43] Op. cit., p. 75 e ss.

[44] P. 179.

[45] P. 180-181.

[46] Em verdade, dizemos nós, tampouco a dogmática é só racionalidade. Deriva de luta, presente a eiva da força. E analisada como tem de ser, isto é, pensada com os suportes fáticos a que a regra jurídica alude, mais ainda se lhe surpreendeu graus de irracionalidade por vezes elevados. Os fatos são processos sociais de adaptação; destes nem a adaptação cognitiva (ciência) consegue libertar-se de frêmitos de passionalidade.

[47] Pág. 29-33. Há ainda mais no mundo extra-subjetivo, dizemos. Sete são os principais processos sociais de adaptação, cada qual com seu peso específico: de poder dominador e de eficácia estabilizadora das relações sociais, no curso incessante da história.

[48] Pág. 40-41.

[49] Pág. 42-45.

[50] Pág. 48-50.

[51] Pág. 51.

[52] Páginas 55 e 57-58.

[53] Pág. 62-63.

[54] P. 84-95.

[55] Pág. 112-121.

[56] Jovem autor, com pós-graduação na USP e com pós-doutorado na Alemanha, é hoje professor titular da Universidade Federal de Pernambuco: ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. 2ª ed. rev. amp. São Paulo: Saraiva, 2002, cuja 2ª parte trata sobretudo do conhecimento jurídico.

[57] Veja-se nesse sentido GUIMARÃES, Antônio Conselheiro: Efeitos monárquicos do feudalismo e vassalismo da Justiça brasileira, in Consultor Jurídico, 05.07.09 [A ideologia perversa que se insinua na jurisprudência e doutrina com o elegante termo “Corte”.]

[58] MOMMSEN, W. The age of bureaucracy. New York: Harper and Row, 1974, p. 70-71.

[59] Ver “Jornal da Tarde”, 02.06.84 e 09.06.84, p. 1-4 e 3-5, respectivamente (debate),

[60] Ver SANTOS, Boaventura dos. Law and revolution in Portugal: the experience of popular justice after the 25th of April 1974. In: ABEL, R. (org.) The politics of informal justice. Los Angeles: Ac. Press, 1982, v. II; GALLO, José A. V. The legal system and socialism. In: Wisconsin Law Review. Madison, 1972.

[61] Ver HABERMAS, J. Marx and the theses of inner colonialization. v. II, Trad. de C. Hildebrand e B. Correll, mimeogr., p. 3-20.

[62] Para esse importante conceito, em termos de ciência positiva, ver PONTES DE MIRANDA, Introdução à sociologia geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 134 ss.; Introdução à política científica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 20-132.

[63] Ver SELZNICK, Philip; NONET, Philippe. Law and society in transition: toward responsive law. New York: Harper Torchbooks, p. 54, 66-68, 71-74.

[64] Ver, Pontes de Miranda, Subjektivismus und Voluntarismus im Recht. Sonderdruck aus Archiv für Rechts - und Wirtschaftsphilosophie, Band XVI, Heft 4, Berlin-Grunewald, p. 522-543, 1921, escrito há tantos anos e tão pouco apreciado ainda. Também, Sistema de ciência positiva do direito. 2ª ed. 4 tomos. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972.

[65] Idem, ib., p. 75 ss.

[66] Sobre estas, v. PONTES DE MIRANDA, Democracia, liberdade e igualdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 1979, p. 243-408.

[67] SELZNICK-NONET, ib., p. 76-83. Justamente por isso Pontes de Miranda o apresenta convincentemente como um processo de adaptação: fenômeno incessante de preservação de segurança extrínseca.

[68] A direito é processo social de adaptação, segundo a conceituação precisa, científica, de Pontes de Miranda. A Anpassung é própria do ser vivo, portanto da autopoiésis. A literalidade baixa ao nível mecânico — “letra morta”, diz o vulgo —, se o símbolo lingüístico não alcança gnosiologicamente as relações sociais reais. Elas são de variada natureza; escalonadas segundo a sua profundidade psicanalítica socialmente estabilizadora, são as relações de Religião, Moral, Artes, Direito, Política, Economia e Ciência. Todas contêm muito de juridiscizável.

[69] Selznick-Nonet, ib., p. 84-93.

[70] Ver nosso, Paixão, razão e natureza, 2ª. parte.

[71] Id., ib., p. 95-108.

[72] A experiência mostra que a independência constitucional do Ministério Público favorece a moral social. Já a não-responsabilidade da instituição pelos encargos da sucumbência e pela litigância de má-fé, porém, atua como pressão estatal sobre o cidadão e a iniciativa privada —, que é regressiva. Também merece revisão, democrática e libertária, o abuso de poder, arrogância de alguns membros do Ministério Público. Há de haver regra jurídica a respeito da sua responsabilização pessoal, administrativa perante órgão estranho à instituição, além de ações na Justiça.

[73] PONTES DE MIRANDA, Comentários à C.B./67, c/ Em. 1/69, -- tomo I, passim.

[74] BOBBIO, N. Formalismo jurídico y formalismo ético. In: Contribución a la teoría del derecho. Valencia: F. Torres, 1980, p. 109-110.

[75] BOBBIO, op. cit., p. 111.

[76] Id., ib., p. 114-117.

[77] Já logo se vê a relevância da tese e antítese a respeito do primado do Direito das Gentes. Ora bem, sendo supra-estatal, toda Constituição que o contrariar, não vale. Mais é que o “pacta sunt servanda”: este dito enuncia uma regra jurídica não escrita do Direito das Gentes. O plus aqui é a regra jurídica não escrita segundo a qual cada Povo precisa cumprir o que tiver contratado com outro Estado. Se não, surgem conflitos, advêm sofrimentos, males.

[78] Sobre o conceito de conflito, ver nosso Conflito e mudança social, no blog http://mozarcostadeoliveira.blogspot.com/2009/06/conflito-e-mudanca-social-indice.html, 30.06.09.

[79] Sobre essa matéria, PONTES DE MIRANDA. Anarquismo, comunismo, socialismo. Rio de Janeiro: Andersen, 1932, p. 115-138; Os novos direitos do homem. Rio de Janeiro: Alba, 1933, p. 37-96; Os fundamentos actuaes do direito constitucional. Rio de Janeiro: F. Bastos, 1932, p. 285-423; REALE, Miguel. A ciência do direito no último século: Brasil. In: Incheste di diritto comparato. v. 6. Padova: 1976, p. 151-152, nota 23.

[80]Raum-Zeit-Materie” é trabalho de PONTES DE MIRANDA, de publicação restrita, que temos em vernáculo. Atente-se também para “Introdução à Sociologia Geral”, 2ª ed., 1980, p. 71, nota 3.